As bailarinas de Degas revelam uma nova realidade. Sem delicadezas
Exposia§a£o no Museu de Arte de Sa£o Paulo traz obras do artista francaªs em contraste com fotos de Sofia Borges

Bailarina de Catorze Anos, de Degas, 1880, bronze pintado e tecido, do acervo do Museu de Arte de Sa£o Paulo (Masp) osFoto: Joa£o Musa
Quase um bibela´. a‰ assim que o visitante do Museu de Arte de Sa£o Paulo (Masp) se acostumou a contemplar Marie van Goethem, a Bailarina de Catorze Anos, uma das obras mais conhecidas de Edgar Degas (1834-1917). a‰ exatamente essa escultura de 1880 que abre a mostra do artista francaªs. Poranãm, na atual exposição Degas osa última sobre o artista foi realizada há14 anos -, o Masp trava um importante desafio. Despe a bailarina da delicadeza que a destacou na arte ocidental do século 20 para contextualizar sua história com a de muitas mulheres deste tempo de pandemia da covid-19, de violência nas manifestações antirracistas, de diferenças sociais e de gaªnero.
Esse desafio émovido especialmente pelas imagens da fota³grafa paulista Sofia Borges. No decorrer de um ano, ela registrou detalhes que, atéentão, eram desconhecidos. Buscou não o rosto e as posições das modelos, mas os sentidos atravanãs do foco na expressão dos olhos e movimento dos maºsculos do corpo. O resultado impressiona. E o visitante vaª a delicadeza se transformando em detalhes que revelam uma outra realidade.
Com a curadoria de Fernando Oliva e Adriano Pedrosa, a mostra reaºne 73 bronzes, dois desenhos e uma pintura de Degas que foram adquiridos em 1950 por Pietro Maria Bardi para integrar o acervo do Masp. “Apenas três museus no mundo possuem essa coleção de esculturas: Glyptotek de Copenhague, Metropolitan de Nova York e Musanãe d’ Orsay, de Parisâ€, observa Pedrosa.
O artista conheceu a estudante de baléem suas frequentes visitas a a“pera de Paris. A bailarina de 14 anos era filha de uma lavadeira e um alfaiate que, como sua irmã, também se prostituiu.Â
Na imagem de Sofia Borges, a bailarina de olhos fechados não tem os traa§os de uma menina entregue aos pra³prios sonhos. A fotografia reproduz a sombra que aumenta a tensão do rosto. Degas captou esse movimento com perfeição. Mas não revela o que a fota³grafa brasileira conseguiu captar. A realidade da modelo estãosugerida na foto, sem a leveza que o artista insinuou e tem sido contemplada em todo o mundo.
“O artista conheceu a estudante de baléem suas frequentes visitas a a“pera de Paris. A bailarina de 14 anos era filha de uma lavadeira e um alfaiate que, como sua irmã, também se prostituiuâ€, acrescenta Pedrosa.
O Masp, ao contra¡rio de outros museus que priorizam a obra de Degas atravanãs de questões estilasticas e formais, prepara um cata¡logo que serálana§ado no inicio de 2021 com estudos de diversos especialistas. “Esse tipo de narrativa costuma ser evitado em projetos em torno de Degas desenvolvidos por museus ao redor do mundo, que se ocupam mais de questões estilasticas e formais em relação ao artista. A abordagem de sua obra por meio de uma perspectiva polatica, social e cratica estara¡, no entanto, no cata¡logo Degas: Dana§a, Polatica e Sociedadeâ€, adianta o curador Fernando Oliva.
Um artigo de Oliva integra o cata¡logo. Nele, o curador faz uma análise sobre as bailarinas e o artista. “Parece a³bvio que a questãodas condições de trabalho e da vida das bailarinas, funciona¡rias da a“pera, tema da exposição, não foi entendida como relevante o bastante para ganhar destaque.â€
O curador cita o exemplo do Museu d’Orsay. “Além de optar por não dar atenção ao problema dessas mulheres, manteve-se em uma posição de neutralidade em relação ao lugar privilegiado que Degas ocupava na sociedade parisiense e no elitizado sistema dessa casa de espeta¡culos. Pois, além de artista de prestígio a anãpoca, ele também era um abonnanã, um associado, gozando de tradicionais regalias, como descontos nos ingressos, lugares reservados e, em especial, passe livre para a lubricidade do foyer de la danse. O acesso privilegiado a s bailarinas movia toda uma dina¢mica de dependaªncia, assanãdio sexual e prostituição infantil.â€
 Alcunhado como pintor das bailarinas, esse clichaª atribuado ao artista tem sido reavaliado pelos especialistas, que hoje nos mostram uma realidade bem mais complexa.
Mulher Enxugando o Braa§o Esquerdo (Apa³s o Banho), de Degas, pastel sobre papel, do
acervo do Museu de Arte de Sa£o Paulo (Masp) osFoto: Joa£o Musa
A diretora do Museu de Arte Contempora¢nea (MAC) da USP, professora Ana Gona§alves Magalha£es, estãopresente no cata¡logo Degas: Dana§a, Polatica e Sociedade. Em sua tese de doutorado, orientada pelo professor Walter Zanini (1925-2013) e defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP em 2000, pesquisou as 73 esculturas em bronze do acervo do Masp.
“a‰ no final da era do baléroma¢ntico que Edgar Degas dedica-se a criação de suas representações do balée da bailarina, em vários meios técnicosâ€, observa Ana. “Alcunhado como pintor das bailarinas, esse clichaª atribuado ao artista tem sido reavaliado pelos especialistas, que hoje nos mostram uma realidade bem mais complexa, revelando um olhar moralista e misãogino por parte de Degas na abordagem da figura da bailarina e da figura feminina em geral.â€
Ana explica que a Bailarina de 14 Anos éum dos 28 exemplares em bronze que existem no mundo. Quando Degas morreu, em 1917, seus herdeiros e seu galerista, Joseph Durant-Ruel, responsa¡veis pelo inventa¡rio, encontraram muitas obras do artista em seu ateliaª. Cerca de 73 esculturas foram destinadas ao fundidor parisiense Adrien Hanãbrard, para serem reproduzidas em bronze.â€
A versão brasileira que édestaque na exposição Degas do Masp desembarcou no Brasil em janeiro de 1954. “Foi o ano em que o museu se encontrava em plena campanha de aquisição e promoção de seu acervo, e em que a cidade de Sa£o Paulo comemorava seu quarto centena¡rio.â€
Ana Magalha£es conta que a trajeta³ria da escultura de Degas revela que os modelos em bronze da pequena bailarina são objetos que ele jamais produziu. “Degas modelou a bailarina em cera, mas usou um tutu, um corpete, sapatilhas reais, e uma peruca penteada em uma trana§a presa com uma fita de cetim.â€
A exposição Degas fica em cartaz até1º de agosto de 2021, a s tera§as-feiras (das 10 a s 20 horas), quartas, quintas e sextas-feiras (das 13 a s 19 horas, com entrada atéas 18h30), sa¡bados e domingos (das 10 a s 18 horas, com entrada atéas 17h30), no Museu de Arte de Sa£o Paulo (Masp), localizado na Avenida Paulista, 1.578, em Sa£o Paulo. Entrada gratuita a s tera§as-feiras. a‰ obrigata³rio agendamento on-line pelo link masp.org.br/ingressos. Ingressos: R$ 45,00 (entrada) e R$ 22,00 (meia-entrada). Estudantes, professores e maiores de 60 anos pagam R$ 22,00.