Humanidades

Aldir Blanc: o escultor de ventos
Compositor escreveu alguns dos versos mais cantados da música popular brasileira
Por Gustavo Xavier - 05/05/2020


O compositor Aldir Blanc osFoto: TV Cultura/Reprodução

A Lei da Anistia tinha sido decretada em 1979. Finalmente, os exilados estavam voltando ao Brasil. Um deles foi ao show no Caneca£o, Rio de Janeiro. No caminho para o banheiro, cruzou com um sujeito alto, de barba e cabelos fartos e espichados. Deduziu quem era e, sorrindo, disse-lhe:

osa‰ vocaª, não anã? Eu pretendia terminar os meus dias la¡ fora e voltei por causa dessa música, seu f.d.p.

Esse foi o primeiro contato entre o socia³logo Betinho e o letrista da música que o trouxe de volta ao seupaís:

"Meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil

"Com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete"


Aldir Blanc, letrista e escritor, também partiu num rabo-de-foguete. Foi na madrugada desta segunda-feira, 4 de maio de 2020, com 73 anos, mesmo dia em que foi encontrado morto outro grande artista brasileiro, o ator Fla¡vio Migliaccio. Va­tima de covid-19, Blanc se juntou ao irmão do cartunista Henfil, personagem chapliniano da mais canãlebre de suas músicas, O Baªbado e a Equilibrista.

Se éum dilema para o Jornal da USP não poder homenagear nominalmente todas as pessoas que estãosendo vitimadas por essa pandemia, de certa forma elas estãorepresentadas por Aldir Blanc, que tão bem soube trazer a  luz de sua poesia os sujeitos sem fama, das ruas e dos bairros onde a vida cotidiana costura os dramas ana´nimos.

Ele que, para retratar os personagens de suas composições, precisou driblar a censura. Como foi o caso da canção Mestre-Sala dos Mares. Na mesma entrevista a JoséReinaldo Marques, da Associação Brasileira de Imprensa, na qual contou seu primeiro encontro com Betinho, Aldir Blanc lembrou que no prédio da Censura alguém disse a ele: “Vocaªs estãoerrando. Estão trocando os versos, mas a palavra ‘negro’ permanece. Vocaªs estãofazendo apologia do negro e a nossa orientação aqui épara não aceitar esse tipo de coisa. Já te dei o toque, agora vaª o que vocêarruma”.

Aldir, então, usou uma estratanãgia que havia aprendido na gravadora RCA. Tornou a música meio surrealista, com “baleia” e “polacas”, e substituiu o “almirante negro” por “mestre-sala dos mares”. Deu certo. A música foi liberada, “mesmo falando em sangue, chibata, gla³ria a todas as lutas ingla³rias e tudo mais”, recorda Aldir Blanc aos risos.

O compositor dos personagens equilibristas pelas vias tortas da vida não poderia deixar que o negro saa­sse de suas músicas. O impedimento não tolheu. Ao contra¡rio, deu-lhe asas para criar imagens memora¡veis, como a da canção mencionada.

Palavras ao vento

No documenta¡rio Dois pra La¡, Dois pra Ca¡, o artista pla¡stico Mello Menezes evoca os encontros de uma turma de jovens na praia. Eram os anos 60. E, no meio daquela garotada toda querendo curtir, apareceu uma dupla que causou frisson geral. Um era Sa­lvio da Silva Jaºnior, que ia dedilhando um viola£o encantador. O outro, nosso letrista Aldir Blanc, encadeava versos com a companhia das cordas que ressoavam. Os rapazes iam chamando as moa§as, a¡vidos pela curtição. Mas tinham que esperar. Pois um ou outro dos rapazes mais sensa­veis e, como conta Mello Menezes, sobretudo as moa§as, queriam ficar ali mais um pouco para terminar de ouvir os versos potentes. Ao final, o que se tinha era um monte de jovens chorando de emoção.

“O poder desse cara de usar a palavra, isso não aconteceu depois de adulto. Desde rapaz ele tem o poder de, atravanãs da palavra, pegar a pessoa e sacudir. a‰ o que ele fazia na praia”, resume Menezes.

Se alguém unir o vento arenoso dessa praia a  brisa fresca das noites nas janelas, estara¡ certo. As serestas são a base da formação de Aldir Blanc. A atração pela riqueza das letras, a capacidade de criar imagens fascinantes, tudo isso marcou profundamente o compositor. Na sua cabeceira musical estãoSilvio Caldas, Onanãsimo Gomes, Orlando Silva, Lamartine Babo, Ary Barroso e, mais a  frente em sua vida, Cartola e Nelson Cavaquinho.

Os livros também integraram seu repertório cultural. Seus mais de 15 mil, espalhados em pilhas como os morros de sua cidade, testemunham essa paixa£o. Dos Monteiros Lobatos da infa¢ncia, passando pelas aventuras de detetives, atéchegar em Jorge Amado, Guimara£es Rosa, Adonias Filho, Drummond, apaixonado que estava pelos autores brasileiros depois de ser impactado por Carlos Heitor Cony e Sanãrgio Porto oseste, também conhecido, ou atémais, pela alcunha de Stanislaw Ponte Preta.

Livros que incluem também seu repertório de estudos da psique. Ele, que se especializou em psiquiatria depois de quase abandonar o curso de medicina já no final. Um amigo, na brincadeira, dizia que ele não batia bem da cabea§a. Talvez tivesse um pouco de raza£o. Aldir gostava mesmo éde bater bem nos instrumentos de percussão, o que era cada vez mais inconcilia¡vel com a preparação para a carreira médica. Foi esse amigo de curso que o demoveu da ideia de largar a faculdade e encontrou para ele um local que julgava mais adequado a  sua personalidade: ali na Enfermaria Pedro Pernambuco Filho, no Engenho de Dentro, um centro psiquia¡trico onde a precariedade era gritante. Aguentou um ano e depois abriu seu consulta³rio particular, que, não raro, expandia suas sessaµes para a rua ou um bar pra³ximo.

O trauma da perda de suas filhas gaªmeas, em 1974, encerrou sua carreira médica. Na anãpoca, já era um letrista consagrado, o preferido de Elis Regina.

Suas composições dividiram inspiração com parceiros como Guinga, Djavan, Moacyr Luz e tantos outros. E, claro, o mais emblema¡tico de todos os parceiros: Joa£o Bosco. Como cronista, passou por jornais como ašltima Hora, Jornal do Brasil, Estada£o e aquele que marcou sua trajeta³ria como uma das lendas da comunicação brasileira: O Pasquim, que passou a integrar em 1975. Tambanãm escreveu livros e seguiu sempre se atualizando na bibliografia da psicoterapia e psicanálise.

Ha¡ tempos recluso e cercado por seus livros, acostumou-se a ver seus versos ganharem a autoria do imagina¡rio popular. Sim, porque a maioria de suas composições goza de grande popularidade, elas voam pelos assobios e pelas cantarolas balana§ando nos a´nibus da cidade, descendo ladeiras e queimando nos la¡bios cheios de sol das manha£s, mas nem sempre os que as cantam sabera£o que seu autor éAldir Blanc. Para ele, tudo bem. Atémelhor.

Em entrevista a Fernando Ramos, por ocasia£o dos seus 70 anos, Aldir Blanc confessou uma de suas grandes emoções na vida: “Um dia, andava de a´nibus e ouvi um garoto comea§ar a cantar, batucar e assobiar loucamente Kid Cavaquinho, enquanto eu, sentado uns dois bancos atrás, tinha que me dominar para não chorar. a‰ são isso o que importa para mim”.

Como muitos dos personagens de suas letras, Aldir Blanc ésoprado pelo vento de vozes tão ana´nimas quanto ele éna boca de seus cantores do cotidiano. E tudo bem…

 

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