Humanidades

Cultura cienta­fica para combater a desinformação e fortalecer a tomada de decisaµes de cidada£os
Para muitos jornalistas, este período pode ser uma oportunidade fanãrtil para tratar as complexas questões que envolvem a ciência com clareza e postura cra­tica, sem cair na tentaa§a£o do sensacionalismo.
Por Vinícius Nunes Alves - 05/07/2020


Marcelo Leite | Foto: Arquivo Pessoal

Em plena pandemia de Covid-19, cresceu a cobertura jornala­stica na área da saúde com enfoque na prevenção, hospitalização, conta¡gio e morte associadas ao novo coronava­rus (SARS-CoV-2). Para muitos jornalistas, este período pode ser uma oportunidade fanãrtil para tratar as complexas questões que envolvem a ciência com clareza e postura cra­tica, sem cair na tentação do sensacionalismo. “O jornalismo cienta­fico se esforça por dar o ma¡ximo de contextualização, um esfora§o evidente para ser o mais dida¡tico possí­vel. Esse tipo de jornalismo ajuda a melhorar a cultura cienta­fica e talvez ajude as pessoas a entenderem melhor as novidades [cienta­ficas], mas, claro, isso não substitui a educação formal”, comenta Marcelo Leite, jornalista hámais de três décadas, e colunista de ciência e ambiente da Folha de S. Paulo.

Leite éformado em jornalismo pela Universidade de Sa£o Paulo (USP) e se especializou na cobertura de ciaªncia, área que o fascina desde a infa¢ncia, e se dedica especialmente a  biologia. No doutorado em ciências sociais defendido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele se debrua§ou sobre as questões de hegemonia e informação do genoma humano, que originaram o livro Promessas do Genoma (Unesp, 2007).  A obra faz uma discussão cra­tica em torno do Projeto Genoma Humano, um empreendimento coletivo e hista³rico de váriospaíses que impulsionou a participação do Brasil na ciência internacional, e sobre a responsabilidade dos pra³prios cientistas contribua­rem para reforçar uma visão utilitarista do genoma.     

Mas para o jornalista, sempre épreciso dosar as fronteiras entre realidade e fantasia acerca de projetos mastoda´nticos, inclusive para ter noção e um certo posicionamento sobre qual éo melhor custo-benefa­cio no financiamento paºblico de ciência e tecnologia.

Escritor ativo, Marcelo Leite também éautor de outros livros como Ciência osUse com Cuidado (Unicamp, 2008), e édetentor de diversos prêmios brasileiros de jornalismo. Ele afirma que cada meio de comunicação tem suas vantagens e desvantagens, mas todos eles - televisão, va­deo, cinema ou documenta¡rio - vão para somar esforços com o jornalismo, no sentido de apresentar e explicar conceitos e mecanismos da ciência considerados difa­ceis de entender. A melhor compreensão da ciência passa por sua valorização como setor fundamental para a sociedade, acredita Leite.

Nesta entrevista concedida ao projeto Lab-19 da ComCiência, por telefone, Marcelo trata de alguns papanãis e potencialidades do bom jornalismo de ciaªncia, sobre a importa¢ncia e o desafio de se ter uma boa cultura geral, o que inclui uma noção boa e diversificada sobre ciência   

Vocaª já analisou como a gena´mica édivulgada pelos cientistas e pela ma­dia, e como ela écompreendida e usada pela população.  Quais suas principais constatações a este respeito?

Uma batalha minha, durante pelo menos uma década, foi combater a noção de senso comum de que o DNA e o gene determinam tudo. Isso estãoinclusive na linguagem popular. Por exemplo, as pessoas falam "estãono DNA do Bolsonaro as fake news", ou "estãono DNA do PT a corrupção",... enfim o uso dessa figura de linguagem indica que as pessoas ainda permanecem com essa noção simplista de que um gene determina uma caracterí­stica especa­fica. Hoje, qualquer pessoa que estuda um pouquinho de gena´mica, vai perceber que os genes atuam muito em conjunto e atéo mesmo gene pode ter funções biológicas diferentes. Publiquei minha tese de doutorado em formato de livro pela editora da Unesp que échamado Promessas do genoma para apontar a responsabilidade dos pra³prios geneticistas e pesquisadores da gena´mica de propagar essas visaµes deterministas e erradas sobre o funcionamento do genoma. Eles foram os primeiros a cunhar a meta¡fora do programa de computador, livro da vida, ca³digo da vida, etc, que ajudaram a propagar essa noção determinista.

Os cientistas da genanãtica e da gena´mica, talvez para melhorarem a imagem das suas áreas como medicinas de precisão ou medicinas individualizadas sob medida, ou mesmo para venderem melhor seu peixe, acabaram ajudando a propagar a noção determinista. Acho que já passou da hora de combater com maior seriedade essa noção simplista e determinista de que “um gene, uma doena§a”, pois isso, são acontece com doenças raras. No meio cienta­fico o determinismo genanãtico felizmente já estãoenfraquecendo, mas no senso comum ela ainda estãoplenamente funcionando. Eu, particularmente, gosto da imagem do genoma como um ecossistema, onde se mexemos em uma parte que queremos, também podemos mexer ou afetar o funcionamento de outras partes não pretendidas.

Como podemos equilibrar as expectativas sobre as novidades cienta­ficas?

Tenho uma certa simpatia pela imaginação fanãrtil dos cientistas, acho que isso éum pouco o que move a ciência Ou seja, essas hipa³teses, esses conceitos bem doidos que de vez em quando aparecem, bem criativos e etc. Agora, como jornalistas de ciaªncia, o nosso papel éde justamente olhar e dizer o quanto tem de fantasia, o quanto tem de realidade, e o quanto esses cientistas, ao formularem uma fantasia, também não acabam fantasiando os efeitos não pretendidos, os riscos envolvidos, e as possa­veis consequaªncias danosas. O ceticismo do bom jornalismo de ciência segue o princa­pio da precaução e não trata qualquer novidade cienta­fica como uma revolução da ciência            

DNA e a tecnologia genanãtica prometem um renovado e superdotado indiva­duo.
A percepção e a comunicação sobre a gena´mica atéhoje são superestimadas
sem considerar influaªncias ambientais, riscos e efeitos não pretendidos.
Imagem: Pixabay.

A ciência ésão um dos campos de conhecimento que faz parte da vida e da cultura geral  das pessoas em maior ou menor grau. Mesmo em torno de um aºnico tema que afeta diretamente a sociedade, como a pandemia de Covid-19, precisamos conhecer e nos posicionar com a ponderação e seriedade que a situação exige. Para vocaª, acessar e cultivar uma cultura cienta­fica pode contribuir para uma cidadania mais ativa?

Faz parte da vida democra¡tica vocêter uma cultura cienta­fica que te permita participar das decisaµes. Mas não são cienta­fica, por exemplo, acho importante que as pessoas na sua cultura geral tenham uma noção da história, da origem e dos fundamentos das religiaµes. Nãoquero dizer que todo mundo precisa fazer a análise da ba­blia, do alcora£o, do livro dos mortos, etc, isso [os] especialistas éque va£o fazer. Agora, para vocêatuar na sociedade e identificar opiniaµes baseadas em fundamentalismos religiosos, éimportante que vocêtenha uma noção de religiaµes, quais sãos as doutrinas, qual éa diferença entre um evanganãlico tradicional e um evanganãlico neopentecostal, pois essas coisas fazem parte da cultura. Na pola­tica brasileira, por exemplo, temos os neopentecostais que tem desempenhado um papel. A cultura geral obviamente também inclui a cultura cienta­fica. Por exemplo, faz parte dos requisitos da cidadania que vocêtenha alguma noção sobre gena´mica, sobre células-tronco, sobre reprodução assistida, sobre biotecnologia, etc para não ficar sendo são uma marionete na ma£o de quem manipula melhor esses assuntos. Ou atémesmo ser marionete de pessoas poderosas que abafam estudos cienta­ficos para poderem continuar explorando questões politicamente. Podemos votar em candidatos que eventualmente tem propostas em ciência e vamos avaliar as propostas deles com base em o quaª, se não for principalmente com conhecimento pra³prio?

Mas écomplicado em umpaís como o Brasil, onde a educação ba¡sica éruim e a educação cienta­fica pior ainda, muitas pessoas caem em desinformação e não entendem a natureza e o funcionamento da ciência Por exemplo, usando um tema que tenho trabalhado ultimamente, eu falo assim: "as drogas psicodanãlicas, como LSD, não criam dependaªncia química", que éum fato comprovado cientificamente, e o cara vira para vocêe fala: "Na£o, mas essa éa sua opinia£o". Como assim opinia£o? Enquanto estãova¡lido pela comunidade cienta­fica, não ésão a minha opinia£o. As pessoas tem que pensar com sua própria cabea§a e, para isso, elas precisam ter uma base boa, não o conhecimento profundo e tanãcnico do especialista. Alia¡s, nenhum especialista tem conhecimento sobre tudo, por exemplo, um especialista de genanãtica conhece muito essa área, mas não conhece bem taxonomia. Ou outro especialista conhece bem taxonomia mas não conhece bioquímica... Eu digo buscar ter uma boa cultura geral para saber as fontes confia¡veis de informação, saber interpreta¡-las e, também, para tomar decisaµes como cidada£o. Sa³ assim temos chance de falar sobre assuntos da opinia£o pública com base em evidaªncias e relações de informações, e não são com base em inclinações pessoais e doutrinas religiosas como muita gente acaba fazendo.

 

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