Humanidades

O que pensam os escritores brasileiros sobre Machado de Assis
No livro organizado por Hanãlio Guimara£es e Ieda Lebensztayn, os leitores va£o observar elogios e muitos senaµes
Por Leila Kiyomura - 11/05/2020

Doma­nio paºblico

Ler e rever Machado de Assis sob o olhar crítico de leitores escritores como Oswald de Andrade, Jorge Amado, Haroldo de Campos, Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade e Glauber Rocha, entre outros jornalistas, poetas, cronistas e autores brasileiros, éo desafio que propaµe o livro Escritor por Escritor osMachado de Assis segundo Seus Pares os1939/2008, volume 2. Organizado pelo professor Hanãlio de Seixas Guimara£es, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e pela pesquisadora Ieda Lebensztayn, essa publicação da Imprensa Oficial reaºne uma seleção de textos de 70 autores, publicados em revistas e jornais.

“Neste livro, vemos como Machado de Assis se projetou para o futuro como referaªncia de talento, inteligaªncia e lucidez, mas também como um alto padrãode exigaªncia, erguendo-se como sombra inca´moda para os seus sucessores”, observam os organizadores no texto de apresentação. “Por isso, o leitor encontrara¡ muitos elogios, e também muitos reparos e senaµes ao grande escritor.”

Os textos surpreendem pela polaªmica que causam. Guimara£es e Ieda reuniram textos de autores com diferentes questionamentos, cra­ticas, opiniaµes e também reveraªncias, gerando uma espanãcie de debate entre os autores sobre o universo machadiano.

“A perturbação causada pela presença machadiana ésintetizada por Marques Rebelo com estas palavras: ‘Houve mesmo ocasiaµes em que eu me sentia abafado pela presença do mulato no bico da minha pena, e que coragem precisava ter para afugentar um pouco o fantasma camarada’”, exemplificam os organizadores. “Para os que vieram depois dele e muito especialmente para Lima Barreto e Graciliano Ramos, o peso das comparações expla­citas ou impla­citas de suas obras os perseguiu por toda a vida e atémesmo sobreviveu a eles.”

Os artigos publicados logo após a morte de Machado de Assis, em 29 de setembro de 1908, apontam o escritor como uma espanãcie de santo. Poranãm, segundo Guimara£es e Ieda, o escritor Graciliano Ramos mostra os efeitos dessa mistificação. “Ele observa agudamente que falta leitura ao Brasil e que Machado jamais seria um artista popular, diferentemente de Joaquim Manuel de Macedo e de Joséde Alencar.”

“Nasceu no morro do Livramento, na cidade do Rio de Janeiro. O pai épintor de paredes, a ma£e éuma portuguesa da ilha de Sa£o Miguel.”

Entre outros autores que destacam a biografia de Machado de Assis estãoJoséLins do Rego. “Eu vos conto a história de Joaquim Maria Machado de Assis, para com esta história fixar a ascensão de uma classe, de uma raça, de um homem sem fama­lia, sem fortuna, de pais humildes. De fato, a vida deste homem, que de moleque de morro passa a chefe de sua geração, a mestre de bem escrever, de bem vestir, de bem conduzir-se na sociedade, discreto de roupas e de palavras, de modos, de atitudes, écoisa de espantar”, narra o escritor. “O pai épintor de paredes, a ma£e éuma portuguesa da ilha de Sa£o Miguel. Viveu de 1859 a 1908.”

Ha¡ outros, como Ariano Suassuna, que faz uma travessia muito própria pela obra de Machado de Assis. Questiona, critica, mas reconhece a genialidade do escritor. No artigo publicado no Jornal do Commercio em 11 de agosto de 1963, observa: “Um dos processos de que Machado de Assis lana§a ma£o para nos impor seu mundo éo de descobrir seu jogo verdadeiro depois de nos ter, durante uma porção de tempo, anestesiado a sensibilidade. Essa anestesia, ele a consegue por um ‘alheamento’ em que se paµe para olhar o mundo e que vem se refletir na linguagem atravanãs da qual ergue o seu”.

Cena de rua, Rio de Janeiro, 1949 osFoto: JoséMedeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles
(extraa­da do livro Escritor por Escritor osMachado de Assis
segundo Seus Pares os1939/2008)

“Essa história de exclusão das mulheres dos quadros acadaªmicos foi uma das salafrices cometidas por Machado de Assis quando fundou a ilustre Companhia.”

Entre os que tecem cra­ticas a  personalidade de Machado de Assis estãoJorge Amado, no texto O Robe de Ouro, de 1977. Esta¡ inserido no livro Navegação de Cabotagem: Apontamentos para um Livro de Mema³rias que Jamais Escreverei, da Editora Record. O escritor protesta: “Chega-se ao fim de uma batalha que durou 80 anos, tantos quanto os da Academia: as mulheres de agora em diante podera£o se candidatar a s vagas, ganhar a eleição, vestir o farda£o com o peitoril de ouro. Como seráo farda£o das damas?”. E continua: “Essa história de exclusão das mulheres dos quadros acadaªmicos foi uma das salafrices cometidas por Machado de Assis quando fundou a ilustre Companhia”.

Certo éque, no livro Escritor por Escritor osMachado de Assis segundo Seus Pares, os organizadores Guimara£es e Ieda fizeram questãode incluir mulheres jornalistas e escritoras, como Patra­cia Galva£o, Eneida de Moraes, Lucia Miguel Pereira e Beatriz Bomfim. Importante destacar a participação das mulheres da Academia Brasileira de Letras: Rachel de Queiroz foi a primeira, em 1977, Dinah Silveira de Queiroz, em 1980, Lygia Fagundes Telles, em 1985, e Nanãlida Pia±on, em 1989.

Lygia Fagundes Telles, no texto Quem éCapitu?, de 2008, escreveu: “O antigo moleque do morro do Livramento, um descendente de escravos, gago e com ataques de epilepsia, em pleno século 19, rompeu com os preconceitos e criou a prosa realista, o mais corajoso desafio a  prova roma¢ntica. Vidente, ele intuiu que era dos artistas a tarefa de baixar as máscaras de uma sociedade mascarada e foi em frente”.

Uma das cra­ticas ferrenhas éa de Glauber Rocha. “O confronto entre Machado de Assis e Joséde Alencar para o posto de patrono da literatura brasileira, promovido pelo Congresso Nacional na década de 1970, aparece no livro”, explicam os organizadores. “A iniciativa oficial étratada jocosamente por Glauber Rocha, que a compara a um concurso ao tí­tulo de miss Brasil. Entretanto, mais afeito a  exubera¢ncia da prosa alencariana, o autor de Deus e o Diabo na Terra do Sol acaba tomando partido e considera a literatura de Machado de Assis como águaencanada, enquanto a literatura de Alencar éo encontro do Negro com o Solimaµes.”

Bonde em rua do Rio de Janeiro, 1950 osFoto: JoséMedeiros/ Acervo Instituto
Moreira Salles (extraa­da do livro Escritor por Escritor os
Machado de Assis segundo Seus Pares os1939/2008)

“Em certa casa da rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trastejada com simplicidade”

O encantamento de rever Machado de Assis atravanãs dos textos organizados por Guimara£es e Ieda envolve o leitor. As últimas pa¡ginas do livro oferecem a delicadeza do poema A um Bruxo com Amor, de Carlos Drummond de Andrade, datado de 1958:

Em certa casa da rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trastejada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo,
de novo interrogando o canãu e a noite.

Outros leram da vida um capa­tulo, tu leste o livro inteiro,
Daa­ esse cansaa§o nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castia§ais
estãoapagados

A cantora Dulce Nunes em lanchonete na Praia Vermelha, 1950, Rio de Janeiro –
Foto: JoséMedeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles (extraa­da do livro Escritor
por Escritor osMachado de Assis segundo Seus Pares os1939/2008)

Na contracapa do livro, outra surpresa: uma carta muito gentil ao editor assinada por J. M. Machado de Assis, psicografada por Antonio Carlos Secchin. No final da missiva, um agradecimento de Machado para Drummond: “Pea§o-vos vaªnia para concluir valendo-me dos versos que Carlos Drummond de Andrade me dedicou: sem mais resposta, saio pela janela e dissolvo-me no ar”.

Enfim, como duvidar da infinitude de dois bruxos?

 

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