Humanidades

Ana¡lise de artefatos de pedra pode mudar teoria sobre pré-história na Amanãrica do Sul
Forma e modo de produção de artefatos indicam existaªncia de povos com diferentes culturas no atual territa³rio brasileiro, ao invanãs de uma tradia§a£o única
Por Júlio Bernardes - 12/08/2020


Estudo das caracteri­sticas de pontas de flechas, lascas e dardos encontrados em sa­tios arqueola³gicos de Sa£o Paulo, Parana¡ e Rio Grande do Sul revela diferenças em seu formato e modo de produção, o que desafia a tese de que os povos inda­genas dessas regiaµes tinham uma mesma cultura na pré-história osFotomontagem: Jornal da USP
 
Um novo manãtodo para analisar pontas de flechas, lascas e dardos feitos de pedra lascada (pontas la­ticas) por grupos inda­genas pré-históricos que habitavam o atual territa³rio brasileiro pode mudar as teorias sobre a ocupação da Amanãrica do Sul, aponta pesquisa do Instituto de Biociências (IB) da USP. A análise, baseada na comparação das caracteri­sticas das pontas la­ticas, mostrou que hádiferenças tanto no formato quanto no modo de produção dos artefatos entre as pea§as encontradas em sa­tios arqueola³gicos de Sa£o Paulo, Parana¡ e Rio Grande do Sul. A descoberta indica que esses grupos, que viveram hácerca de 13 mil anos atrás na parte oriental da Amanãrica do Sul, tinham culturas diferentes, o que desafia a tese de que pertenciam a uma mesma cultura, conhecida como “Tradição Umbu”.

As conclusaµes do estudo, bem como os dados brutos obtidos durante a pesquisa, são apresentadas em artigo publicado na revista Quartenary International. “O novo protocolo de análise foi aplicado em coleções arqueola³gicas associadas a  ‘Tradição Umbu’, a fim de verificar se todas as pontas la­ticas eram realmente homogaªneas (similares) ou não”, afirma o arqueólogo Joa£o Carlos Moreno de Sousa, que realizou a pesquisa. “a‰ importante lembrar que artefatos feitos de pedra lascada, como essas pontas de flecha, são bastante comuns em muitos sa­tios arqueola³gicos brasileiros, especialmente nos sa­tios de grupos caçadores-coletores, ou seja, grupos inda­genas pré-históricos antigos que não praticavam a agricultura”, afirma.

O estudo analisou as pontas de pedra de sa­tios arqueola³gicos localizados nas regiaµes Sudeste e Sul do Brasil: sa­tio Alice Boer, em Ipeaºna (Sa£o Paulo), Caetetuba, em Sa£o Manuel (Sa£o Paulo), Tunas, em Arapoti (Parana¡) e Garivaldino, em Brochier (Rio Grande do Sul). “Todos esses locais foram escavados por outras equipes de pesquisa, desde a década de 1960 até2016, e os materiais encontrados estavam sob a guarda de museus. Todos eles possuem datas radiocarba´nicas (carbono 14) que remontam atéa 13 mil anos atrás”, relata o arqueólogo. “Tambanãm foram inclua­das pontas la­ticas encontradas e doadas por moradores das cidades de Porangaba e Iracema¡polis, no interior de Sa£o Paulo, e que ira£o passar por trabalhos de datação.”


Localização dos sa­tios arqueola³gicos estudados nesta pesquisa; os pontos vermelhos
correspondem a sa­tios datados, e diamantes verdes indicam sa­tios sem data (Ir:
Iracema¡polis; Po: Porangaba; SC: Santa Cruz) osImagem: Reprodução
 
Segundo o arqueólogo, a análise da tecnologia la­tica já éusada hácerca de 50 anos e se baseia na observação de feições relacionadas aos manãtodos e técnicas de produção dos artefatos de pedra lascada, ou seja, de como teriam sido fabricadas e usadas no passado. “A novidade da pesquisa éque o protocolo de análise foi desenvolvido especificamente para o estudo das pontas la­ticas do leste sul-americano. Sua vantagem épropor uma padronização das caracteri­sticas que devem ser analisadas em pontas la­ticas, assim como uma terminologia padronizada”, explica. “Isso permite comparar dados de diferentes coleções e fazer testes estata­sticos para verificar se as coleções comparadas são ou não significativamente distintas.”

De acordo com Moreno de Sousa, os diferentes grupos de pesquisa podera£o comparar os dados uns dos outros e verificar se os dados das coleções que analisaram são ou não similares. “Caso sejam, isso pode ser um indicativo de que ambos analisaram coleções da mesma cultura arqueola³gica, mas não necessariamente das mesmas pessoas, já que culturas arqueola³gicas podem durar milaªnios e se expandir por vastas áreas geogra¡ficas”, diz. “Os dados brutos estãodisponí­veis como arquivos suplementares do artigo e podem ser utilizados por qualquer pesquisador para aplicação de novos testes estata­sticos.”

Diferena§as regionais

A professora Mercedes Okumura, do IB, uma das autoras do artigo, já havia analisado a forma das pontas de pedra associadas a  Tradição Umbu, em colaboração com Astolfo Araaºjo, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP. “Esse estudo indicou que as pontas de Sa£o Paulo tinham uma forma, enquanto as do Parana¡ tinham outra e as do Rio Grande do Sul não se assemelhavam a s demais, mas também parecia indicar que as formas não mudavam muito ao longo do tempo”, aponta Mercedes. “De qualquer forma, não tinham sido comparados os aspectos tecnola³gicos, ou seja, sabia-se que a forma final dos artefatos era diferente, mas seráque o modo de produção não era o mesmo? A pesquisa mostra que as pontas são diferentes também quanto ao modo de fabricação nessas três regiaµes.”


Artefatos de pedra analisados na pesquisa, encontrados em sa­tios arqueola³gicos
de Sa£o Paulo, Parana¡ e Rio Grande do Sul; diferenças no formato indicam
diferentes identidades culturais em cada regia£o osFoto: Reprodução
 
O arqueólogo afirma que outro estudo, feito em parceria com pesquisadores da área de geociências, mostra que as indaºstrias de pedra lascada apresentam diferenças, independentemente dasmudanças que ocorreram no ambiente ao longo do tempo. “Mesmo quando as rochas a  disposição eram diferentes, isto anã, de pior qualidade, esses grupos ainda aplicavam a mesma tecnologia e faziam as pontas no mesmo formato”, ressalta o pesquisador. “Nesse sentido, a identidade cultural de cada um desses grupos ficou bem registrada nos artefatos.”

As conclusaµes do estudo são a princa­pio um passo adiante para rever o conceito de “Tradição Umbu” que perdura desde a década de 1980 na arqueologia brasileira, defendendo que os grupos que faziam essas pontas de pedra eram todos iguais, e que sempre foi vista com desconfianção pelos pesquisadores depaíses vizinhos, avalia a professora do IB.

“A pesquisa buscou retomar as primeiras tentativas de verificar diferenças entre os artefatos que os arqueólogos das décadas de 1960 e 1970 já haviam feito, mas que infelizmente foram esquecidas quando tudo passou a ser visto como uma única cultura”, destaca Mercedes. “A questãoimportante aqui anã: se os grupos inda­genas atuais que vivem no Brasil apresentam uma grande diversidade cultural, porque essa diversidade não haveria de ser observada no passado também?”

As comparações feitas na pesquisa revelaram que a diversidade cultural dos primeiros grupos a habitar densamente o leste da Amanãrica do Sul era muito mais diversificada do que se pensava atéentão. “Tambanãm mostram uma diferença muito clara sobre a cultura Clovis, que atépouco tempo se pensava que era a mais antiga das Amanãricas”, ressalta o arqueólogo. “Ainda que recentes dados de DNA antigo indiquem alguma relação, as evidaªncias culturais mostram claramente que herana§a genanãtica e herana§a cultural não caminham sempre juntas. Os dados parecem indicar que as culturas da Amanãrica do Sul surgiram de maneira independente das da Amanãrica do Norte, talvez com algumas exceções, mas mais estudos ainda são necessa¡rios.”

A pesquisa foi realizada no Laborata³rio de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH) do IB, coordenado pela professora Mercedes Okumura, onde Moreno de Sousa faz pa³s-doutorado. Os estudos sobre a contribuição das geociências para entender semudanças ambientais estariam ligadas amudanças culturais no passado foram liderados pelo gea³logo Pedro Cheliz, doutorando da Universidade de Campinas (Unicamp), e contam com a participação da zooarquea³loga Gabriela Mingatos, colaboradora do LEEH e doutoranda no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e também do professor Astolfo Araujo, do MAE.

 

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