Humanidades

Pesquisa da UFF reconta a história da pandemia a partir de relato dos idosos
Trata-se de uma parcela muito especa­fica da sociedade, comumente colocada a  margem dela, muito antes de a pandemia transformar radicalmente os modos de vida de todos.
Por Fernanda Cupolillo - 15/07/2020

Doma­nio paºblico

Segundo o mais recente relatório da Organização Mundial da Saúde, o Brasil éhoje o segundopaís no ranking mundial com o maior número de novos casos e mortes por COVID-19, estando atrás apenas dos Estados Unidos. E dos mais de sessenta mil a³bitos registrados atéo momento, pelo menos setenta por cento deles, de acordo com diferentes centros de pesquisa dopaís, advanãm da população com mais de sessenta anos de idade. Trata-se de uma parcela muito especa­fica da sociedade, comumente colocada a  margem dela, muito antes de a pandemia transformar radicalmente os modos de vida de todos.

Sem o mesmo direito a  voz e a muitos outros direitos, os idosos, que tem tido sua vida abreviada em preciosos anos em razãoda pandemia de coronava­rus, atéo momento não foram convidados a falar mais expressivamente sobre tão assombrosa experiência. Constatação que leva ao questionamento sobre nossa real disponibilidade para a escuta e a convivaªncia com os modos de vida e a temporalidade que encarnam, menos acelerada e “produtiva”.

Sensa­vel a s dores silenciosas que diariamente ocupam as manchetes dos jornais, o projeto “Hista³ria Oral na Pandemia”, com coordenação local da professora do Departamento de Hista³ria Juniele Rabaªlo de Almeida, tem convocado a população de idosos com vida social ativa a produzir relatos autobiogra¡ficos sobre esse momento, escrevendo ativamente a história que hoje estamos vivendo. A iniciativa integra o Projeto Interinstitucional “A COVID-19 no Brasil”, do Ministanãrio da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, com coordenação geral da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Fiocruz Minas.

De acordo com Juniele, esse acervo de entrevistas públicas que estãosendo montado e que tem sido acolhido pelo Laborata³rio de Hista³ria Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, “écomposto por narrativas gravadas e transcritas - que apontam para a necessidade da valorização das trajeta³rias e das experiências cotidianas dos idosos. O material presta-se também a  observação das estratanãgias narrativas desses sujeitos, que repensam suas trajeta³rias nesses tempos desafiadores”, explica.

Olympia avila Salsa, professora de artes aposentada e moradora de Sa£o Gona§alo, foi uma das participantes do projeto, contribuindo com um lindo relato. “Durante esse dias da pandemia tenho me sentido bem de saúde mas vivo preocupada, me observando, para ter a certeza que estou bem mesmo! Muitas vezes me sinto impotente e atéme revolto com nota­cias que vejo na TV. Falta de honestidade, desumanidade, irresponsabilidade... Poranãm, não me deixo abalar! Procuro preencher meu tempo com atividades físicas, meditação, pintura e os cuidados com a casa. Tambanãm sou aluna da formação de biodança e com isso, compreendi melhor a vida e o que vem acontecendo comigo e com todos. Busco me orientar em meio a  pandemia e ter os melhores aprendizados, para quando tudo tiver passado. Triste nesse período énão saber o que nos espera, como seráo dia seguinte. O que ira¡ acontecer? Nãotemos segurança por parte dos governos. a‰ muito revoltante ver o número de pessoas que morrem por irresponsabilidade dos gestores. Somos marionetes em suas ma£os. Quando penso nos menos favorecidos, me da³i muito não poder ajuda¡-los. Sou grupo de risco e não poderia atuar tão pra³ximo. E financeiramente não tenho condições. Sei que opaís estãovivendo momentos difa­ceis devido a  corrupção que aqui se instalou e se perpetua. Tive que conter minha ansiedade. Pra que a pressa? Agora, tenho todo o tempo do mundo”.

Ao observar e documentar essas vozes, a ideia éjustamente, como destaca a pesquisadora, “ultrapassar os números estata­sticos da lógica empresarial e autorita¡ria”, para que possam ser transformados novamente em nomes, em memórias, em afetos. Segundo a pesquisadora, utilizando como ferramenta a história oral para produzir conhecimento e também catalisar as significações sensa­veis das experiências narradas, interessa ao projeto entender os impactos do isolamento social na população idosa, como essa situação interferiu nas suas prática s de sociabilidade e qualidade de vida.

Para Juniele, que tem passado o período de quarentena nos Estados Unidos, onde atualmente éprofessora visitante na Universidade da Califoria/Berkeley, esse momento foi experimentado como uma travessia do medo ao acolhimento em coletivos de história oral. Nesses coletivos, ela explica, promove-se uma escutasensívelem redes de apoio maºtuo.

“Eu me interesso por movimentos, percursos e trajeta³rias. Gosto do processo, do ‘tornar-se’, do ‘quase’, da obra de arte em construção. Em 20 anos de docaªncia, realizei o que realmente importa para mim: o va­nculo, o fazer coletivo, o conhecimento aberto, cra­tico, diala³gico e participativo. Pela primeira vez, não estou em sala de aula, e na Universidade da Califórnia vivi o impacto da pandemia. A história, continuamente reescrita, se faz no Tempo Presente. a‰ no aqui e agora que questionamos os itinera¡rios. Ouvir os idosos tem sido um alento, uma força para continuar o pa³s-doutorado em terras estrangeiras”, desabafa. 

O convite a participar dessa rede estãoaberto. Quem tiver interesse, basta enviar as gravações o e-mail historiaoralnapandemia@gmail.com. Solicita-se, juntamente com o arquivo da gravação, o nome completo do entrevistado, a data da gravação, a cidade/paa­s, o ano e local de nascimento. Para fornecer o direito de divulgar a narrativa de história oral, o entrevistado autoriza sua utilização para fins sociais e educativos. O entrevistador também envia os seus dados (nome completo, cidade/paa­s, ano e local de nascimento) e o seu possí­vel va­nculo com o entrevistado.

 

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