Humanidades

Engels, revoluciona¡rio e tea³rico socialista, faz 200 anos
No bicentena¡rio do pensador alema£o, professores da USP analisam sua importa¢ncia tea³rica para o marxismo
Por Luiz Prado - 30/11/2020


O pensador alema£o Friedrich Engels (1820-1895) osFoto: Reprodução

Revoluciona¡rio em busca de uma sociedade sem divisão de classes. Tea³rico do socialismo cienta­fico. Cra­tico enanãrgico da religia£o e da fama­lia. Coautor, ao lado do amigo Karl Marx, de um dos textos pola­ticos mais influentes da humanidade, o Manifesto Comunista. Este foi Friedrich Engels, nascido háexatos 200 anos, em 28 de novembro de 1820, em Barmen, no então Reino da Praºssia, hoje Alemanha.

Engels foi o primogaªnito de nove filhos de um industrial ligado ao setor taªxtil e cresceu em uma familia protestante animada por visaµes liberais. Abandonou os estudos aos 17 anos, sem nem mesmo terminar o que chamamos de ensino manãdio, para trabalhar nos nega³cios do pai. A experiência prática , sobretudo a atuação na fa¡brica da familia em Manchester, na Inglaterra, foi fundamental para sua trajeta³ria pola­tica e intelectual.

No cotidiano dos nega³cios da familia Engels conheceu as condições preca¡rias de vida dos trabalhadores industriais. Essa vivaªncia, somada a seu relacionamento com a opera¡ria irlandesa e militante pola­tica Mary Burnes, deu a Engels acesso aos opera¡rios e permitiu que ele reunisse material para escrever A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845).

“O mais relevante em Engels éa intuição, por conta de sua formação prática ”, comenta o professor Osvaldo Coggiola, do Departamento de Hista³ria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em história contemporâneae autor de Engels, o Segundo Violino (Editora Xama£, 1995). “Ele trabalhou desde a juventude na empresa do pai. Graças a essa experiência, tinha um privilanãgio nato da intuição. O capitalismo, ele o conhecia por dentro. Marx o conhecia por fora.”

Para Coggiola, esse conhecimento prático foi o que permitiu a Engels redigir os primeiros escritos econa´micos da dupla Marx-Engels, em 1843. “A primeira intuição a respeito do papel hista³rico do proletariado não foi de Marx, foi de Engels”, afirma o professor.

“Ele era um tea³rico 100%”

Karl Marx e Friedrich Engels osFoto: Reprodução

A parceria pola­tica e intelectual entre Engels e Marx comea§a no ini­cio da década de 1840. Duraria por toda a vida de ambos osMarx morre em 1883, Engels em 1895 ose resultaria na criação do manãtodo do materialismo hista³rico e dialanãtico.

Apa³s uma correspondaªncia inicial por cartas, Engels encontra pessoalmente Marx em 1844, quando este se acha exilado em Paris. Já no mesmo ano, escrevem juntos A Sagrada Fama­lia, cra­tica sarda´nica ao grupo de intelectuais alema£es conhecido como jovens hegelianos, com os quais Marx esteve associado em seus primeiros anos de estudos.

A formação acadaªmica de Marx, sua articulação filosãofica e a densidade de seus escritos subsidiaram, em parte, o julgamento de Engels como uma figura menor da dupla. Ele seria uma espanãcie de simples vulgarizador das ideias de Marx oséinteressante notar que o pra³prio Engels se considerava “o segundo violino” do amigo, daa­ o tí­tulo do livro de Coggiola. O professor considera importante ultrapassar essa visão e reenquadrar a contribuição de Engels para o marxismo.

“Ele era um tea³rico 100%, tanto quanto Marx”, aponta Coggiola. “Cada um tinha suas caracterí­sticas. Marx tinha formação acadaªmica, em filosofia, enquanto Engels não. Mas ele tinha um racioca­nio mais prático e mais abrangente.”

De acordo com Coggiola, enquanto Marx se ocupou basicamente de economia e pola­tica, Engels enveredou para questões hista³ricas em grande escala, além de examinar as ciências da natureza, como faz em Dialanãtica da Natureza (leia o texto abaixo). Interesse que passou pelo conhecimento direto da vinculação entre ciência e produção, fruto da experiência de Engels na fa¡brica.

O também professor do Departamento de Hista³ria da FFLCH Lincoln Secco corrobora a visão de Coggiola. “Engels disse certa vez que ele era apenas o ‘segundo violino’ e que a teoria que desenvolveu com Marx cabia principalmente ao pra³prio Marx”, destaca Secco. “Mas épreciso lembrar que, antes que Marx se desvencilhasse das disputas filosãoficas de sua juventude, Engels já refletia sobre a realidade econa´mica e pola­tica da Gra£-Bretanha.”

O professor cita artigos de Engels sobre as crises econa´micas e o movimento cartista osmovimento de trabalhadores ingleses do século 19 que lutavam por participação pola­tica -, além de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, que considera atéhoje importante. “Em 1843, quando tinha apenas 23 anos, ele escreveu a primeira cra­tica da economia pola­tica, que Marx mais tarde chamou de esboa§o genial”, acrescenta.

Ha¡ ainda outra distinção em relação a Marx que ajuda a tirar Engels das sombras e revela novos aspectos de sua contribuição a  parceria. Segundo Coggiola, Engels era mais desenvolto e possua­a mais relações do que Marx em mundos como o dos nega³cios e dos trabalhadores, caracteri­sticas que se mostrariam em sua obra.

“Marx era um indiva­duo de cara¡ter mais solita¡rio, interagia menos com as pessoas. E isso fazia com que Engels tivesse uma sensibilidade maior para questões hista³ricas, por exemplo”, explica o professor. “Perry Anderson, que éum estudioso bastante sanãrio, diz que em matéria de análise hista³rica Engels ésuperior a Marx”, acrescenta.

“Alguns jua­zos hista³ricos de Engels eram superiores aos de Marx e ele foi também um estudioso muito mais profundo do fena´meno das guerras”, concorda Secco. “Ele também procurou dar contribuições próprias a quilo que na anãpoca se entendia como história natural, por exemplo, no artigo O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem.”

Exemplo dessa pluralidade dos interesses de Engels éa obra A Origem da Fama­lia, da Propriedade Privada e do Estado (1884), na qual trata da opressão de gaªnero, do papel do casamento e do poder masculino na sociedade moderna. “Engels partiu principalmente do antropa³logo Henry Morgan e estabeleceu um va­nculo entre o patriarcado, a monogamia e a sociedade de classes”, comenta o historiador. “Embora com os esterea³tipos de seu tempo, ele percebeu que a familia individual moderna éfundamentada na escravida£o dissimulada da mulher.”

O Manifesto Comunista

O Manifesto Comunista, uma das obras mais
conhecidas de Marx e Engels osFoto: Reprodução

Em 1848, mesmo ano em que eclode a Revolução de 1848, Engels éincumbido, com Marx, de redigir o programa da Liga dos Comunistas, a primeira organização comunista internacional do proletariado. O resultado éo Manifesto do Partido Comunista, que viria a ser conhecido simplesmente como Manifesto Comunista.

Nas pa¡ginas concisas do manifesto, a dupla apresenta as ideias demolidoras de que a história da humanidade éa história da luta de classes e de que, no capitalismo, a burguesia detanãm os meios de produção enquanto explora um grupo despropriado, o proletariado, com sua dominação assegurada pelo Estado.

Diante desse quadro, a superação dessa dominação passa pela tomada do Estado, com o proletariado como protagonista de um processo que atravessaria o socialismo e culminaria na sociedade sem classes, o comunismo. Conciliando atividade intelectual e milita¢ncia, Engels se colocaria a  disposição dessas palavras já na Revolução de 1848-1849, inclusive tomando parte em levantes armados na Alemanha.

Engels e Das Kapital

Graças aos nega³cios da fama­lia, Engels pa´de ajudar economicamente Marx em diversas ocasiaµes e seu suporte financeiro foi fundamental para que o amigo pudesse se dedicar aos estudos e escrever sua principal obra, Das Kapital (O Capital). Uma relação que, a princa­pio, tiraria de Engels manãritos intelectuais e reforçaria sua figura eclipsada pelo amigo.

Coggiola, entretanto, indica a necessidade de entender essa relação dentro do projeto intelectual e pola­tico mais amplo da dupla. Conscientes das especificidades de trajeta³ria, pensamento e atuação de cada um, Engels e Marx atuaram de maneira coordenada. “Engels ajudou muito Marx para que ele redigisse O Capital, porque sabia que ele não teria dado conta de escrever uma obra com tal abrangaªncia e profundidade tea³rica”, comenta o professor. “Por isso, O Capital foi obra de Marx e muito dificilmente teria podido ser obra de Engels.”

Com a morte de Marx em 1883, naturalmente coube a Engels organizar o que viriam a ser os volumes 2 e 3 de O Capital. E aqui a história se torna ainda mais delicada.

“Hoje sabemos que ele teve que escolher textos num imenso volume de manuscritos inacabados”, explica Secco. “Obviamente, ele conhecia a intenção do autor melhor do que qualquer outra pessoa, mas ainda assim trata-se de uma intervenção em alguma medida arbitra¡ria.”

A contribuição de Engels para os volumes 2 e 3 de O Capital já rendeu polaªmicas, cra­ticas e buscas pela “palavra original” de Marx. Coggiola considera que o mais importante éentender o texto como um trabalho intelectual feito no meio da história e não como escrituras sagradas a  espera de revelações.

Secco partilha de visão semelhante e prefere destacar as contribuições que Engels trouxe para a obra. “Ele fez interpolações, notas, correções e atéescreveu trechos, como o capa­tulo sobre a rotação do capital varia¡vel. Mas também antecipou problemas importantes. O prefa¡cio de Engels ao livro terceiro se preocupa com o problema da transformação dos valores em prea§os de produção oso que mais tarde alimentaria uma copiosa literatura econa´mica atéhoje inconclusa.”

A questãoda vulgarização

Outro aspecto da biografia de Engels que costuma receber atenção éseu papel na popularização da obra de Marx, atravanãs de artigos e livros. a‰ o caso de livros como O Anti-Duhring (1878) e Do Socialismo Uta³pico ao Socialismo Cienta­fico (1880). Por esses textos, Engels muitas vezes foi acusado de simplificar demais o pensamento do amigo.

“Engels continuou a escrever depois da morte de Marx e ajudou a elaborar uma espanãcie de doutrina marxista para o movimento social-democrata da anãpoca, que muitos hoje consideram uma vulgata que sacrificou a dialanãtica em nome da popularização de ideias cristalizadas”, comenta Secco, salientando que não épossí­vel esquecer os manãritos pra³prios da obra de Engels.

Coggiola também vaª com cautela esse tipo de cra­tica e prefere destacar seus pontos positivos. “Em Engels hátextos de popularização que não encontramos em Marx. Por quaª? Porque alguém tinha de fazer isso.”

Coggiola lembra que Marx não viu o surgimento da Segunda Internacional e a criação dos grandes partidos socialistas, momentos que tornaram a popularização da teoria marxista necessa¡ria. “Engels teve que se ocupar disso diretamente. Sa£o questões que nascem das circunsta¢ncias hista³ricas. Ele viu surgir os partidos opera¡rios de massas. Marx não viu. Ele logicamente sabia que alguns dos argumentos de Marx, se não fossem apresentados de uma maneira mais sintanãtica, não seriam compreensa­veis para um vasto número de pessoas. Ele se deu a esse trabalho”, conclui Coggiola.

Nova edição de Dialanãtica da Natureza, de Friedrich Engels, élana§ada no Brasil

Entre 1873 e 1886, o pensador alema£o Friedrich Engels (1820-1895) redigiu os artigos e anotações que, em 1925, seriam publicados com o tí­tulo Dialektik der Natur (Dialanãtica da Natureza). Agora, no bicentena¡rio do pensador alema£o, a Editora Boitempo lana§a no Brasil uma nova edição dessa obra, com tradução direta do alema£o por Nanãlio Schneider. Com 400 pa¡ginas, Dialanãtica da Natureza éo 28º volume da Coleção Marx-Engels, iniciada pela Boitempo hámais de 20 anos.

A apresentação do livro éassinada pelo professor Ricardo Musse, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Nela, Musse mostra que, em Dialanãtica da Natureza, Engels reage contra o “manãtodo” filosãofico da metafa­sica aplicado a s ciências naturais, que o pensador alema£o propaµe substituir pela dialanãtica.

Para o adepto da metafa­sica osexplica Musse -, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, ima³veis, observados um após o outro, cada um em si mesmo, como seres permanentes. Aplicado a  pesquisa cienta­fica, o manãtodo metafa­sico revela suas limitações. “Unilateral e abstrato, esse procedimento enreda-se, conforme Engels, em contradições insolaºveis: atento aos objetos concretos, não consegue enxergar as relações; congelado no momento presente, não concebe a gaªnese e a caducidade; concentrado na estabilidade das condições, não percebe a dina¢mica; ‘obcecado pelas a¡rvores não consegue enxergar o bosque’.”


Capa do livro Dialanãtica da Natureza, publicado
pela Editora Boitempo osFoto: Reprodução

Já o manãtodo dialanãtico defendido por Engels osque teve ini­cio na Granãcia antiga e se afirmou somente no século 15, com o nascimento das modernas ciências da natureza oséo oposto, quase ponto a ponto, da concepção metafa­sica, destaca Musse. De acordo com o professor ossempre seguindo o pensador alema£o -, a dialanãtica não delimita de modo isolado os objetos nem os toma como algo fixo e acabado. Ao contra¡rio, investiga os processos, a origem e o desenvolvimento das coisas e as insere em uma trama complexa de concatenações e maºtuas influaªncias, na qual nada permanece o que ée tampouco na forma como existia. “Nela, os dois polos de uma anta­tese, apesar de seu antagonismo, completam-se e articulam-se reciprocamente. A causa e o efeito, vigentes em um caso concreto, particular, diluem-se numa  trama universal de ações reca­procas, na qual as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era causa, adquire, logo depois, o papel de efeito e vice-versa.”

a‰ por isso que Engels afirma, no Curso do Desenvolvimento Tea³rico desde Hegel, uma das partes que compõem a Dialanãtica da Natureza: “Como quer que se portem, os pesquisadores da natureza são dominados pela filosofia. A única questãoése querem ser dominados por uma filosofia ruim que estãona moda ou por uma forma do pensamento tea³rico que se baseia no conhecimento da história do pensamento e de suas conquistas”. O pensador alema£o completa esse pensamento: “Os pesquisadores da natureza ainda prolongam a vida aparente da filosofia recorrendo a s sobras da velha metafa­sica. Sa³ quando a ciência da natureza e a ciência da história tiverem absorvido a dialanãtica, desaparecera¡, por ser supanãrfluo, todo cacareco filosãofico na ciência objetiva oscom exceção da teoria pura do pensamento”. (Roberto C. G. Castro)

Dialanãtica da Natureza, de Friedrich Engels, tradução de Nanãlio Schneider, Editora Boitempo, 400 pa¡ginas, R$ 83,00.

 

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