Humanidades

Historiador Frank Snowden: Que sejamos
Desde o surto de COVID-19, Snowden, que éo professor emanãrito de história de Andrew Downey Orrick, tem sido destaque no The New Yorker, no New York Times e no Wall Street Journal por sua experiência hista³rica.
Por Susan Gonzalez - 10/04/2020

Frank Snowden (Crédito da foto: Liana Miuccio)
O historiador de Yale, Frank Snowden, hámuito tempo fascina-se pela maneira como as epidemias sustentam um "espelho" das condições sociais, culturais e políticas em que elas surgem. Seu livro mais recente, " Epidemias e sociedade: da peste negra ao presente ", publicado pela Yale University Press em 2019, éo resultado de 40 anos de pesquisa sobre o tema.

Desde o surto de COVID-19, Snowden, que éo professor emanãrito de história de Andrew Downey Orrick, tem sido destaque no The New Yorker, no New York Times e no Wall Street Journal por sua experiência hista³rica. Recentemente, ele conversou com a YaleNews de Roma, onde viajara para pesquisar antes do ini­cio do surto. Sua pesquisa atual em um arquivo do Vaticano estãosuspensa devido ao surto global de coronava­rus. Entrevista editada e condensada.

Quando vocêiniciou seu livro, imaginou que o mundo estaria enfrentando uma crise epidaªmica?

A resposta mais a³bvia é"Na£o, claro que não". Por outro lado, háoutra resposta. Acho que a pergunta mais angustiante que ouvi durante esse surto veio do presidente Trump, que perguntou: "Quem poderia saber?" Isso me pareceu uma coisa extraordina¡ria de se dizer, porque todo mundo deveria saber.

Desde 1997, com o surto do va­rus avia¡rio, autoridades de saúde pública, virologistas e epidemiologistas vão dizendo que vamos experimentar uma grande pandemia em um futuro não distante. Eles pensaram que somos particularmente suscetíveis como sociedade a va­rus pulmonares.

Em 2005, [diretor dos Institutos Nacionais de Alergia e Doena§as Infecciosas] Anthony Fauci apareceu no Congresso dos EUA, que estava analisando essas possibilidades, e ele tinha uma analogia interessante. Ele disse que os meteorologistas podem dizer aos moradores do Caribe com certeza que sofrera£o furacaµes no futuro. Eles não seriam capazes de dar uma data exata e não seriam capazes de prever a força do furaca£o, mas eles definitivamente sabem que um estãopor vir. a‰ exatamente o mesmo com relação a  ciência médica e a uma pandemia. Fauci disse que não sabia dizer quando e não sabia se seria pior do que a gripe espanhola ou não. Mas ele poderia dizer com absoluta certeza que estãochegando.

Então, não conseguimos estar preparados, apesar de tal aviso?

Desde então, nosmeio que vivemos com uma dieta de festa e fome, de modo que quando háum surto de alguma coisa - SARS ou Ebola - háum grande gasto em dinheiro e pesquisa cienta­fica. Estruturas organizacionais são criadas e, quando o surto desaparece, a natureza humana assume o controle e as pessoas querem esquecaª-lo. O financiamento seca e as instituições são desmanteladas.

Uma das razões pelas quais quero falar com jornalistas éque, quase por acidente, um microfone foi colocado na minha ma£o e tenho a chance de usa¡-lo para falar sobre preparação. Muitos dos jornalistas com quem falei dizem estar alarmados com a rejeição da ciência e acreditam que se envolver em uma discussão conta­nua com cientistas e especialistas em saúde pública éalgo que pode ser proveitoso. Essa éuma ideia que eu tenho tentado promover. Nãosei se vai acontecer alguma coisa, mas, se acontecer, poderia me aposentar desse papel incomum em que me encontrei e voltar a ser um historiador que entra em arquivos e escreve, e édisso que eu gosto melhor.

Como as epidemias sustentam um espelho para a sociedade?

As doenças epidaªmicas atingem os na­veis mais profundos da psique humana. Eles colocam as questões finais sobre a morte, sobre a mortalidade: para que serve a vida? Qual éo nosso relacionamento com Deus? Se temos uma força onipotente, onisciente e benigna, como reconciliar essa força com essas epidemias que varrem as criana§as em números extraordina¡rios?

As epidemias também colocam tensaµes realmente enormes nos laa§os familiares. Se vocêler Giovanni Boccaccio e Daniel Defoe, que escreveram sobre a peste buba´nica, vocêvaª pais abandonando seus filhos e ca´njuges abandonando um ao outro, e amizades desmoronando diante desses eventos. Ha¡ um enorme impacto na vida pessoal das pessoas, em suas fama­lias e nas sociedades em que vivem.

"[T] pense nos conselhos dados pelos Centros de Controle de Doena§as sobre como se proteger. ... Como vocêpode ter um distanciamento social quando vive 10 pessoas em uma sala de um prédio onde as pessoas estãoempilhadas umas sobre as outras? ... a‰ uma zombaria também falar sobre lavar as ma£os quando não hásuprimento de a¡gua".


Uma grande doença epidaªmica como a que estamos vendo agora com coronava­rus impaµe enormes tensaµes a  economia e, a  medida que as pessoas são ameaa§adas de fome e desemprego, suas amarras sociais se soltam nessas situações estressantes. Ha¡ também a questãodo relacionamento das pessoas com a autoridade. Essas autoridades, e nós, como pessoas, realmente nos importamos com o que acontece com outras pessoas? Isso éuma prioridade real ou éalgo que acabamos de dizer no domingo?

Quando respondemos a essas perguntas, não percorremos um longo caminho para dizer quem somos, o que defendemos, o que acreditamos, o que éimportante para nós?

Como nosso ambiente fa­sico afeta quais epidemias florescem?

As doenças não são todas iguais. Penso em cada um como indiva­duo, cada um com sua própria personalidade. Nem todo micróbio pode afetar todas as sociedades, porque cada sociedade possui vulnerabilidades especa­ficas, dependentes do tipo de sociedade que somos. A ca³lera éuma doença da Revolução Industrial. Ele encontrou caminhos em todo o mundo porque os seres humanos criaram esses caminhos: cidades enormes com superlotação extraordina¡ria, sem infraestrutura sanita¡ria, sem esgoto, sem ruas pavimentadas, pessoas vivendo umas sobre as outras e a mais horrenda situação de higiene. As condições eram perfeitas para o florescimento de doenças como febre tifa³ide ou ca³lera que são transmitidas pela via oral / fecal.

Hoje, no mundo industrial, seria impensa¡vel que a ca³lera pudesse devastar a cidade de Nova York, Paris ou Roma, porque temos infraestruturas sanita¡rias robustas. Em ambientes com poucos recursos, édiferente, porque eles tem os tipos de condições que eu estava falando.

Por outro lado, somos quase 8 bilhaµes de pessoas e vivemos em cidades enormes que são extremamente congestionadas, e todas essas cidades estãoligadas por viagens aanãreas rápidas. Portanto, o que acontece clinicamente em Jacarta pela manha£ pode acontecer em New Haven e Paris a  noite. Com todos esses va­nculos internacionais criados pela globalização, háuma oportunidade para um tipo muito diferente de doença florescer, e parece que o coronava­rus agora estãoexplorando essa mesma condição.

Como nosso relacionamento com o meio ambiente ajudou a estimular epidemias?

O mundo que criamos étão populoso e também tão desregulado e ganancioso que invadimos enormemente o habitat de animais selvagens. Isso estãocolocando uma pressão extraordina¡ria neles, para que os seres humanos sejam forçados a entrar em contato com espanãcies que podem ser reservata³rios de uma variedade extraordina¡ria de doenças que as populações humanas nunca haviam encontrado antes.

Podemos ver isso no Ebola, onde a indústria de palmeiras invadiu as florestas da áfrica Ocidental, derrubou as a¡rvores e expulsou os morcegos. Existem muitas centenas de espanãcies de morcegos, e muitas dessas espanãcies abrigam centenas de coronava­rus. Muitos deles são letais para os seres humanos.

Os morcegos foram expulsos do dossel da floresta que era sua casa original e se aproximaram das habitações humanas, aninhando-se aos milhares em uma a¡rvore perto da casa de um menino de 2 anos de idade. Ele brincou na a¡rvore perto de sua casa em Meliandou, na Guinanã, e foi contaminado pelos morcegos, milhares deles, derramando seus excrementos e va­rus, que ele inalou. Estudos gena´micos determinaram que todos os casos de Ebola na áfrica Ocidental são descendentes dessa criana§a e seu encontro com morcegos.

Portanto, parte da história das epidemias éque, como mundo, não nos importamos o suficiente com o planeta. Nãoestamos lidando muito bem com nossas florestas e com os animais que vivem nelas. Parece que pensamos que tudo na floresta estãoem disputa, por lucro.

Os pobres e os marginalizados são os mais afetados pelas epidemias?

Aqui voltamos ao que eu disse anteriormente, que cada epidemia tem sua própria personalidade. Alguns escolhem apenas grupos específicos desproporcionalmente. Alguns, se eu pudesse ser rida­culo, são mais democra¡ticos; eles afetam todos na sociedade. Portanto, não éverdade dizer que a chave única para as doenças epidaªmicas éa pobreza.

Mas se vocêapenas pensar nos conselhos dados pelos Centros de Controle de Doena§as sobre como se proteger: pratique o distanciamento social e lave as ma£os quantas vezes pudermos no decorrer do dia. Mas que significado isso tem se vocêmora em uma favela na Cidade do Manãxico ou nas favelas do Brasil ou nas favelas de Mumbai? Como vocêpode ter um distanciamento social quando mora 10 pessoas em uma sala de um prédio onde as pessoas estãoempilhadas umas sobre as outras? Como vocêpode ficar la¡ dentro, se não tem fundos para comprar provisaµes e não tem suprimento de a¡gua? Tambanãm érida­culo falar em lavar as ma£os quando não hásuprimento de a¡gua. Como vocêfica por dentro se estãosem-teto?

Existe algum conselho que vocêgostaria de dar aos lideres mundiais agora?

Sim. Havia um médico que estava na linha de frente durante a SARS e lhe perguntaram: "O que precisa acontecer agora?" Ele respondeu: "Vamos torcer para que possamos mudar para sempre". Agora estamos lidando com o coronava­rus, e esperemos que possamos mudar para sempre com isso, e tenha certeza de que estamos preparados para que a morte e o sofrimento desnecessa¡rios e evita¡veis ​​de tantas pessoas não precisem se repetir.

 

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