Humanidades

Pandemia impacta mais a vida das mulheres
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domica­lios Conta­nua (PNAD Conta­nua) realizada pelo IBGE, aponta que cerca de 7 milhões de mulheres deixaram seus postos de trabalho no ini­cio da pandemia, 2 milhões a mais do que o número de homens na mesma s
Por Eliane Comoli e Karen Canto - 19/08/2020


Pandemia impacta mais a vida das mulheres. Foto: Antonio Scarpinetti

Quando os primeirospaíses começam o isolamento, a ONU Mulheres lançou um alerta mundial, advertindo autoridades políticas, sanita¡rias e organizações sociais sobre a forma como a pandemia da Covid-19 e o isolamento social poderiam afetar as mulheres - tanto atravanãs da sobrecarga de trabalho como atravanãs do incremento dos a­ndices de violência doméstica e diminuição de acesso a servia§os de atendimento. De fato, dados recentes, apontam aumento de 22% nos casos de feminica­dio no Brasil, segundo levantamento do Forum Brasileiro de Segurança Paºblica (FBSP), entre os meses de mara§o e abril. Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domica­lios Conta­nua (PNAD Conta­nua) realizada pelo IBGE, aponta que cerca de 7 milhões de mulheres deixaram seus postos de trabalho no ini­cio da pandemia, 2 milhões a mais do que o número de homens na mesma situação. 

“O documento da ONU aponta que, na história da humanidade, toda crise social atingiu com mais intensidade as mulheres”, observa Simone Mainieri Paulon, psica³loga, professora e coordenadora do Programa de Pa³s-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisadora também coordena o projeto Cla­nica Feminista na Perspectiva Interseccional da UFRGS, no qual acompanha mulheres em situação de vulnerabilidade e, desde o ini­cio da pandemia, percebeu que as mulheres sofreriam um grande impacto. Nesta entrevista, Simone com a participação da psica³loga Mara­lia Jacoby, especialista em Atendimento Cla­nico e Mestre em Psicologia Social que coordena o projeto Cla­nica Feminista juntamente com Simone P, analisam os intensos impactos da pandemia na vida de mulheres. 
 
A realidade do home office imposta pela pandemia poderia, em princa­pio, ser considerada uma situação amena, afinal, trabalhar de casa poderia ser considerado um ganho. Passados mais de quatro meses, quais os efeitos desta nova realidade?

Simone Paulon: Sem daºvidas que, com o ritmo acelerado da vida moderna, trabalhar de casa pode trazer benefa­cios para a qualidade de vida, com melhor otimização do tempo dedicado a s atividades laborais e a s demandas familiares e domésticas. Contudo, esta éuma realidade que precisa ser relativizada a partir de marcadores que resultam em diferentes atividades e condições de vida desiguais entre as mulheres. 

Considerando as mulheres que podem manter suas atividades profissionais de forma remota e permanecer em isolamento, o modo repentino como a exigaªncia do home office ocorreu trouxe dificuldades adicionais. As fama­lias precisaram adequar Espaços privativos para trabalho e estudo. Além disso, existe a lógica da produtividade a qualquer custo. Se não tivermos cuidado para estabelecer fronteiras claras entre o hora¡rio de trabalho e o tempo para demais insta¢ncias da vida, o trabalho pode acabar tomando um espaço excessivo e indevido. Neste sentido, temos ouvido relatos de mulheres que somaram a  carga hora¡ria de suas atividades em ambiente virtual, todo trabalho domanãstico, as atividades escolares dos filhos e os cuidados com parentes idosos que estãoisolados. Além disso, mulheres ainda se deparam com as cobrana§as para não negligenciar os cuidados com a própria saúde e aparaªncia física. 

Ha¡ que se ter cuidado para não cair na cilada de que o home office implique disponibilidade absoluta, pois a tendaªncia éque todo dia fique com cara de segunda-feira. Manter uma rotina organizada, procurar estabelecer limites entre trabalho e rotinas familiares, preservar Espaços para contatos afetivos e cuidados pessoais, parece ser a saa­da mais salutar e produtiva. E, principalmente, baixar as exigaªncias sobre si mesmas pretendendo dar conta do mundo em um momento em que esse mesmo mundo estãode pernas para o ar.

De acordo com o que vocaªs tem verificado na cla­nica ou em pesquisas, o isolamento social ésentido de forma diferente para homens e mulheres? Em caso afirmativo, épossí­vel trazr uma relação com o machismo estrutural?

Simone Paulon: Sim, o impacto émaior nas mulheres e isso estãoligado ao machismo estrutural. A sobrecarga e acaºmulo de funções, a carga mental invisível, a violência doméstica e de gaªnero são produtos hista³ricos da cultura patriarcal e machista na qual nos encontramos.

As discrepa¢ncias entre o tempo dedicado por homens e mulheres a s atividades domésticas éabissal. Segundo dados do IBGE de 2018, antes da pandemia as mulheres já dedicavam o dobro de horas semanais ao trabalho domanãstico e/ou cuidado com pessoas, se comparado aos homens.

A pesquisa recente “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia” (realizada pela ONG “Gaªnero e Naºmero” e pela Organização Feminista “Sempreviva”), concluiu que entre as 2.641 mulheres entrevistadas, 47% afirmaram ser responsa¡veis pelo cuidado de outra pessoa: 57% são responsa¡veis por filhos de até12 anos, 6,4% afirmaram ser responsa¡veis por outras criana§as, 27% afirmaram ser responsa¡veis por idosos e 3,5% por pessoas com alguma deficiência. Essa pesquisa fornece elementos importantes para olharmos as dina¢micas sexistas do cotidiano dos domica­lios, e compreendermos que a pandemia pa´s em foco a intensificação e o aprofundamento de dina¢micas de desigualdade que estruturam a sociedade brasileira e são sentidas no dia a dia das mulheres.

A violência de gaªnero também se agravou no contexto da pandemia. A situação de isolamento fa­sico intensifica, por exemplo, a masculinidade ta³xica e uma resposta violenta ao conflito.

Um indicador interessante são os servia§os de disque-denaºncia (como o 180). A Ita¡lia, que iniciou o isolamento social mais cedo, registrou um aumento de 161,71% nas denaºncias entre os dias 1º e 18 de abril, de acordo com órgãos oficiais. O serviço argentino teve um aumento de 39% na segunda quinzena de mara§o. No Brasil, o aumento foi de 14% no primeiro quadrimestre, com o a¡pice em abril, registrando aumento de 37,6% em relação ao ano anterior. Isso equivale a 37,5 mil denaºncias apenas nos quatro primeiros meses. 

a‰ preciso, ainda, contextualizar que mesmo antes da pandemia, o Brasil já era o 5ºpaís do mundo no a­ndice de feminica­dios, hános figura entre os piores em termos de desigualdade de renda e éconsiderado opaís que mais mata pessoas LGBTQI+. 

Atentas a esses desafios, desde o maªs de mara§o comea§amos a nos organizar para um possí­vel auxa­lio emergencial a mulheres em situação de violência doméstica durante a quarentena. Transformamos as atividades presenciais do então recente projeto “Cla­nica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade” em atividades remotas, e, junto a  ONG Themis - Justia§a de gaªnero e Direito Humanos - disponibilizamos canais de escuta sistema¡tica - tanto em grupos como individualmente - a s mulheres que trazem marcas desta desigualdade.

Atravanãs dos canais no Facebook e Instagram oferecemos Espaços de acolhimento e promoção de saúde mental, e também orientações elementares (como o funcionamento dos canais de acesso a  justia§a e dos servia§os da rede pública de atendimentos na área de saúde e justia§a), dicas culturais e possibilidades de encontros remotos. a‰ importante que as mulheres em situação de vulnerabilidade por violência doméstica não confundam o isolamento fa­sico com isolamento afetivo e busquem contatos sociais que rompam seus sentimentos de solida£o e sofrimento individual.   


Tipos de violência doméstica sofrida por mulheres brasileiras
durante a pandemia. Fonte: Relata³rio Pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das
mulheres na pandemia

A dificuldade da mulher na obtenção de reconhecimento, ta­tulos e postos semelhantes aos dos homens éhista³rica. Essa invisibilidade tem sido atribua­da ao preconceito, machismo e poder controlador. Qual o impacto da pandemia na vida da mulher-ma£e quanto a  produtividade e progressão da carreira?

Simone Paulon: O que temos percebido éa repetição de uma condição hista³rica, num contexto ata­pico. Com a pandemia, a tendaªncia éque este quadro se agrave e isto já tem aparecido, por exemplo, na diminuição do número de artigos cienta­ficos submetidos por mulheres em relação a queles submetidos por homens nesse período. Levantamento recente do projeto brasileiro Parent in Science indica que 40% das mulheres sem filhos e 52% das mulheres com filhos não conclua­ram seus artigos neste período, contra 20% e 38% de homens na mesma situação. A média de manuscritos tendo mulheres como primeira autora foi de 37% entre 2016 e 2020, mas caiu para 13% neste 1º trimestre de 2020.

Vivemos em uma sociedade na qual as mulheres ainda recebem, em média, 30% a menos que os homens para desempenho de uma mesma função de trabalho, e que ocupam menos de 1/4 de cargos de liderana§a ou chefia, seja no serviço paºblico ou privado.

Outro indicativo da cultura colonial-racista-patriarcal no mundo do trabalho, diz respeito a s crescentes desigualdades observadas em carreiras que já foram tradicionalmente masculinas. Um exemplo cla¡ssico éa carreira jura­dica. Quando se avalia a distribuição de bacharanãis de direito na magistratura, os números são assustadoramente desiguais. As mulheres são apenas 35,9% dos membros da magistratura, percentual que diminui nos cargos mais altos do Poder Judicia¡rio: no esta¡gio inicial da carreira (juiz substituto) 42,8%, Jua­zas Titulares diminui para 36,6%, Desembargadoras 21,5% e Ministras de tribunais superiores somente 18,4%. 

Todos esses dados indicam que as desigualdades que já existiam no campo de trabalho se agravaram com a crise econa´mica resultante da pandemia.  

Muitas mulheres abandonaram o trabalho ou os estudos por não terem ajuda no cuidado com filhos ou porque passaram a ser cuidadoras de familiares idosos. Nesse contexto, que marcas a pandemia deixara¡ nessas mulheres?

Mara­lia Jacoby: Este éum ponto muito importante que ratifica a necessidade imperiosa de que nossa leitura e estratanãgias de intervenção estejam pautadas pelo reconhecimento das desigualdades sociais e das desigualdades de gaªnero que nos atravessam de forma tão contundente enquanto sociedade. a‰ preciso que exercitemos cotidianamente o reconhecimento de nossa ‘localização’ no social e o modo como se conformam os marcadores de raça, gaªnero e classe em nossas realidades pessoais e nas realidades das mulheres que escutamos. 

Assim como assinalamos anteriormente preocupações com os impactos da sobrecarga nas mulheres em trabalho remoto e circunscritas ao circuito das demandas domésticas e familiares, também não podemos deixar de enxergar os privilanãgios que se escancaram no contexto da pandemia (privilanãgios que operam como construção hista³rica e social de longa data). Para muitas, infelizmente, a proteção do isolamento não foi opção. As urgências do cotidiano e das necessidades ba¡sicas imperaram, expondo-as de variadas formas, reiterando para essas mulheres a marca do desamparo, da ausaªncia de proteção social e de políticas públicas efetivas.

O racismo éuma marca hista³rica pungente no Brasil e temos nas mulheres negras sua face mais atroz, estando elas na condição de maior vulnerabilidade social e psa­quica. Construir frentes de trabalho que atuem de modo incisivo no enfrentamento ao racismo deve ser condição prima¡ria de uma atuação cla­nica feminista.

Baseado no trabalho da Cla­nica Feminista épossí­vel inferir as perspectivas que as mulheres tem sobre a vida e os Espaços que elas ocupara£o após a pandemia? E o que as mulheres podem fazer coletivamente para enfrentar as dificuldades que o futuro pa³s-pandaªmico reserva? 

Simone Paulon: O que mais tem nos impactado desde que iniciamos os grupos com mulheres em situação de vulnerabilidade éa capacidade organizativa e solida¡ria que elas rapidamente desenvolvem para lidar com as inaºmeras adversidades. Contrariando a caricatura competitiva, o que vemos são mulheres aprendendo a cuidarem de si para se fortalecerem mutuamente e seguirem cuidando de quem depende delas. Mulheres inventando formas de sobrevivaªncia cotidiana que va£o desde a troca de farinha nas janelas atémovimentar redes imensas de doações de cestas, confecção de máscaras e busca de conexões com gente dopaís todo para ampliarem seus limites de cuidar. 

Essa generosidade e capacidade de organização podem ser os mais importantes aprendizados que a pandemia nos trara¡. Mas isso precisa ser potencializado, apoiando coletivos feministas, transformando concretamente os Espaços de representação pola­tica em Espaços de todos, apoiando candidaturas de mulheres negras - as mais atingidas pelas desigualdades dopaís - e cobrando das instituições públicas o devido investimento nas políticas sociais que vão sendo violentamente desmontadas. 

a‰ uma verdadeira reprodução da violência que o patriarcado já imputa a s mulheres, ao longo da história, que segmentos estatais responsa¡veis pelos direitos da mulher, pela defesa de direitos humanos, de saúde pública e de educação inclusiva,  incluindo as políticas afirmativas, venham sendo sistema¡tica e planejadamente desconstitua­dos no processo de recuo democra¡tico que vivemos no Brasil. O enfrentamento a s violências de todas as ordens, marcadamente as violências de gaªnero, não se dara¡ sem uma ruptura radical com a lógica colonial, racista e machista que estrutura nossa sociedade. Contudo, os pilares dessa sociedade estãotardiamente abalados, pois quando as mulheres va£o a s ruas éa potaªncia da criação que pede passagem. E como nos ensinou Angela Davis: “Precisamos nos esforçar para erguer-nos enquanto subimos". Em outras palavras, devemos subir de modo a garantir que todas as nossas irmãs e irmãos subam conosco.

 

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