Versão de Marcelo Cavallari evita termos que ganharam novos sentidos depois de escritos, como “anjo†e “Cristoâ€

O quadro Sa£o Joa£o Batista, de Leonardo da Vinci: o profeta échamado de “Joa£o, o que mergulha†na tradução de Cavallari osFoto: Wikipedia
“E falou a eles o naºncio: ‘Nãotemais, pois osVaª! osbem-anunciamos a va³s uma alegria grande a qual serápara todo o povo porque foi parido para va³s hoje um salvador que éungido senhor em cidade de Davi. E este sinal para va³s: achareis um bebaª envolvido em cueiros e deitado em cocho’.â€
Assim foi anunciado o nascimento de Jesus Cristo, segundo o Evangelho de Lucas, na versão do jornalista e tradutor Marcelo Musa Cavallari. a‰ um trecho extraado do livro Os Evangelhos osUma Tradução, recentemente publicado pela Ateliaª Editorial, em coedição com a Editora Mnema. Bilangue (grego-portuguaªs), a obra traz a tradução, direta do grego original, dos quatro Evangelhos osMateus, Marcos, Lucas e Joa£o -, feita por Cavallari, que também éautor da apresentação e das notas.
Na apresentação, Cavallari explica os critanãrios que orientaram a sua tradução, em que não aparecem termos comuns nas versaµes tradicionais dos Evangelhos, como “anjo†e “batismoâ€. “Nãohábsolutamente nada de errado com essas palavras do ponto de vista do significado que vieram a ter ao longo dos séculos de cristianismoâ€, escreve o jornalista. “Elas são, no entanto, simples transliterações de palavras gregas. Quando foram escolhidas pelos evangelistas, tinham significados conhecidos por todos e não era o significado tanãcnico ou teola³gico que se cristalizou em torno delas.â€
a‰ por isso que, em sua versão dos textos sagrados do cristianismo, Cavallari substituiu “anjo†por “naºncio†(mensageiro), por exemplo, e, em vez de grafar “Cristoâ€, utilizou “ungidoâ€. “Preteri a palavra ‘anjo’, que vem etimologicamente de a¡ngelos, ou, antes, éuma simples transliteração da palavra grega, porque ela não significa ‘mensageiro’ em portuguaªs. Significa ‘anjo'â€, explica o jornalista numa das 591 notas que acompanham a tradução.
Quanto a palavra “Cristoâ€, trata-se apenas de uma transliteração. “‘Cristo’ vem de khrista³s, particapio perfeito do verbo khrao, em seu sentido de ‘untar’. Os escolhidos de Deus para o sacerda³cio, como Ara£o, ou para reinar sobre Israel, como Davi, eram ungidos com azeite, assim como o altar dos sacrifacios, para são então exercer suas funções. Jesus éo ungido por excelaªncia.â€
Os anjos anunciam o nascimento de Jesus Cristo: na tradução de Cavallari,
eles são chamados “naºncios†osFoto: Wikipedia
A palavra “fanã†ospastis em grego ostambém não aparece nos quatro Evangelhos, de acordo com a tradução de Cavallari. No lugar dela, surge o termo “confiana§aâ€, como no trecho em que Jesus recomenda a seus discapulos: “Amanãm de fato digo a va³s: quando tenhais confianção como gra£o de mostarda, direis a este monte: ‘Anda daqui para la¡â€™, e andara¡. E nada seráimpossível para va³sâ€. “Embora as duas palavras tenham a mesma raiz, ‘fanã’ adquiriu um sentido mais estritamente religioso que pastis não tinhaâ€, justifica o jornalista.
Em vez de “batismoâ€, laª-se “mergulho†na versão de Cavallari. Citado nos quatro Evangelhos, o profeta Joa£o é“Joa£o, o que mergulha†ose não “Joa£o Batista†-, e as multidaµes que va£o a ele eram “mergulhadas†no rio Jorda£o. Quando o pra³prio Jesus se encaminha para Joa£o, a s margens do Jorda£o, o profeta lhe diz: “Eu tenho necessidade de por ti ser mergulhado e tu vens a mim?â€. Cavallari sustenta: “‘Mergulhar traduz o termo baptazo. O termo se refere a mergulhar alguma coisa em um laquido e era muito presente na linguagem de alguns ofacios, como o dos tintureiros e ferreiros. Mergulhando o tecido numa tinta cheia de corante, mudava-se a cor do tecido. Mergulhando-se a ferramenta de ferro recanãm-forjada ainda quente na a¡gua, transformava-se o ferro em aa§o. a‰ possivelmente por seu cara¡ter de mudar instantaneamente algo, a cor do tecido ou a natureza da matéria, que se usa o termo para o ritual instituado por Joa£o, que ‘mudava a mente'â€.

A nova tradução dos quatro Evangelhos
 Foto: Reprodução
Já “pecado†estãopra³ximo do latim peccatum e distante do grego. Nas versaµes tradicionais, essa palavra traduz o termo original hamartaa, que Cavallari verte simplesmente para “erroâ€. Por isso, as palavras que Jesus dirige a um paralatico na aldeia de Cafarnaum soam assim na versão do jornalista: “Coragem, filho, teus erros se foramâ€.
“Nãotenho nenhuma pretensão de que minha tradução seja mais correta do que outras que usam todas essas palavrasâ€, afirma Cavallari, ainda na apresentação da sua tradução, referindo-se aos termos utilizados nas versaµes tradicionais dos Evangelhos que ele dispensou. “Apenas quis fazer soar aos ouvidos de um leitor da langua portuguesa as mesmas ressona¢ncias e ecos de significado que o leitor de grego experimenta diante do texto original.â€
Nascido em Sa£o Paulo em 1960, Cavallari éformado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde foi aluno de dois grandes mestres do grego e do latim, Isis Borges Belchior da Fonseca e JoséCavalcante de Souza, a quem ele dedica postumamente a sua tradução dos Evangelhos. Ali também teve como mestre o professor Joa£o Angelo Oliva Neto, autor do prefa¡cio do volume lana§ado pelas Editoras Ateliaª e Mnema. Como jornalista, trabalhou na Folha de S. Paulo e na revista a‰poca.
Os Evangelhos osUma Tradução, edição bilangue (grego-portuguaªs), tradução, apresentação e notas de Marcelo Musa Cavallari, Ateliaª Editorial e Editora Mnema, 512 pa¡ginas, R$ 125,00.