Humanidades

Por que Maradona éimportante
Mariano Siskind vaª um hera³i cla¡ssico na vida complexa e falha de uma lenda do futebol
Por Liz Mineo - 06/12/2020


29 de junho de 1986, Diego Armando Maradona exibe a Copa do Mundo conquistada por seu time após uma vita³ria por 3 a 2 sobre a Alemanha Ocidental no Esta¡dio Azteca, na Cidade do Manãxico. Giuliano Bevilacqua / Abaca / Sipa EUA (Sipa via AP Images)

Arecente morte da lenda do futebol Diego Armando Maradona, que saiu das favelas de Buenos Aires ao estrelato, ganhou as manchetes em todo o mundo. A Argentina declarou três dias de luto nacional e houve uma manifestação global de pesar entre os fa£s do esporte mais popular do mundo. Maradona, que morreu de ataque carda­aco aos 60 anos em 25 de novembro, também foi uma figura controversa. Os fa£s o adoravam por suas habilidades extraordina¡rias no campo, seu carisma e sua defesa dos pobres. Os cra­ticos apontaram para sua vida de excessos, incluindo seu va­cio em drogas, traição, processos de paternidade, seu apoio a lideres esquerdistas como Fidel Castro e Hugo Cha¡vez e alegações de abuso domanãstico de uma namorada. Mariano Siskind, professor de la­nguas e literaturas roma¢nticas e de literatura comparada, falou que para compreender o fena´meno social e cultural por trás de Maradona, sua personalidade grandiosa e seu legado.

Perguntas & Respostas
Mariano Siskind


Por que Maradona, na vida e na morte, desperta tanta devoção e amor incondicional?

SISKIND: Acho que a comparação mais próxima com a dor coletiva pelo falecimento de Maradona na história argentina foi a morte de Eva Pera³n em 1952. Milhaµes de pessoas choraram no vela³rio paºblico de Maradona no Pala¡cio do Governo em Buenos Aires. Eu pessoalmente chorei três dias seguidos. Fiquei surpreso com minha própria reação. Nãofiquei tão surpreso com a demonstração pública de tristeza, mas quando o choro estãono centro da esfera pública, ele tem que ser interrogado: Por que exatamente estamos chorando? O que estamos lamentando com nossa profunda tristeza?

Anívelindividual, as pessoas choraram em luto pela morte de uma figura pública a quem amavam profundamente. Mas também estavam de luto pela própria juventude, pelo seu passado, porque a presença de Maradona em nossas vidas estãoligada a momentos muito felizes de nossas vidas. A morte de Maradona também tem um importante significado social e pola­tico porque quando estava em sua melhor forma na Copa do Mundo de 1986, e a Argentina estava no ini­cio de sua transição democra¡tica com Raaºl Alfonsa­n como presidente, ele foi capaz de criar, por breves momentos, um senso de comunidade, uma comunidade de pessoas maravilhadas com o que Maradona estava fazendo. Nãofoi necessariamente um sentimento nacionalista, pelo menos não para mim, mas a possibilidade de uma espanãcie de ser em comum, o que éraro senão impossí­vel em um lugar como a Argentina, umpaís sempre em contradição consigo mesmo.

A outra coisa significativa sobre Maradona, especialmente para pessoas como eu, que são muito, muito seculares e não religiosas, éque quando ele estava no campo, ele criou algo que era semelhante a uma experiência divina secular, uma experiência que Hegel chama O absoluto. Para pessoas como eu, isso são acontece por meio da arte, mas o futebol éuma arte performa¡tica, pelo menos quando Maradona estava em campo. Para mim, Maradona éBeethoven; John, Paul, George e Ringo ensaiando no Abbey Road Studios para gravar o Álbum branco; Picasso pintando “Guernica”; ele éShakespeare, Cervantes, Joyce, Borges; ou Miles Davis e Bill Evans tocando juntos; e um pouco de “Antigone”. Assistir a Maradona foi semelhante a uma experiência de transcendaªncia.

“Acho que a comparação mais próxima com a dor coletiva pelo falecimento de Maradona na história argentina foi a morte de Eva Pera³n em 1952.”


Como vocêcompara Maradona com Pelé, o atacante brasileiro dos anos 1970, e Lionel Messi , o melhor jogador do mundo atualmente? Quem éo maior de todos?

SISKIND: Este éum debate intermina¡vel entre os fa£s de futebol em todo o mundo. a‰ muito difa­cil estabelecer um argumento objetivo em favor de um ou dos outros dois. Pelée Messi são absolutamente incra­veis em termos de habilidade e talento. Acho que ninguanãm mais entra na conversa. Mas Pelée Messi jogaram em times com outros jogadores de futebol incra­veis. Quando Peléjogou pela Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970, sem daºvida o melhor time da história de todas as Copas do Mundo, ele jogou com cinco ou seis dos melhores jogadores do mundo ao seu lado. Messi, por mais que eu ame o Messi ... suas maiores conquistas no Barcelona foram cercadas por Xavi, Iniesta, Busquets e outros jogadores incra­veis. Mas Maradona em 1986 ganhou a Copa do Mundo sozinho. A seleção da Argentina teve jogadores eficazes, mas éisso. No Manãxico 86, Maradona teve o desempenho individual mais nota¡vel da história da Copa do Mundo. Muitas pessoas diziam que qualquer time pelo qual Maradona jogou em 1986 iria ganhar a Copa do Mundo. Quando foi jogar no Napoli, Maradona levou o time ao primeiro campeonato italiano. Naquela anãpoca, os times do norte da Ita¡lia tinham os melhores jogadores. Mais uma vez, Maradona estava praticamente sozinho em Napoli, exceto quando ganhou o primeiro scudetto. E ele iria ganhar mais uma, além de uma Copa da Europa. O Napoli nunca havia vencido também, não voltou a vencer depois que Maradona saiu em 1991. Ele sempre jogou em times meda­ocres. Maradona levou a equipe ao primeiro campeonato italiano. Naquela anãpoca, os times do norte da Ita¡lia tinham os melhores jogadores. Mais uma vez, Maradona estava praticamente sozinho em Napoli, exceto quando ganhou o primeiro scudetto. E ele iria ganhar mais uma, além de uma Copa da Europa. O Napoli nunca havia vencido também, não voltou a vencer depois que Maradona saiu em 1991. Ele sempre jogou em times meda­ocres. Maradona levou a equipe ao primeiro campeonato italiano. Naquela anãpoca, os times do norte da Ita¡lia tinham os melhores jogadores. Mais uma vez, Maradona estava praticamente sozinho em Napoli, exceto quando ganhou o primeiro scudetto. E ele iria ganhar mais uma, além de uma Copa da Europa. O Napoli nunca havia vencido também, não voltou a vencer depois que Maradona saiu em 1991. Ele sempre jogou em times meda­ocres.

Mas isso por si são não explica a figura ma­tica de Maradona. Ha¡ outros elementos: seu carisma e suas qualidades de lider aliadas a uma qualidade estanãtica superior a  de Peléou Messi, jogadores de futebol incra­veis, mas Maradona praticava um esporte diferente, uma forma de arte. Observando Maradona, experimentamos algo semelhante ao que Immanuel Kant definiu como o sublime. A experiência do sublime desestabiliza nossa subjetividade e, por um momento, estamos desfeitos; nosnos perdemos. a‰ algo que ultrapassa o que ésimplesmente belo.

Vamos falar da Copa do Mundo de 1986 e da hista³rica partida entre Argentina e Inglaterra nas quartas de final que consolidou grande parte da celebridade de Maradona. De que forma seu desempenho e seus dois gols se tornaram cruciais para sua lenda?

SISKIND: Maradona marcou dois gols. A primeira éconhecida como “ Ma£o de Deus ” porque éassim que a explica depois de marcar com a ma£o esquerda, e a segunda éo “ Gol do Sanãculo ”. O primeiro objetivo estabeleceu o legado de Maradona como uma figura ma­tica em todo o Terceiro Mundo e no Sul global. Existem duas interpretações desse objetivo que rompem com as linhas geopolíticas: a visão moralista ta­pica dos EUA e brita¢nica dizia que isso era trapaa§a, mas na Amanãrica Latina, na áfrica e no Terceiro Mundo, eles vaªem isso como uma forma de humilhar uma ex-potaªncia colonial e a expressão máxima de astaºcia ou astaºcia, que écentral para uma concepção laºdica do jogo (e da vida) que estãofora do reino da moralidade.

O “Gol do Sanãculo” veio poucos minutos depois e éum daqueles momentos em que Maradona tornou possí­vel o impossí­vel com seu doma­nio divino do jogo. A quantidade de decisaµes que ele teve que tomar durante aqueles 10 segundos mostrou um QI de futebol e uma habilidade além da compreensão, um verdadeiro gaªnio no trabalho. Ha¡ uma reveraªncia universal pelo que Maradona realizou naquele dia com aqueles dois objetivos, mas o segundo foi literalmente extraordina¡rio, fora do comum; aºnico, impossí­vel.

Vocaª éda Argentina, umpaís louco por futebol. O que Maradona representou para a maioria dos argentinos?

SISKIND: Os argentinos são um bando de gente complicada e raramente hácordo sobre qualquer coisa. Houve um consenso universal, um amor universal por Maradona como jogador no auge de sua carreira. Mas, especialmente depois da aposentadoria de Maradona, ele se tornou mais polaªmico e muito pola­tico, e não tinha medo de tomar partido e expressar suas opiniaµes políticas. Para algumas pessoas, a admiração por Maradona se tornou uma forma condicional de amor: “Sim, ele era um grande jogador, mas era um viciado” ou “Ele éincra­vel, mas apa³ia regimes pola­ticos ou partidos pola­ticos dos quais discordo”. Eu pessoalmente acho isso muito ma­ope. Vocaª não escolhe quem ama ou por quem chora. Vocaª ama quem ama, e se pensa que pode escolher não amar alguém por causa de seus desacordos com essa pessoa, ou por causa de suas imperfeições, vocênão sabe nada sobre o amor.

Quem foram os cra­ticos mais duros de Maradona? Quem eram seus fa£s mais ferozes?

SISKIND: O que sempre foi particularmente comovente éo amor incondicional dos pobres por Maradona. Nestes últimos dias de luto paºblico, vi centenas de entrevistas com pessoas dizendo que quando não tinham dinheiro, quando estavam sem trabalho, quando estavam com fome ou sem esperana§a em suas vidas misera¡veis, assistir Maradona jogar era a única coisa que os deixava felizes. Sinceramente, não entendo como isso não leva ninguanãm a s la¡grimas ou muda sua visão sobre o significado social do futebol e de uma figura como Maradona. Ele era reverenciado na Argentina, em Napoli, em todo o Terceiro Mundo e por aqueles em qualquer lugar do mundo para quem o futebol éuma parte importante de suas vidas. Muitas das cra­ticas a Maradona tem um tom elitista e também muito moralista. Acontece que eu acho que o moralismo como forma de interpretar o mundo éabsolutamente desinteressante e, francamente, não muito inteligente. a‰ muito redutor, para não dizer hipa³crita. Ha¡ uma visão elitista e um julgamento moralista na base dessas formas de amor condicional e condenações contundentes de Maradona.

Maradona nasceu em Villa Fiorito, uma favela na periferia da cidade de Buenos Aires. Ele tinha sete irmãos; seu pai era um opera¡rio; e sua ma£e ficou em casa com as criana§as. Eles moravam em uma casa onde quando chovia, chovia dentro de casa. Ele sempre contou a história de como quando era criana§a, sua ma£e nunca tinha fome, e como ele percebeu mais tarde na vida que sua ma£e não comia porque não havia comida suficiente para todos. O que éinteressante sobre Maradona éque ele nunca se esqueceu ou deixou ninguanãm esquecer de onde ele veio. Trouxe Villa Fiorito com ele para as alturas do mundo, e mesmo quando morava em mansaµes e tinha os carros mais caros e a vida mais privilegiada, sempre lembrava as pessoas de suas origens humildes. Essa éuma das razões pelas quais os pobres da Argentina e de Napoli o amavam,

Além do va­cio em cocaa­na, Maradona teve muitos casos com mulheres e processos de paternidade. Como os fa£s de Maradona lidam com suas deficiências?

SISKIND: Eu não poderia me importar menos com seu va­cio em todos os tipos de substâncias, mas para que fique registrado, Maradona nunca tomou drogas para melhorar o desempenho. No entanto, estou incomodado com os casos relatados de violência de gaªnero. Estou incomodado pelo fato de que ele teve muitos filhos e filhas que são reconheceu mais tarde na vida. Para responder a  sua pergunta sobre como alguém chega a um acordo com esses aspectos de sua vida, não o fazemos. Porque não hánecessidade. Maradona era o mais imperfeito dos deuses humanos. Nãohánecessidade de reconciliar a contradição que nosso amor por ele cria em nós; vocêapenas vive com essa contradição da mesma forma que vive com as contradições em sua própria vida. Vocaª não chega a um acordo com isso. Moralidade e amor não andam juntos.

Vocaª éco-ministrador de um curso de humanidades sobre futebol, pola­tica e cultura popular com Francesco Erspamer desde 2012 e da¡ uma aula inteira sobre Maradona como o exemplo perfeito do cla¡ssico hera³i tra¡gico. Vocaª pode explicar?

SISKIND: Sim, eu queria muito incluir uma aula sobre o Diego! Para essa aula, proponho duas formas sociais, hista³ricas e culturais de abordar a figura de Maradona que esclarecem porque ele éuma figura tão significativa. Uma épor meio de “O nascimento da traganãdia” de Nietzsche, em particular a oposição e a relação que Nietzsche desenvolve em torno de Apolo e Dioniso como as figuras que representam as duas forças que definem os humanos em sua relação com o mundo ao seu redor. Por um lado, estãoApolo, o deus da poesia, da luz, do bem-estar, da ordem social, do comportamento racional e das formas medidas de liberdade. Para mim, Pelérepresenta uma figura apola­nea no mundo do futebol. Por outro lado, háDiona­sio, o deus das festividades, do vinho, da dança, da música, da loucura, do impulso sexual e das formas desenfreadas de liberdade. Para Diona­sio, não hámoralidade; hápenas desejo e éuma força de destruição criativa. Proponho que Maradona éa personificação perfeita do dionisa­aco em nós, e quanto importante éabrir espaço em nossas vidas, no mundo, para as formas de liberdade e desejo ilimitados que ele representa. Maradona e outras figuras dionisa­acas tornam possí­vel nos imaginarmos além das fronteiras das religiaµes sociais, nos imaginarmos nos libertando de estruturas que muitas vezes experimentamos como prisaµes asfixiantes.

Tambanãm argumento que Maradona encarna a figura do hera³i cla¡ssico por meio de nossa leitura da “Poanãtica” de Arista³teles, particularmente a seção sobre a traganãdia. Arista³teles explica que o hera³i éum semideus, filho de um deus ou deusa e um humano, portanto imperfeito, e que ele experimenta uma reversão da sorte (peripeteia) provocada por suas próprias falhas fatais (hamartia) ou por orgulho excessivo ( arroga¢ncia).A traganãdia do hera³i gira em torno de ter tudo para desfrutar de um lugar de destaque no mundo, mas não ser capaz de evitar causar sua própria queda. Na aula, estabelecemos como Maradona se tornou um hera³i entre 1979 e 1990 e como, por meio de suas falhas, ele causou sua própria morte em 1991, em 1994 e em muitos momentos depois de sua vida. Arista³teles também disse que o hera³i tem um momento de redenção quando reconhece que suas ações o levaram a  queda, ele chama de anagnorisis . No arco narrativo da vida de Maradona, háuma bela cerima´niacelebrando sua carreira no esta¡dio do Boca Juniors em 2001 quando reconheceu suas deficiências, que éseu momento de redenção. Naquele dia ele elaborou um dos tantos epigramas brilhantes que hoje fazem parte do inconsciente da cultura popular argentina: “Paguei caro por meus erros, mas a bola nunca serámanchada”.

Essas duas perspectivas devem nos ajudar a entender por que o paºblico em todo o mundo estãofascinado por Maradona. Arista³teles disse que a traganãdia tem uma função social e pola­tica, e ele a explicou por meio da noção de catarse: o paºblico expurga suas emoções prejudiciais sociais e políticas ao testemunhar a queda do hera³i tra¡gico. Essas duas leituras nos ajudam a compreender a importa¢ncia hista³rica de Maradona de maneiras não moralistas.

Vocaª convidou Maradona para vir para Harvard em 2017 ...

SISKIND: Eu queria que ele viesse para Harvard porque teria sido extraordina¡rio. Teria sido o ponto alto do meu tempo em Harvard [risos]. Piadas a  parte, Maradona era um homem incrivelmente inteligente, e um dos sinais de sua inteligaªncia era que ele era capaz de formas muito perspicazes de autocra­tica e era um observador muito perspicaz das relações de poder no futebol e na sociedade. Ele também era extremamente engraçado.

Eu sabia que Maradona não tinha visto desde a Copa do Mundo de 1994, que foi realizada nos Estados Unidos. Ele foi mandado de volta para casa após teste positivo para drogas. Eu esperava que o convite oficial em papel timbrado de Harvard influenciasse a opinia£o dos oficiais de imigração no comando, mas superestimei o prestígio do nome Harvard [risos]. Para mim, o fato de os EUA terem negado o visto várias vezes, junto com os obitua¡rios publicados pelos jornais nacionais mais importantes no dia seguinte a  morte de Maradona, mostra como o moralismo e o provincianismo ainda prevalecem na cultura americana. Nunca deixa de me surpreender como mesmo as elites culturais mais sobrecarregadas dos Estados Unidos exibem uma profunda falta de interesse e compreensão por qualquer fena´meno social, cultural e hista³rico que acontece fora dos Estados Unidos,

Agora que Maradona se foi, qual seráseu legado? Como vocêespera que as pessoas se lembrem dele?

SISKIND: Ele serálembrado como o maior jogador do esporte e da prática cultural mais popular que existe no mundo. Espero que com Maradona, como com outras grandes figuras hista³ricas, o passar do tempo ajude as pessoas a ter uma perspectiva sobre seus defeitos humanos e que ele seja reconhecido como a figura hista³rica significativa que foi. A comoção global que vimos nos últimos dias após sua morte aumenta essa lenda e seu lugar na história. Acho que os mais jovens que ouviram falar dele, mas não o viram tocar, tera£o um novo interesse por ele. Essa éminha esperana§a.

Esta entrevista foi editada em sua extensão e clareza.

 

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