Voltado a estudantes de graduação trans e não-binários de qualquer universidade, projeto envolve dança, jogos teatrais e filosofia
Curso realizado na Faculdade de Educação será ministrado em 12 aulas, tendo início no dia 11 de setembro – Foto: Divulgação/FEUSP
Estão abertas as inscrições para o curso Arte da Performance: Transgeneridades em Cena, projeto que faz parte da pesquisa de doutorado de Bianca Sales, aluna da Faculdade de Educação (FE) da USP. Serão realizadas discussões a partir de materiais selecionados pela doutoranda, bem como experimentações práticas baseadas na dança e nos jogos teatrais.
Serão 12 encontros, realizados entre setembro e novembro, no Laboratório de Práticas Corporais (LabCorpo) da FE, às quartas-feiras, das 17h30 às 18h30. Estudantes de graduação de qualquer universidade, que se identificam como pessoas transgêneras ou não-binárias, podem se inscrever até o dia 10 de setembro. Para isso, é necessário enviar algumas informações básicas — como nome, número de telefone e curso — para o email bianca.sales@usp.br ou por mensagem para (31) 99381-4553.
Bianca, responsável pela pesquisa e pela organização do projeto, diz que o objetivo é criar um espaço de discussão, reflexão e produção artística. “Nós escolhemos a arte da performance, que envolve o engajamento político e a expressividade dentro do teatro, da dança e das práticas corporais. No final, a ideia é ter produtos artísticos, ainda que inacabados, como vídeos, manifestações e intervenções.”
A doutoranda explica que o recorte social para a composição do grupo de trabalho se deu pela aproximação da proposta às experiências dessa população: “Eu não sou uma pessoa trans, mas me identifico como LGBTQIAPN+. Eu escolhi esse grupo pensando que ele propõe uma nova subjetividade e uma nova forma de existência dentro da sociedade. A pessoa trans já tem uma expressividade potente. A gente quer potencializar isso, trazendo um processo de reflexão por meio da arte da performance, como mais uma linguagem ou reverberação”, afirma.
Ela adiciona que a parcela do público transgênero que acessa a universidade ainda é muito reduzida: segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra) apenas 0,02% das pessoas trans encontram-se no ensino superior.
Arte da performance
Bianca conta que o projeto pretende entender como os processos de subjetivação dos sujeitos acontecem dentro do corpo das pessoas, tomando como base o conceito das práticas de si, elaborado e delineado pelo filósofo Michael Foucault.
“Foucault diz que o ser humano é estruturado, criado e desenvolvido por meio de várias práticas da sociedade. Existem várias instituições, como a igreja, a escola e a família, que vão criando seus instrumentos e mecanismos de formação ética e moral do sujeito. Em um estudo das civilizações clássicas gregas, ele percebe certas atividades que intitula ‘práticas de si’. Elas seriam várias práticas onde o sujeito tem uma certa autonomia de escolha, não sendo só refém dessas instituições. Essas ações auxiliam na construção do sujeito, ou seja, seria uma maneira de promover outras formas de existência e de subjetividade”, informa a pesquisadora.
No curso, serão trabalhadas duas abordagens: os jogos teatrais e a dança. “A gente busca, dentro desse aspecto das manifestações artísticas, discutir temas e ampliar a expressividade corporal do sujeito, para que haja um processo de autoanálise. Por exemplo, colocamos diversas regras dentro desses jogos, onde é preciso ter uma ação para resolver essa problemática. Essa ação pode ser por meio da linguagem não verbal, que é o que a gente busca. Na verdade, o corpo pode falar muito mais do que as palavras, só que muitas vezes a gente só entende o que queremos expressar quando nos encontramos dentro de uma situação.”
Bianca menciona como referência o trabalho de Augusto Boal, autor que aborda os jogos teatrais como uma exploração da expressividade dos corpos potentes dentro das Artes.
Como resultado, Bianca espera que sejam construídos espaços, físicos ou digitais, para a apresentação dessas performances, dentro da própria USP ou em diferentes espaços. “Isso terá que ser construído aos poucos, porque vai muito ao encontro da temática que aquela pessoa vai trazer, ao quanto e de que forma aquela pessoa vai querer se expressar. Eu acredito que há um impacto tanto nos alunos participantes como nos observadores que estarão no espaço da Faculdade de Educação ou na rua e vão assistir a essas performances, também como processo de formação.”
“A arte da performance é bacana porque o espectador não é passivo, ele também participa. Há uma reverberação nesse sentido: a formação sai da pessoa que está no processo artístico e vai para o entorno dela”
Bianca Sales
Teoria e reflexão
A professora Mônica Ehrenberg, orientadora do doutorado de Bianca, justifica o desenvolvimento da pesquisa na Faculdade de Educação: apesar de envolver o campo das Artes Cênicas, um dos cursos de graduação oferecidos na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o projeto está atrelado à FE porque trabalha a formação de sujeitos a partir de um aspecto educacional, dentro da linguagem artística.
“É importante as pessoas reconhecerem que a Faculdade de Educação não trabalha apenas ou exclusivamente com educação formal, dentro da escola. Esse processo todo são pressupostos de educação: educar uma população para que ela se coloque no lugar de não apenas ter a voz que já tem, mas que ela se faça ser ouvida. Este curso, em específico, é também sobre pensar uma forma de educar pessoas para ser e estar no mundo e outras para o ‘com-viver’ com essas pessoas”.
Mônica Ehrenberg
Bianca conta que elaborou o projeto segundo a Pedagogia da Autonomia, obra do educador Paulo Freire que apresenta práticas pedagógicas para construção da autonomia dos educandos, valorizando suas individualidades e conhecimentos de mundo.
Foto: Divulgação/Paz & Terra
Para aprofundar os debates e análises, a pesquisadora também organizou uma coletânea de textos e vídeos produzidos por autores trans referenciados. “O curso pretende que essa população tenha como parâmetro e fundamentação autores trans, como Judith Butler e Dodi Leal, que já discutem as questões da expressividade, da corporalidade, das regras sociais, da questão de gênero e das artes. A ideia é trazer esses artistas e estudiosos trans para poder discutir junto com a gente.”