Humanidades

Cola³quio celebra os 100 anos de Clarice Lispector
Evento acontece nos dias 19, 20 e 21, com transmissão pela plataforma Youtube
Por Claudia Costa - 16/10/2020


Ilustração de Clarice Lispector por Tom Vieira

Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere.

(Clarice Lispector, em Um Sopro de Vida)

A escritora e jornalista Clarice Lispector (1920-1977) sempre foi um desafio a  cra­tica, desde que despontou como uma voz singular nas letras nacionais, nos anos 40, atéhoje, quando sua obra ganha projeção mundial com novas traduções e leituras originais. Em comemoração ao seu centena¡rio osa ser completado no pra³ximo dia 10 de dezembro -, o Cola³quio Internacional Cem Anos de Clarice Lispector vai reunir cra­ticos do Brasil, Portugal, Frana§a e Estados Unidos para discutir as várias faces dessa autora nascida na Ucra¢nia e naturalizada brasileira.

O cola³quio épromovido pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com organização das professoras Yudith Rosenbaum e Cleusa Rios Passos, respectivamente, dos Departamentos de Letras Cla¡ssicas e Verna¡culas e de Teoria Litera¡ria e Literatura Comparada. As mesas-redondas e atividades acontecem entre 19 e 21 de outubro, das 8h50 a s 17h30, com transmissão ao vivo e gratuita pelo canal da FFLCH na plataforma Youtube. Segundo a professora Yudith, a proposta éreunir uma grande diversidade de cra­ticos e de abordagens sobre Clarice Lispector. “Queremos dar espaço para as diferenças e para os modos de olhar a obra da Clarice, que ésempre muito instigante e maºltipla. O evento seráum grande painel que vai agregar essas várias leituras, permitindo que se possa compreender a complexidade de sua obra”, afirma.

A leitura cra­tica de Clarice Lispector tem crescido e a autora estãosendo revisitada, como informa Yudith. “Clarice teve uma recepção cra­tica expressiva quando estreou de forma impactante, nos anos 40”, diz, citando o primeiro livro da escritora, Perto do Coração Selvagem, Depois foi ganhando um paºblico maior, a partir de Laa§os de Fama­lia, e ainda mais, depois da publicação de suas crônicas no Jornal do Brasil (1967-73). “Ela foi reconhecida, mas háondas dessa repercussão. E agora estãotendo uma ressonância mundial, com a tradução de sua obra para várias la­nguas”, destaca a professora, sem esquecer as muitas traduções que já foram feitas da obra de Clarice Lispector. Segundo a professora, esse novo boom da autora demonstra que a atualidade presente em sua obra continua despertando interesse.

“A sensação que eu tenho éque ela tem algo na linguagem, na escrita, que toca muito as pessoas. Ela faz com que o leitor se sinta desvelado, desnudado. Mostra um espelho, nem sempre belo, a s vezes atédeformado. Ela nos propicia um conhecimento de nosmesmos e do mundo das relações, da sociedade, da condição humana”, comenta Yudith. “Na³s nos sentimos olhados com muita nudez pela Clarice. Da¡ a impressão de que ela tem uma visão muito fustigada pela realidade, com uma sensibilidade peculiar. Quando coloca as questões, ela não acrescenta camadas de ilusão. Ao contra¡rio, vai descascando-as atéchegar a  nudeza da alma”, completa. “Ela não estãointeressada em nos apaziguar, e sim em nos despertar, chacoalhar mesmo, para que possamos sair de uma certa alienação”, continua a professora, ressaltando a potaªncia da escrita de Clarice.

“Era uma vez um pa¡ssaro, meu Deus!”

Clarice Lispector, ainda muito nova, acreditava que os livros nasciam em a¡rvores, mas, quando percebeu que havia pessoas que os escreviam, decidiu que era isso que queria, como conta a professora. Segundo Yudith, desde os 7 anos de idade, escrevia e enviava histórias infantis para um jornal de Recife, que nunca as publicou. Já adulta, publicou a crônica Ainda Impossí­vel, na qual explica por que nunca foi publicada quando criana§a: “Eu nunca tinha escrito uma história com começo, meio e fim. Eu escrevia a repercussão que algo causava em mim”. E ela tentou escrever uma ‘história arrumada’, mas na primeira frase percebeu que isso seria impossí­vel: “Era uma vez um pa¡ssaro, meu Deus!”. Segundo a professora, tudo era tão arrebatador para Clarice que a linguagem não dava conta de representar algo tão simples como o voo de um pa¡ssaro.

“A literatura de Clarice surpreende muito. Nãoéuma linguagem convencional. Ela escreve por vias obla­quas”, afirma Yudith. Para a professora, um dos melhores livros de contos da literatura brasileira do século 20 éLaa§os de Fama­lia, “um livro revoluciona¡rio, que reaºne contos de excelaªncia e que prepara para outros livros de Clarice, em que ela radicaliza”.

As mulheres de Clarice fazem constantemente movimentos de libertação, buscando sua própria força, como lembra a professora. “Nem sempre conseguem, como em Laa§os de Fama­lia. Mas, a partir de 1964, em A Legia£o Estrangeira e A Paixa£o Segundo G.H., elas va£o mais longe, atéchegar ao ponto de se perder na estranheza do mundo”, explica Yudith. Na opinia£o da professora, Clarice éuma escritora do efeito de estranhamento, em que as personagens estranham seu dia a dia e são empurradas a olhar de um jeito diferente para o mundo, levando-as a perceber a vida de forma menos limitada.

A professora ainda nota que Clarice usa expressaµes antitanãticas, como alegria difa­cil ou felicidade insuporta¡vel, mostrando que as coisas não são o que aparentam e que estãomuito longe de ser o que o senso comum determina. “Ela quer romper os clichaªs e esterea³tipos, por isso ela torce a linguagem. E não são a linguagem, mas os valores também, ou seja, o que consideramos louco ela pode considerar sadio, e o que consideramos normal ela pode considerar absurdo”, afirma a professora, comentando ainda que a escritora faz tudo “virar pelo avesso”, como  quando define o que éuma janela: “O que éuma janela senão o ar emoldurado de esquadrias?”.

“Perder tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser”

Clarice Lispector morou no Nordeste do Brasil e no Rio de Janeiro, e também em váriospaíses, por isso sua abertura cosmopolita. “Ela éuma autora brasileira, vertente muito importante dos estudos de Clarice, mas que ganhou a o mundo”, comenta Yudith. Para a professora, ela tem essa universalidade: “Ao mesmo tempo em que escreve sobre o Brasil, tematizando a questãoda desigualdade, das injustia§as, da intolera¢ncia e das diferenças, ela propaµe questionamentos sobre a fragilidade, o desamparo, as contradições”.

Além disso, diz a professora, Clarice Lispector éuma autora muito ampla e profunda. “Ela não apresenta um panorama, mas pega instantes da vida que trazem grandes transformações, por isso já foi chamada de ‘escritora do instante’”, revela Yudith. “Instantes que podem acontecer no mais prosaico cotidiano. Alia¡s, éaa­ mesmo que ela gosta de colocar situações que reverberam mais”, conta. “O fato de ter tanta sensibilidade devia fazer atémal para ela. Ver tanto éalgo que perturba. Mas, como a própria Clarice dizia: ‘Escrever éuma maldição. Mas uma maldição que salva’”. E, como lembra a professora, “a escrita élugar da transmutação dessas experiências muito intensas osClarice era uma personalidade muito intensa –, e essas intensidades ganham forma na literatura”.

Pode ser difa­cil ler Clarice Lispector, afirma a professora. Segundo ela, muitos leem e não gostam porque a sua crueza gera um certo mal-estar. “No fundo, Clarice mostra que nossas estruturas, psa­quica e social, estãoassentadas em uma ilusão de segurança, e que nos servimos de muletas. E ela tira esses apoios”, acredita Yudith. “Mas as pessoas va£o aos poucos descobrindo Clarice, tomando coragem e se aventurando mais em sua obra”, diz. Para Yudith, toda a aventura da obra de Clarice estãoem uma frase do seu romance mais perturbador, A Paixa£o Segundo G. H.: “Perder tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser”.

 “Ouve-me, ouve o silaªncio. O que te falo nunca éo que eu te falo e sim outra coisa”

O Cola³quio Internacional Cem Anos de Clarice Lispector vai reunir pesquisadores do Brasil e do exterior para descobrir como as pessoas leem Clarice, como diz professora. “Sa£o cra­ticos de várias gerações, com representantes dos estudos cana´nicos, que são sempre objeto de referaªncia, e novas gerações trazendo abordagens mais recentes de estudos da Clarice”, informa Yudith, lembrando ainda que a proposta do evento épromover um encontro de saberes pautado pela diversidade. “Nãovamos dar conta de todas as faces de Clarice. Ela éinesgota¡vel, assim como os grandes autores”, avisa.

Entre os convidados estãopesquisadores que já deixaram vários legados e continuam estudando a autora, caso das professoras Lucia Helena (Universidade Federal Fluminense) e Regina Pontieri (USP), que estara£o na primeira mesa do evento, no dia 19, a s 9 horas; e da bia³grafa Na¡dia Battella Gotlib (USP) ao lado da estudiosa Aparecida Nunes (Universidade Federal de Alfenas, MG), que participam, na sequaªncia, da segunda mesa.

Outro destaque da programação éa relação entre Clarice Lispector e as linguagens arta­sticas. No dia 21, quarta-feira, a partir das 15h45, a mesa Clarice no Cinema apresenta um debate entre a psicanalista Maria Lucia Homem e a cineasta Marcela Lordy, diretora do filme O Livro dos Prazeres, baseado no romance Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, com a exibição de alguns trechos do longa. Ainda em fase de finalização, o filme já foi selecionado para mostras internacionais. Na sequaªncia, seráapresentado o mona³logo Clarice Lispector e Eu osO Mundo não éChato, com a atriz carioca Rita Elma´r (Praªmio Shell de melhor atriz em 1998 com a pea§a Que Mistanãrios Tem Clarice?), uma coleta¢nea de trechos da obra da escritora, que já foi montada no Rio de Janeiro.

“Queremos nos aproximar de Clarice por vários a¢ngulos. E que as pessoas possam refletir com densidade e profundidade sobre ela e a sua obra”, espera a professora. Ao final, como escrevem as organizadoras no material de divulgação do evento, que restem intervalos, vazios e lacunas, sem nomes que encubram o silaªncio osdesejo maior de Clarice Lispector -, ou como a própria escritora diz: “Ouve-me, ouve o silaªncio. O que te falo nunca éo que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela e estou a  tona de brilhante escurida£o” (agua Viva).

O Cola³quio Internacional Cem Anos de Clarice Lispector acontece de 19 a 21 de outubro, das 8h50 a s 17h30, com transmissão ao vivo e gratuita pelo canal da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP no Youtube. Nãohánecessidade de inscrição. Mais informações estãodisponí­veis no site da FFLCH e na pa¡gina do evento no Instagram e no Facebook.  

 

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