Humanidades

De Camus a Frida Kahlo, escritores e artistas criaram obras-primas no isolamento
Grandes livros, pinturas e pea§as de teatro surgiram em funa§a£o do confinamento de seus autores
Por Maria Laura López - 05/04/2020


Coluna Partida, de Frida Kahlo, pintura criada quando a artista mexicana se
recuperava de um acidente osFoto: Divulgação

“O homem éum animal pola­tico.” Essa frase, escrita pelo fila³sofo grego Arista³teles na sua Pola­tica e repetida tantas vezes ao longo da história por diversos autores, mostra como a necessidade de socialização do ser humano éconsenso. Assim também, sabe-se como são prejudiciais a solida£o e o isolamento social, a exemplo da prisão, do exa­lio e da quarentena, como a que vivemos hoje por causa do coronava­rus. No entanto, foi justamente por causa de momentos como esse que grandes obras foram produzidas.

Foto: Divulgação
Mema³rias do Ca¡rcere, de Graciliano Ramos,
composto depois de o escritor ficar detido n
a prisão durante a ditadura Vargas 

No Brasil, o maior exemplo talvez seja o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), que, embora não tenha escrito em confinamento, contou depois, em Mema³rias do Ca¡rcere, o que viveu como prisioneiro de Getaºlio Vargas. “Ele foi preso em mara§o de 1936, sem nenhuma acusação formal, e são saiu em janeiro de 1937”, conta o professor Fa¡bio Cesar Alves, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Por ser um opositor pola­tico na anãpoca da ditadura Vargas, Graciliano, que já era um escritor consagrado, passou por várias prisaµes, onde foi encarcerado com presos comuns.”

De acordo com o professor, essa experiência permitiu ao escritor repensar o Estado brasileiro pela perspectiva de quem sempre conviveu com esse cara¡ter brutal da justia§a no Brasil. “Ele vaª o lugar dos pobres na sociedade, os equa­vocos do Partido Comunista, e escreve o livro depois, retomando tudo isso, embebido de uma nova orientação pola­tica, transformada a partir daquela vivaªncia”, afirma Alves.

As produções posteriores também foram afetadas pelo encarceramento, acrescenta o professor. “Vidas Secas trata de um mundo concentraciona¡rio onde, além da seca, a familia também éesmagada pelo Estado. Em Infa¢ncia, ele recupera a memória do menino acossado pela educação patriarcal e pela justia§a burguesa”, diz Alves. Para ele, a experiência da prisão foi muito importante na trajeta³ria de Graciliano, porque o colocou em contato com um mundo do qual, atéentão, era distante. “a‰ paradoxal, mas foi justamente essa retirada forçada que permitiu a ele ver melhor a situação da sociedade brasileira.”

Foto: Divulgação
A Peste, de Albert Camus: o escritor
compa´s o livro confinado por causa
da tuberculose 

O escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), por sua vez, experimentou o isolamento por conta da tuberculose que tinha desde os 17 anos. “Essa distância imposta pela doença vai também ser imposta pela Segunda Guerra e o escritor vai se habituar a construir um espaço solita¡rio”, afirma Raphael Araujo, doutor em Letras pela USP e tradutor de Camus. “Durante uma parte importante da redação de A Peste, Camus estãosozinho e recluso. Ele projeta parte do sentimento de isolamento dos franceses nos prisioneiros da peste na cidade de Ora£, onde se passa a história.”

O livro, produzido nessas circunsta¢ncias e logo após o surto de peste buba´nica que atingiu a Arganãlia, em 1944, voltou a  lista de livros mais vendidos nas últimas semanas na Europa. A narrativa simboliza a luta de um médico envolvido nos esforços para combater a epidemia que causou desespero na cidade. Considerando a pandemia de coronava­rus que assola o mundo hoje, a obra não poderia ser mais atual.

 Além desses nomes, ainda épossí­vel citar a artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954), que iniciou sua trajeta³ria como pintora no confinamento de sua própria cama, depois de um acidente que sofreu aos 18 anos. Foram várias cirurgias para a reconstrução de partes do seu corpo, e meses de recuperação. Naquele momento, a arte surgiu como uma va¡lvula de escape e ela começou a pintar autorretratos com a ajuda do espelho, que ficava logo a  sua frente. Coluna Partida,  uma das obras que pintou nesse período, retrata o colete ortopanãdico que precisava usar.

O dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) foi outro autor que produziu uma obra-prima durante o isolamento, quando estava de quarentena por conta da peste buba´nica que atingiu Londres entre 1603 e 1613. Nessa anãpoca, vários teatros fecharam suas portas por vários meses, mas isso coincidiu com o apogeu da escrita de Shakespeare, levando-o a escrever a pea§a O Rei Lear em 1605. O texto representa o caos vivido naquele momento e, talvez, atéum pouco do que o mundo enfrenta agora, com o coronava­rus.

O anãpico romance Os Misera¡veis também foi escrito em reclusão, mas por conta da oposição que seu autor, o escritor francaªs Victor Hugo (1802-1885), fazia ao impanãrio de Napolea£o III. Hugo foi exilado de sua terra natal e, depois, banido da Banãlgica e da ilha de Jersey, são encontrando asilo em Guernsey. Ele viveu nessa ilha brita¢nica por 15 anos, a 48 quila´metros da costa da Normandia, na Frana§a, e passou la¡ o período mais produtivo de sua vida, ainda que com muitas dificuldades. “O exa­lio não me retirou somente da Frana§a, mas quase me exilou da Terra”, disse ele em uma carta.

Os Misera¡veis, de Victor Hugo:
escrito no exa­lio osFoto: Saraiva
Isolados pelo va­rus

A psicanalista Sandra Leticia Berta, mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, alerta para a necessidade de diferenciar exa­lio e isolamento. “O exilado éexilado porque os outros não são, ele ésozinho, não tem como generalizar o exa­lio. O que estamos vivendo agora éum isolamento coletivo, estamos isolados e conectados”, afirma ela. Mas, de acordo com Sandra, existem alguns denominadores comuns entre as situações, como o perigo, que se apresenta tanto na forma do Estado de exceção quanto na do va­rus.

Ainda segundo ela, lidar com a morte era algo muito presente nos exilados de regimes ditatoriais, que viam seus companheiros de luta morrerem, e tem se tornado algo cada vez mais comum com o avanço da covid-19 pelo mundo. “Quando vocêvive muitos lutos, hácertas consequaªncias. Mas, com tantos mortos, talvez não tenhamos lugar para o luto agora e as consequaªncias disso podem ser diversas”, diz Sandra.

“Nãopodemos generalizar os efeitos dessa crise porque étudo muito novo. Mas muitos relatam angaºstia por não poder encontrar os entes queridos, sendo privados do encontro corpo a corpo”, afirma a psicanalista sobre a dificuldade de lidar com algo que faz dos encontros e dos gestos de afeto uma ameaa§a. E éainda mais complicado quando se trata de proporções mundiais. “O trauma tem diferentes manifestações, mas hoje ele tem uma dimensão global. Contudo, o trauma exige considerar a dimensão singular e os laa§os.”

Tendo tudo isso em vista, éde se esperar que a pandemia do coronava­rus transforme a vida das pessoas ao redor do mundo. O que não quer dizer que os pra³ximos Albert Camus, Frida Kahlo e Victor Hugo va£o aparecer. Entretanto, a perspectiva de que coisas boas podem surgir neste período ajuda a renovar as esperanças.

 

.
.

Leia mais a seguir