Quatro bailarinas negras relatam como enfrentaram a discriminação racial e as barreiras sociais em suas trajetórias
O balé clássico, originário da Europa, projeta um imaginário de delicadeza e graciosidade – atributos comumente associados à pele clara e ao corpo esguio. Nesse ambiente a princípio hostil aos afrodescendentes, quatro bailarinas negras brasileiras relatam como romperam o preconceito racial e as barreiras sociais para alcançar o sucesso profissional. Os fatores envolvidos nas suas trajetórias foram registrados em entrevistas, realizadas entre novembro de 2022 e abril de 2023, e integram uma dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp que relaciona gênero, raça e cor na profissionalização de bailarinas clássicas.
Diante dessa tríade, a autora da pesquisa e professora de dança em Alagoinhas (BA), Deise da Silva Martins, constata a presença escassa de mulheres negras no universo do balé. Características comuns do corpo negro – como glúteo mais destacado e pernas grossas – geram discriminação por significarem desvios em relação à aparência tradicional de uma bailarina.
O gênero também exerce um papel importante, uma vez que “a oferta de homens no balé é muito pequena, devido a preconceitos com relação à orientação sexual. Por conta disso, os poucos disponíveis são bem-vindos, independente da raça”, explica Martins, que também aborda a dificuldade de se conciliar a maternidade com a carreira – é o caso, por exemplo, de uma bailarina que desistiu de um emprego para estar mais próxima do filho.
Bethânia Gomes – pioneira entre as entrevistadas e hoje com 51 anos de idade – começou a dançar em uma escola privada do Rio de Janeiro, ouvindo então, com frequência, comentários como “Bethânia tem um corpo de bailarina russa, mas a bunda africana atrapalha tudo”. As audições em companhias de balé pautam-se por rígidos requisitos corporais, e as candidatas negras sofrem mais pressão para se encaixarem no padrão desejado. “O balé não aceita corpos curvilíneos. As cobranças podem ser diretas ou indiretas: não se fala que a bailarina precisa emagrecer, mas ela recebe um figurino menor, por exemplo”, conta Martins.
Ingrid Silva, 36 anos, começou a dançar em um projeto social no Rio de Janeiro e também experimentou constrangimentos devido à sua estrutura corporal. Pela falta de oportunidades no Brasil, tanto Gomes (na década de 1990) quanto Silva (em 2007) seguiram carreira na companhia estadunidense Dance Theatre of Harlem (DTH) – criada pelo bailarino negro Arthur Mitchell, em 1969, com a proposta de formar um elenco multiétnico.
Na qualidade de professora da companhia, Gomes incentivou Silva a ingressar na DTH. “No Brasil, não havia ninguém que se parecesse comigo para que eu pudesse me inspirar”, relembra Silva. Hoje, a bailarina utiliza as redes sociais a fim de tentar mudar essa realidade para as novas gerações, como a de Dandara Caetano e de Nayla Ramos, as entrevistadas mais jovens da pesquisa.
Com 27 anos, Caetano começou na dança em 2001, em um projeto social na Baixada Santista (SP). Ela tampouco foi blindada da pressão estética e chegou a enfrentar problemas de saúde – inchaço dos gânglios – por conta da falta de uma alimentação adequada. Ramos, de 23 anos, começou sua formação aos dez, com uma bolsa de estudos em uma conceituada escola internacional.
Diferentemente de suas predecessoras, ambas trabalham no Brasil. Apesar disso, todas recordam situações de discriminação racial. O questionamento sobre a aptidão do corpo negro acontece de forma reiterada, aponta a orientadora da dissertação, Helena Altmann. “Durante minha formação universitária, havia o discurso de que o corpo negro teria dificuldade de nadar devido a sua densidade corporal e óssea, algo que cientificamente não se sustenta mais”, exemplifica.
Em um ambiente naturalmente competitivo, Martins sublinha a dificuldade maior enfrentada pelas bailarinas negras quando se trata de alcançar protagonismo na profissão. Frequentemente, por exemplo, essas mulheres veem-se posicionadas no fundo do palco. Ramos conta ter sido escalada para dançar balé contemporâneo ou dança caráter, mas nunca “a bailarina princesinha”. “Depois que eu cresci, consegui perceber que isso ocorria não por eu não ter qualidade ou a capacidade de viver aquilo”, acrescenta, evidenciando a importância de haver uma educação racial desde a infância.
Para se proteger da hostilidade, Gomes diz ter criado um “quilombinho” na escola de dança, composto por mais uma amiga negra e duas brancas. “Isso mostra que as redes de solidariedade entre as mulheres foram fundamentais para a sobrevivência e para avançar na carreira”, defende Altmann.
O apoio de familiares, amigos e, principalmente, professores é outro ponto em comum nas histórias estudadas. A orientadora destaca, ainda, a importância dos projetos sociais, pois “a questão de raça está muito associada a uma desigualdade social, o que dificulta o ingresso em espaços formativos”.
Tom sobre tom
Incômodo rotineiro entre as bailarinas negras, os figurinos, tradicionalmente confeccionados em um tom que simula a pele clara, cobrindo imperfeições e homogeneizando o elenco, geraram embates nas companhias. Segundo Caetano, a “gente não queria, por exemplo, dançar de meia branca para igualar […]. Sabe quando você não se sente à vontade para ser quem você é?”.
Silva lembra-se da surpresa ao, em Nova York (Estados Unidos), deparar-se com pessoas fisicamente parecidas com ela. Na cidade, a bailarina conheceu a prática, adotada por muitos dançarinos, de pintar as sapatilhas de ponta, algo presente no DTH desde a década de 1970. O processo era feito com pó de café, depois maquiagem e, apenas há alguns anos, começaram a ser vendidas sapatilhas de diferentes cores, afirma Martins. “Ingrid Silva se popularizou ao mostrar, na internet, a pintura na cor de sua pele.” Com uma pele negra mais escura, a bailarina entrou em contato com fabricantes de sapatilhas e conseguiu ver seu tom de pele contemplado.
Para Altmann, a pesquisa mostra a reprodução, no balé clássico, do racismo presente na sociedade e também evidencia um movimento de resistência das bailarinas em uma atividade que privilegia o corpo, em detrimento da técnica. “Isso contribui para que a própria prática seja repensada, com a ideia de que diferentes tons de pele podem compor um trabalho artístico.” Em sua vivência como professora, Martins percebeu um aumento no número de meninas negras motivadas a seguir carreira no balé. “Vou mudando [essa cultura]: não é uma aula só de reprodução de movimentos. Às vezes, temos que parar para conversar e conscientizar as crianças.”