Pesquisa inova ao utilizar marcadores sociais para investigar acesso ao transporte
Estudo de Engenharia da USP comparou diferentes cidades do Brasil e mediu acesso ao transporte público urbano em diferentes classes sociais; desigualdades se acentuam por gênero e raça

Uma pesquisa desenvolvida na Escola Politécnica (Poli) da USP analisou a qualidade e o grau de acessibilidade ao transporte público em quatro capitais brasileiras: Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo. Utilizando uma correlação entre a estrutura social e o acesso a oportunidades das populações locais, o estudo de doutorado intitulado Desigualdades de classe, raça e gênero no acesso ao transporte e ao espaço urbano em cidades brasileiras: análises empíricas e métodos para políticas e planejamento apontou que desigualdades socioespaciais e a segregação estão associadas a diferentes níveis de oferta do transporte, restringindo as interações entre diferentes grupos sociais.
De acordo com a autora da pesquisa, a engenheira de transportes Tainá Bittencourt, as análises mostram que as classes mais baixas têm sistematicamente menor acesso às oportunidades de emprego do que as classes mais altas, e pessoas negras têm menor acessibilidade do que as brancas, mesmo quando pertencem à mesma classe social. Essas desigualdades são maiores nas grandes cidades, nos países de menor renda e em sociedades pós-coloniais, especialmente quando são considerados os custos de viagem do transporte público urbano.
“A classe média branca tem níveis de acessibilidade, por vezes, maiores do que a classe alta negra. Diferente do que se espera, que a classe alta tivesse mais acessibilidade que a classe média”, relata a engenheira. “A cor da pele é um mecanismo de subida, em termos de acesso a oportunidades. A classe superior negra está mais longe das oportunidades de emprego, das outras oportunidades urbanas e do sistema de transporte”, completa Tainá.
Além das cidades capitais brasileiras, Tainá analisou outras duas cidades de fora do País: Londres, no Reino Unido, e Nova York, nos EUA. Ao posicionar o Brasil no contexto internacional, a pesquisa mostra que a renda mais baixa em países de baixa e média renda, associada a tarifas caras de transporte público, onera desproporcionalmente as classes mais baixas e as populações negras.
“Este padrão é consistente entre todas as três classes sociais e todas as quatro cidades. Nas duas maiores cidades, a diferença entre as raças é ainda mais acentuada. Isto indica que as desigualdades raciais se combinam e se sobrepõem às desigualdades de classe e de cidade”, sugere a pesquisadora.
O estudo inova ao propor formas de cruzamento de dados de diferentes fontes censitárias, governamentais e colaborativas para ampliar a capacidade de análise do acesso a oportunidades urbanas pelos diferentes grupos sociais. De acordo com o estudo, dimensões de classe social, raça e gênero podem servir como uma ferramenta para o planejamento urbano e de transportes.
Comparação interna
Três artigos acadêmicos compõem a tese, baseados em três questões centrais do estudo: o primeiro procurou entender como a segregação residencial por classe social e raça se relaciona com a acessibilidade; o segundo investigou de que maneira as desigualdades de renda locais e globais afetam a acessibilidade em geral e a acessibilidade por classe social e raça. Por fim, o terceiro artigo identificou ferramentas para avaliar a acessibilidade de serviços públicos com capacidade limitada.
“Utilizamos técnicas de agrupamento, microssimulação espacial, imagens de satélite e mapeamento dasimétrico para refinar nossa análise socioespacial comparativa através de múltiplas unidades de área e tempo, tomando quatro grandes metrópoles brasileiras como evidência empírica”, informa a pesquisadora na tese.
Os casos analisados incluem as maiores e mais ricas cidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro, mas também altamente desiguais em renda. Segundo o estudo, os coeficientes de Gini – utilizados para medir concentração de renda – para São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza são semelhantes, variando entre 0,62 e 0,63. No entanto, os níveis de renda são bem mais baixos em Fortaleza (US$ 170), enquanto São Paulo e Rio têm renda média de US$ 280 e US$ 250, respectivamente. Curitiba tem renda média um pouco maior, de US$ 285, e menor desigualdade (Gini de 0,53). Enquanto São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba são todos mais ricos, Curitiba é menos desigual.
A pesquisadora pontua que em grandes cidades, as regiões com mais oportunidades costumam ser rodeadas por pessoas de renda mais alta. Ao delimitar os espaços periféricos para a classe baixa, é necessário que esta use mais o transporte público. Entretanto, ao não ser efetivo em conectar a população pobre às áreas centrais do mercado de trabalho, o transporte ajuda a perpetuar o desemprego e a baixa renda familiar entre pessoas periféricas. Além de tirar horas de lazer e produtividade desses indivíduos, o tempo gasto em deslocamentos pode diminuir o rendimento profissional do trabalhador, possivelmente minando suas oportunidades de crescimento profissional.
Questão racial
Fortaleza é a menor cidade analisada e a maioria de sua população é negra (65%), o que diminui a desigualdade entre as pontas quando comparada às outras cidades. Porém, mesmo sendo minoria, os residentes brancos estão mais bem localizados e têm níveis mais elevados de acessibilidade no geral.
“No caso de Fortaleza, você está sempre em um nível mais baixo de acessibilidade. Sim, é uma cidade menor, mas você tem níveis de renda menores e níveis de acesso ao transporte, às vezes menores também. Por outro lado, a desigualdade entre as pontas é um pouco menor”, explica a engenheira.
Já em Curitiba a maioria da população é branca (76%). Apesar da segregação do acesso se manter parecida na questão racial, a população branca de classe alta e da classe baixa estão mais segregadas entre si. O estudo destaca a complexidade da desigualdade urbana e como cada região enfrenta problemas diferentes, demandando medidas diferentes entre si.
“Em Curitiba o último censo apontou 1 milhão e 800 mil habitantes. É uma cidade muito mais compacta e que tem um sistema de transportes mais organizado. Tem desigualdades de renda menores e renda mais alta, mas mesmo assim você vê uma desigualdade muito grande entre a classe alta branca e a classe baixa negra. Porém, tem muito menos desigualdade no meio. Mas ainda tem muita desigualdade entre as pontas”, enfatiza Tainá.
Pela falta de dados sobre empregos informais, o estudo se ateve a estudar a acessibilidade gerada pelos transportes públicos e localização apenas relacionada a empregos formais.
Comparação externa
Tainá comparou ainda o sistema de transporte de São Paulo com Nova York e Londres. Neste contexto, a pesquisadora estudou a conectividade do transporte, o tempo de deslocamento e as políticas tarifárias.
Uma diferença importante entre os sistemas foi a quantidade de tarifas. Em São Paulo, apesar de alguns serviços fornecerem integração, a mudança de um meio de transporte a outro exige outra tarifa, diferente do sistema nova-iorquino.
Para a pesquisadora, em Londres as políticas habitacionais têm sido mais efetivas para que a população de renda baixa consiga se localizar perto das áreas com mais oportunidades de emprego. Já em Nova York, apesar de os grupos sociais estarem altamente segregados, a infraestrutura de trânsito e o transporte público estão mais bem distribuídos pela cidade.
“Quando você compara as classes, você vê que a classe alta branca de São Paulo tem níveis de acesso a oportunidades parecidos com o que as mesmas classes de Nova York e Londres têm. A grande questão é quando a gente vê a base da pirâmide, a classe baixa negra especialmente. Aí é que a desigualdade se escancara. Então, as desigualdades sociais e raciais internas também posicionam em que nível você está em termos internacionais. É um pouco da sobreposição entre desigualdades locais e desigualdades globais”, destaca.
Em todas as cidades estudadas, as atividades econômicas e as oportunidades de emprego estão concentradas em áreas centrais, ocupadas principalmente pelas classes mais altas. Os sistemas de transporte público, no entanto, diferem em maturidade. O metrô de Londres é o mais antigo do mundo, inaugurado em 1890, seguido pelo sistema metroviário de Nova York, inaugurado em 1904. O metrô de São Paulo só foi inaugurado décadas depois, em 1974.
“Anos de desenvolvimento dos transportes influenciaram a organização e a cobertura da rede de trânsito, que também está relacionada com processos sociais, econômicos, políticos e urbanos mais amplos. Para conseguir oportunidades de emprego comparáveis às das classes mais altas, as classes mais baixas teriam de gastar 30% ou 40% dos seus rendimentos para chegar ao trabalho e regressar à casa”, revela a pesquisa.
Acessibilidade para mulheres
Além das questões raciais e de renda, o estudo também revela que a pouca acessibilidade atinge as mulheres no geral de uma forma diferente de como atinge os homens. O deslocamento feminino tende a ser maior devido ao sobrecarregamento de mulheres nas chamadas “mobilidades do cuidado”, o que demanda um olhar voltado de forma exclusiva para esse problema por parte dos sistemas de transporte público.
“Normalmente mulheres têm padrões de deslocamento muito diferentes dos homens. Por exemplo, elas saem de casa para levar o filho na escola, aí vão para o trabalho, depois do trabalho elas vão comprar alguma coisa para jantar, porque elas são sobre responsabilizadas por essas atividades do cuidado. Então essa desigualdade de gênero sempre é vista sob a lente do que a gente chama de mobilidade do cuidado. Pois esses diferentes papéis sociais que são atribuídos às mulheres influenciam nos deslocamentos. Além disso, elas têm menos tempo para se dedicar a atividades produtivas e de alta remuneração, estando mais representadas em trabalhos parciais ou mais precarizados”, explica.
A pesquisadora também relata que problemas sociais como desigualdade salarial podem modificar a forma como as mulheres se deslocam no cotidiano “Elas, em geral, têm renda menor. Logo, menos recurso para pagar a tarifa do metrô e do ônibus. Além disso, quando você olha os usos do transporte, as mulheres usam muito mais o transporte público coletivo e até o caminhar, pois são mais baratos e porque se encaixam um pouco mais nessa dinâmica de viagem que elas têm”, afirma Tainá.
Melhoras no cenário
Para a pesquisadora, uma melhora na mobilidade urbana pode ser atingida com capacidade e planejamento. É necessário ter profissionais diversos e capacitados no planejamento do transporte público, agregando visões femininas, pretas e periféricas à discussão, além de medidas de infraestrutura como pontos bem iluminados.
“Acho que o primeiro ponto é que a gente ainda tem no Brasil uma falta de capacitação dos gestores que cuidam da mobilidade pública no nível local, pois essa discussão ainda é muito nova na gestão pública. Então, treinamento e capacitação pensando em nível nacional. Outra questão essencial é trazer pessoas diversas para o planejamento da mobilidade urbana. Seja desenhando, fazendo os projetos, seja em participações em conselhos e coerências, isso porque essas pessoas têm vivências e experiências que a pessoa de classe alta branca não tem. Então você qualifica as políticas públicas com esses olhares diferentes. Um exemplo muito concreto é aumentar a oferta de transporte público nas periferias”, aponta Tainá.