Humanidades

Pesquisadores da USP lançam o primeiro relatório sobre islamofobia no Brasil
Trabalho é fruto de pesquisas realizadas pelo Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos (Gracias ) e conta com relatos de islamofobia sofridos por mulçumanos no Brasil
Por Brenda Marchiore e Gustavo Roberto da Silva - 10/11/2022


Foto: Vinícius Torresan

“É inegável que o pós 11 de setembro  (data dos atentados às Torres Gêmeas) contribuiu substancialmente para o modo como o mundo olha para os muçulmanos, como se estes fossem inimigos do Ocidente e incapazes de se inserirem em outras sociedades que não fossem as de expressão islâmica”. Esta é a reflexão que faz o Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos (Gracias), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, no primeiro Relatório de Islamofobia no Brasil. O relatório é fruto de diversas pesquisas feitas pelo Gracias há pelo menos dez anos, sob a coordenação da professora Francirosy Campos Barbosa. 

A iniciativa faz parte de um esforço global para compreender o fenômeno da islamofobia. “Essa pesquisa se faz importante, pois constrói uma análise que vai contra o pensamento hegemônico que coloca sempre o/a outro/a muçulmano/a como terrorista, a mulher como oprimida e demais outras concepções, que se faz necessário e urgente problematizar dentro e fora da academia”, afirmam os autores. 

Publicado pela Editora Ambigrama no formato de e-book gratuito, o relatório contém capítulos dedicados a homens e mulheres mulçumanos, nascidos ou revertidos, e uma seção dedicada a sugestões da comunidade islâmica. A pesquisa contou com 653 pessoas muçulmanas que responderam a um questionário on-line e se dispuseram a compartilhar suas experiências envolvendo episódios de islamofobia sofridos no Brasil. 

Os dados foram colhidos entre os meses de fevereiro e maio de 2021, ao término do Ramadan (período sagrado para os mulçumanos, quando é comemorado o nono mês do calendário islâmico). O questionário, que foi divulgado, principalmente, nas redes e grupos diversos da comunidade islâmica, foi construído com perguntas que tinham como objetivo “captar as apreensões da comunidade muçulmana brasileira”, contam os pesquisadores.

As situações relatadas pelos participantes da pesquisa demonstram algumas hipóteses trabalhadas pelo Gracias, “principalmente em relação às mulheres muçulmanas revertidas como vítimas de ataques contínuos, assim como o entrelaçamento de sinais de muçulmanidades expressos por roupas e adereços de conotação árabe-islâmica”, enfatizam os autores.

Dentre os 653 participantes do questionário, as mulheres formaram a maioria (68%), e também foram as pessoas que mais apontaram ter sofrido islamofobia. Por parte dos homens, segundo os pesquisadores, se destaca uma resistência de parte da comunidade em reconhecer a islamofobia no Brasil. Alguns relatam que nunca sofreram qualquer tipo de preconceito ou discriminação devido a sua religião. Já entre as mulheres, as respostas continham relatos de agressões físicas, sexualização, perda de oportunidades de trabalho e transtornos psicológicos devido aos constrangimentos causados pelo preconceito com a religião.

A prática da islamofobia muitas vezes está presente de forma sutil e implícita, com frases que reforçam estereótipos preconceituosos. O relatório utiliza frases como “eu gosto do que vocês homens bomba fazem, tem que fazer mesmo”, para exemplificar as formas de microagressão que os muçulmanos sofrem. “Mesmo com um tom positivo, o preconceito implícito pode estar em qualquer fala de qualquer pessoa, seja dentro do núcleo familiar, seja em ambiente social e público”, ressaltam os pesquisadores.

Entre os homens muçulmanos revertidos, 22,3% relataram dificuldades na relação com a família após a reversão, e 30% em relação aos amigos. Nos relatos de mulheres, os números são ainda maiores: 41,9% encontraram dificuldades na relação com os familiares, e 38% com os amigos.

A violência verbal é apontada como mais frequente tanto pelos homens (82%) quanto pelas mulheres (92%), e a rua é o principal local de incidência de violência: 54,5% entre os homens e 72% entre as mulheres. Os ambientes de trabalho e estudo também são apontados com alta incidência de discriminação: 46,4% dos homens relatam sofrer violências no trabalho e 42,7% na escola ou universidade; enquanto 39,9% das mulheres sofrem violências no trabalho e 31,8% no ambiente de estudo.

Em uma escala de 1 a 5, onde o número 1 significa concordar muito, e o número 5 discordar muito, a maioria dos entrevistados concorda que o Islã é representado negativamente na mídia brasileira (58,7% dos homens e 78,9% das mulheres responderam 1 ou 2, concordando totalmente ou parcialmente com a afirmação).

Outro aspecto observado foi a islamofobia on-line, ou cyber islamofobia, que, no entendimento dos pesquisadores, demonstra que “espaço virtual é uma das novas frentes de ação dos islamofóbicos”. Mais da metade dos entrevistados afirmam já ter sido alvo de preconceito nas redes sociais por ser muçulmano, com números próximos entre homens (55,5%) e mulheres (54,3%).

Como apontam os pesquisadores, este relatório tem como intuito constatar a existência da islamofobia, que “se configura como ‘medo do Islam’ e que acarreta um sentimento de ódio e/ou repúdio em relação aos muçulmanos e à religião islâmica”, e proporcionar reflexões que “estão na base desse sentimento de repúdio”. 

A obra demonstra outros pontos que estão interligados, como questões de classe, raça e gênero, proposições que envolvem posicionamentos políticos de direita conservadora e tradicionalista, “levando ao entendimento da islamofobia enquanto um fenômeno complexo e multidimensional”. 

Os autores argumentam que a islamofobia “não deve deixar de ser lida como um movimento de reação à(s) existência(s) islâmica(s), possuindo dimensões econômicas, históricas, sociológicas, psicológicas, culturais, legais e políticas”. 

Quanto às dimensões legais, chama atenção a ausência de procedimentos jurídicos contra os opressores. A maioria absoluta entre homens (94,5%) e mulheres (96,7%) não faz Boletim de Ocorrência, e também não procuram outros meios legais para se defender das violências sofridas, e os pesquisadores levantam hipóteses a respeito do motivo. “Será que no Brasil as queixas das pessoas muçulmanas seriam legitimadas por nossas instituições de saúde e de justiça?”, questionam. 

"Nesse sentido, a violência contra essa minoria não aparece institucionalmente, mas toma corpo nos relatos que ineditamente recolhemos”, contam os pesquisadores no relatório."


Em entrevista, a professora Francirosy Barbosa, coordenadora do grupo de estudos responsável pelo relatório, falou sobre as contribuições do trabalho. “Desconstruir essa ideia de associar o islã ao terrorismo, desconstruir essa ideia de que mulheres muçulmanas utilizarem hijab, lenço, niqab, chador, burca, ou qualquer vestimenta, significam um sinal de opressão”, afirma.

Ao final, os pesquisadores se dedicaram a fazer uma série de sugestões à comunidade muçulmana brasileira para o enfrentamento da islamofobia no País e para que as novas gerações não sofram os mesmos tipos de violências como as relatadas pelos entrevistados. “Se a violência não se encerra, pelo menos teremos mais pessoas preparadas para enfrentá-la e mais pessoas conscientes de que a islamofobia embasa crimes, como o discurso de ódio e a violência física, e que é necessário dar apoio às comunidades vulneráveis, principalmente às pessoas de classes sociais desfavorecidas (materialmente)”, concluem os pesquisadores. 

O relatório não foi a primeira publicação do Gracias, que lançou em março de 2022 o livro Islam, decolonialidade e(m) diálogos plurais. A obra reúne estudos sobre o Islã, teorias decoloniais, e textos sobre diversos trabalhos acadêmicos que trazem contribuições relevantes para esses campos de estudo.

Publicado pela Editora Ambigrama, o livro é assinado pela professora Francirosy Campos Barbosa, junto com as pesquisadoras Ana Maria Ricci Molina, Patrícia Simone do Prado e Flávia Andrea Pasqualin, e celebra os 10 anos do grupo, fundado em 2011. A obra pode ser adquirida neste link. 

Mais informações pelo e-mail franci@ffclrp.usp.br, com a professora Francirosy Campos Barbosa.

 

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