Humanidades

Pietro Maria Bardi, fundador do Masp, éretirado do esquecimento por sua assistente
Musea³loga foca tese de doutorado em dia¡rio de viagem daquele que formou a principal colea§a£o de arte europeia da Amanãrica do Sul
Por Luiz Sugimoto - 31/08/2020


Pietro Maria Bardi : Durante entrega do tí­tulo de Doutor Honoris Causa da Unicamp, em 20 de dezembro de 1989

“Bardi estãomuito esquecido”, diz a musea³loga catarinense Eugaªnia Gorini Esmeraldo, que por 14 anos foi assistente de Pietro Maria Bardi (1900-1999), fundador e diretor do Museu de Arte de Sa£o Paulo (Masp), e que resolveu tira¡-lo do esquecimento em tese de doutorado focada em dia¡rio de viagem escrito em 1933 osentão ainda jovem, o galerista foi enviado de Na¡poles, durante o governo fascista de Benito Mussolini, para organizar uma exposição de arquitetura racionalista italiana em Buenos Aires. “O navio aportou em alguns portos brasileiros, de modo que foi o primeiro contato de Bardi com opaís que, anos depois, em 1946, ele escolheria para morar a convite do empresa¡rio Assis Chateaubriand, para juntos criarem o Masp.”

Chateaubriand, ou Chata´, era um dono de jornais, ra¡dios e revistas que depois introduziu a televisão no Brasil (a hoje extinta TV Tupi). Bardi, nascido em La Spezia, participou da fundação do museu desde o primeiro dia. “Eles se conheceram no Rio assim que Bardi chegou aopaís, com Lina Bo [1915-1992], sua mulher, arquiteta cada vez mais reconhecida, o que émuito justo. Bardi passou a escrever nos jornais de Chata´ em Sa£o Paulo e no Rio, divulgando que seria criado um museu de arte. A inauguração ocorreu em outubro de 1947 e foi um organismo cultural inanãdito, com escolas, orquestra, cursos e conferaªncias. O acervo pequeno do ini­cio se fortaleceu com as obras adquiridas na Europa e Estados Unidos por Bardi, grande conhecedor de pintura e do mercado de arte. a‰ a principal coleção de arte europeia da Amanãrica do Sul e, atéhoje, uma referaªncia internacional”, conta a autora da tese.

Eugaªnia Gorini, que havia feito jornalismo antes de vir para Sa£o Paulo, foi aceita no curso de especialização em museologia do Masp em 1978 e, em menos de um maªs, já estagiava com Anna Carboncini, assistente de Bardi. “Ele escrevia seus textos a  ma£o e, devido a  prática jornala­stica, eu conseguia ler os manuscritos e passei a transcrevaª-los. Isso nos aproximou e em fevereiro de 1979 virei sua assistente osAnna ficou responsável pelo acervo. Apesar da diferença de idade, eu me tornei próxima de Bardi, que também dava aulas no curso de museologia e eram muito boas”, recorda a musea³loga, que foi orientada pelo professor Jorge Sidney Coli Junior, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Jorge Coli orientou a aluna também no mestrado (2000), em torno de três obras de Edouard Vuillard, da coleção do Masp. Quanto a  pesquisa de doutorado, o professor a considera fora do comum em vários sentidos, e não apenas pela alta qualidade. “Eugaªnia a realizou num momento da vida em que um tí­tulo de doutor não incide sobre sua carreira, como ocorre com o pesquisador que tem pela frente um percurso profissional. Fez seu trabalho por pura generosidade intelectual. Além disso, a tese éparticularmente preciosa, porque a pesquisadora foi assistente do professor Bardi durante longos anos e tem uma familiaridade não apenas intelectual, mas pessoal com seu objeto de estudo. Enfim, revela documentos inanãditos, que ela éuma das poucas pessoas a conseguir decifrar (a escrita de Bardi équase ilega­vel), cruciais para a história da arte no Brasil.”

Professor Jorge Coli, orientador da tese: “Pura generosidade intelecutal”

Enquanto assistente do diretor, a musea³loga participava de todas as atividades do Masp, atéporque eram poucos os funciona¡rios: das montagens de exposições, que variavam a cada 15 dias, geralmente individuais de artistas novos ou consagrados; de pesquisas para as exposições; das respostas a  correspondaªncia dia¡ria do diretor; do arquivo hista³rico que se formava; da vistoria dos livros recebidos para a biblioteca. “Trabalhei no Museu até2017 [39 anos] e fiquei com muitos manuscritos de Bardi quando ele saiu em 1992. Bardi estãomuito esquecido. Na Unicamp, ele recebeu o tí­tulo de Doutor Honoris Causa em 1989.” (Leia matéria publicada no JU 40, pa¡gina 9)

Eugaªnia comenta a experiência de retomar os estudos em sua faixa eta¡ria e diverte-se por ter mais idade que o orientador osela fez 73 anos em 12 de agosto (dois dias depois da defesa), ao passo que Jorge Coli são faz em 29 de novembro. “Foi interessante pelo a³bvio enriquecimento e pela constatação demudanças impressionantes no sistema brasileiro de ensino, além da variedade de origens geogra¡ficas e anãtnicas dos meus colegas. Tambanãm observei a diversidade de assuntos que permeiam o estudo da arte atualmente: cinema, arte pop, arte afro-brasileira, poesia, textos cla¡ssicos. Ao expor aos jovens colegas o objetivo da tese e minhas ideias iniciais, ainda com o tí­tulo 'A escrita de Bardi', em abril de 2014, e perceber o interesse deles pela figura hoje ma­tica com quem convivi, foi impactante. E reforçou a necessidade de retira¡-lo do esquecimento. Aos poucos foquei o trabalho no Dia¡rio de Viagem.”

Segundo a pesquisadora, trata-se de um texto inanãdito e muito pessoal, escrito na viagem de navio para Buenos Aires, e que foi encontrado hálguns anos por Ivani Di Grazia Costa, coordenadora da biblioteca do Masp. “Estava em meio aos livros raros que Bardi e Lina doaram ao museu em 1977: uma lombada pequena, escurecida pelo tempo, que chamava pouca atenção. Foi uma boa surpresa encontrar o dia¡rio de viagem sobre o qual Bardi a s vezes comentava. Era seu primeiro contato com cidades brasileiras, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos; no retorno o navio atracou em Santos e com outros passageiros Bardi esteve em Sa£o Paulo, onde visitou alguns lugares osapreciou o Butanta£, por exemplo. No manuscrito aparece um homem ainda jovem, passando por alguns conflitos pessoais. Nota-se seu espa­rito curioso, observador, por vezes ira´nico, coletor de informações e dados para transformar em textos.

Na ditadura Mussolini

Eugaªnia observa que o maior desafio, colocado por Jorge Coli ao propor o dia¡rio como objeto do estudo, implicou examinar a anãpoca em que Pietro Maria Bardi esteve ligado ao regime fascista de Benito Mussolini, que o convidou a dirigir a Galleria d'Arte di Roma em 1930. “Ele nunca escondeu isso. Bardi atuava como galerista em Mila£o e de repente ascendeu ao poder central na capital italiana osali fez carreira entre a elite e os intelectuais. Uma vez conversamos a respeito, contou que o Duce prometia uma Ita¡lia melhor para todos. Opaís tinha sido unificado no final do século 19, portanto, estava nos ina­cios a sua democracia, mas ainda havia a figura do rei. Foi complicado entender a realidade daquele momento pola­tico complexo (os problemas, as polaªmicas, as disputas internas do regime), algo distante de nosso mundo e ainda hoje em exame.”

Contudo, conforme salienta a ex-assistente, Bardi sempre se considerou jornalista e já ganhava notoriedade (e problemas) por sua capacidade de comunicação, sendo sabido que, como muitos dirigentes e intelectuais no regime, foi posto sob vigila¢ncia confidencial nos anos 1930. “Embora não fosse panfleta¡rio, ele escreveu muito em jornais contra a arquitetura oficial adotada e preferida por Mussolini, que julgava pesada e, sobretudo, ultrapassada; e em alguns artigos ira´nicos comentando casos do regime, não agradava a  vigila¢ncia. Busquei dados daquele momento em publicações italianas em que Bardi ésempre visto como um galerista importante, ha¡bil, articulado e ativo, que apoiava os artistas, inclusive alguns judeus que depois foram perseguidos ou se exilaram. Por volta de 1938 foi proibido de assinar artigos e não escreveu mais para jornais.”

A autora da tese transcreveu o dia¡rio de viagem da mesma maneira que Bardi escreveu, com os mesmos Espaços, ao passo que no portuguaªs usou formato corrido e tom diferente, incluindo comenta¡rios de fatos que conseguiu localizar e deduzir. Ela agradece a ajuda de Anna Carboncini e Paolo Rusconi para decifrar termos do manuscrito, bem como de Raaºl Antelo sobre personagens citados e de Jorge Schwartz para elucidar expressaµes locais. “Creio que o leitor compreendera¡ um pouco mais de uma pessoa que muito fez pela cultura brasileira. Seu período no Brasil éconhecido por seus livros sobre o Masp, mas na tese éo Bardi ainda italiano, de modo que traz este aspecto novo. Tentei sempre manter a isenção e separar assuntos para evitar o perigo da complacaªncia e da hagiografia [biografia de santos], o que nem ele gostaria.

Lina Bo Bardi na Casa de Vidro, doada pelo casal para criação de centro de pesquisa
(Foto de Chico Albuquerque)

Doações ao Brasil

Pietro Maria Bardi naturalizou-se brasileiro em 1951 e, de acordo com Eugaªnia Gorini, não escondia seu orgulho por ter adquirido para opaís grandes pinturas como o “Conde Duque de Olivares” de Diego Velazquez, “A Ressurreição de Cristo” de Rafael (neste ano se comemora os 500 anos do artista) e obras de Monet, Manet e Canãzanne. “O Masp éconhecido pela alta qualidade das obras impressionistas e Bardi tinha o olho para fazer a escolha certa. Ele mesmo se jactava desse seu talento. Um aspecto importante éque Bardi doou muito ao Brasil. Deu várias pinturas para o Masp; os desenhos que tinha de Le Corbusier, ilustrando conferaªncias feitas no Rio de Janeiro ainda antes da sua chegada aopaís, doou ao Iphan [Instituto do Patrima´nio Hista³rico e Arta­stico Nacional]; e o casal ainda deixou sua residaªncia, a Casa de Vidro, no Morumbi, para ser um centro de pesquisa de arquitetura e arte, que justamente se chama ‘Instituto Lina Bo e P.M. Bardi’”.

 

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