Humanidades

Quando a fotografia éa paisagem do direito de sonhar e transformar
Fota³grafo Rodrigo Rossoni conta em livro a história do assentamento Piranema, no Espa­rito Santo
Por Leila Kiyomura - 28/03/2021


Acampamento Piranema, 1997: Ariane e sua boneca osFoto: Rodrigo Rossoni
 
Duas décadas acompanhando 65 fama­lias do assentamento Piranema, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Espa­rito Santo, levaram Rodrigo Rossoni, fota³grafo e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a uma pesquisa imaganãtica que vai além da estanãtica da arte ou da documentação do fotojornalismo. Passa a utilizar a fotografia como uma atividade educativa e de reflexa£o da própria realidade. Incentiva as criana§as e jovens desse assentamento no munica­pio de Funda£o a fotografarem, documentarem e serem protagonistas de suas próprias histórias.

O fota³grafo, professor e pesquisador Rodrigo Rossoni
e seu recanãm-lana§ado livro Olhares Comprometidos –
Fotografias e Identidades no MST osFoto: Divulgação

O resultado estãono recanãm-lana§ado livro Olhares Comprometidos osFotografias e Identidades no MST, recanãm-lana§ado pela Editora da UFBA. Originalmente, a obra éo trabalho de pa³s-doutorado de Rossoni, conclua­do em 2018 na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sob a supervisão do professor Ata­lio Avancini.

Tudo começou com a pesquisa de Rossoni para o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Jornalismo na Universidade Federal do Espa­rito Santo (Ufes). “Aquela manha£ de junho de 1997 foi o ini­cio de um profundo processo demudanças. Atéali eu era um jovem estudante de Jornalismo que, por mais que viesse de uma familia das classes populares, nunca havia vivenciado situações tão adversas e histórias tão drama¡ticas”, explica Rossoni. “O contato direto com aquelas realidades me fez compreender que, atéentão, eu tinha uma visão roma¢ntica da pobreza brasileira, uma visão influenciada por fotografias, cinema e literatura, por exemplo.”

As fotos em preto e branco das criana§as brincando entre os barracos improvisados, o olhar da menina segurando uma boneca e o bebaª dormindo sobre uma esteira abrem o livro. Foram as primeiras imagens que Rossoni registrou. “Depois da minha passagem, o sonho de conquistar a terra, enfim, realizou-se seis meses depois.” Um decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso desapropriou a fazenda Piranema e as fama­lias que estavam acampadas ali desde 1995 tomaram posse definitiva da terra.

“Por mais preca¡ria que parecesse ser a vida no acampamento, havia naquele Espaço-tempo uma riqueza material surpreendente”  


Olhares Comprometidos traz o contexto social e pola­tico do MST desde a sua fundação, em janeiro de 1984, e também as narrativas da anãpoca, divididas em dois polos distintos. “De um lado, a ampla e massiva criminalização das ações do MST pela imprensa brasileira, principalmente pela revista Veja e pela Rede Globo”, comenta Rossoni. “De outro, a pontual e menos extensiva cobertura de fotodocumentaristas independentes, entre eles Sebastia£o Salgado, que, ao objetivarem uma abordagem antaga´nica a  da imprensa, produziram outras significações importantes.”

“Um aprendiz de fotodocumentarista” écomo o fota³grafo se lembra e se autodefine. “A formação do meu repertório visual em muito se deveu a s aprendizagens advindas dos trabalhos de Salgado, que nos anos 1990 desfrutava de grande evidência midia¡tica.”

No entanto, ao se deparar com a realidade de Piranema, expressa em suas imagens, que foram repercutidas em jornais, revistas e exposições, Rodrigo Rossoni começou a questionar a função da fotografia e o papel do fota³grafo. Percebeu que, exatamente como Salgado, o seu olhar sobre o sofrimento e a misanãria era o de um estrangeiro. “Numa espanãcie de vivaªncia inocente, acreditei, na anãpoca, que as fotos contribuiriam para levantar debates e atéprovocar ações concretas do poder paºblico para mudar aquele quadro que eu considerava agressivo. Mas, ao contra¡rio do que acreditava, todos os olhares se voltaram para mim, o fota³grafo. A maioria dos visitantes das exposições elogiava a plasticidade das imagens e reforçava o sentimento de compaixa£o em relação ao outro. Muitos se emocionavam, outros choravam, enquanto algumas ma£es faziam questãode levar seus filhos para que as imagens servissem de exemplo para frear a reclamação cotidiana sobre suas próprias vidas. Nada mais que isso.”

Rossoni desistiu de fotografar. Abriu espaço para o pesquisador.

Acampamento Piranema, 1997: Leidiane, 2 anos, e o pequeno sem terra,
de dois meses osFotos: Rodrigo Rossoni
 

“Agora seria fundamental que as próprias criana§as já adolescendo deixassem de ser alvo de olhares estrangeiros para se tornarem protagonistas da sua própria história”


“Uma tarde de sa¡bado ensolarada, em 2003, marcou o meu retorno a Piranema”, conta o pesquisador, que então estava cursando mestrado em Educação na Ufes. Dessa vez, nada de objetivos audaciosos, expectativas transformadoras ou intervenções salvadoras. Apenas desenvolver prática s educativas atravanãs de oficinas de fotografia.”

O projeto foi aprovado pela comunidade e, em especial, pelos meninos e meninas que havia fotografado em 1997. “Agora seria fundamental que as próprias criana§as já adolescendo deixassem de ser alvo de olhares estrangeiros para se tornarem protagonistas da sua própria história e lascassem o seu olhar sobre o seu mundo vivido e sentido.”

Nessa volta, Rossoni encontrou as fama­lias em outro contexto econa´mico e social. “Com a conquista da terra, o local possua­a uma estrutura mais adequada, com casas de alvenaria, luz elanãtrica e águaencanada, além da sede para as atividades coletivas da comunidade.”

Cerca de 34 criana§as, entre 6 e 11 anos, participaram do projeto. Latas de leite em pa³, caixas de sapato e caixas de fa³sforo foram utilizadas para produzir fotografias no manãtodo artesanal ca¢mera pinhole (buraco de agulha). E na última etapa do projeto passaram a utilizar ca¢meras fotogra¡ficas anala³gicas, que Rossoni pediu emprestado a amigos e alunos da faculdade. “O resultado foi uma produção autoral de 1.188 fotografias de memórias culturais”, destaca o professor Ata­lio Avancini no prefa¡cio do livro. “Rossoni, com isso, estimulou a prática fotogra¡fica, fomentando a captura de momentos singulares e o fortalecimento do cotidiano com seus imagina¡rios, sentimentos, prazeres, crena§as, ca­rculos familiares, moradias, produtos da terra e atividades profissionais.”

Assentamento Piranema, 2003: dona Nilda amamenta seus filhos, Marcos e Mateus
osFoto: Lucas Rocha, 9 anos
 
As criana§as que antes eram fotografadas passaram a ser fota³grafas. Rossoni destaca com orgulho: “Eles abordaram os afetos, as intimidades da casa, os seus sa­mbolos, os seus desejos e a importante transformação provocada com a conquista da terra. Ou seja, a sua dignidade. E essa nova imagem também abriu a possibilidade de novas representações sobre o pra³prio MST como um lugar de produção, de afetos, de sonhos e de desejos.”
 
Uma seleção dessas imagens estãono livro Olhares Comprometidos. As fotos trazem as cores do cotidiano. Os pequenos fota³grafos documentaram suas casas, seus amigos, irmãos, a ma£e amamentando dois filhos gaªmeos ao mesmo tempo, o pai saindo para trabalhar, a galinha, o porco, o cacho de banana no cha£o, a cama enfeitada com ursos de pelaºcia, o trio de meninos descala§os, são de calção, sorrindo sentados no sofa¡. Uma paisagem de vida, afeto e esperana§a.

“Acompanhar as fama­lias nesse período todo, desde o acampamento atéhoje, égratificante pela trajeta³ria vencedora. Nãoéum olhar superficial sobre o outro, um olhar estigmatizado.” 


Rodrigo Rossoni chega a  fase final do seu projeto. “Catorze anos após a experiência das oficinas, era chegada a hora de retornar ao assentamento. No planejamento, muitas expectativas e curiosidades. Iria reencontrar velhos amigos e conhecer as suas novas realidades, irrigadas, agora, por inanãditos processos tecnola³gicos de produção, circulação e exibição da sua imagem digital. E tudo isso na palma de suas ma£os.”

Olhares Comprometidos apresenta os moradores do assentamento Piranema. Rossoni observa e publica as selfies feitas atravanãs dos celulares em um novo momento de uma história que ele acompanha e apresenta também como sua. O fota³grafo que virou educador e pesquisador também assentou seus projetos na comunidade, e sonhos com a própria fama­lia. Tornou-se professor da UFBA em 2011, casou-se com a médica Lorena e tem a filha Isis. “Minhas duas meninas que me inspiram.”

Para o professor, acompanhar o assentamento Piranema, desde o acampamento atéhoje, égratificante. “E não éum olhar superficial sobre o outro, um olhar estigmatizado. Ha¡ muita história, dia¡logos, trocas e, ao acompanhar de muito perto, fui compreendendo na prática o ideal de justia§a, de democracia e o sentido de igualdade social que movia e move essas fama­lias”, afirma, com orgulho e respeito. “Algo que chama muito a atenção éque, antes do assentamento Piranema, a terra não produzia nada. Depois, passou a ser um meio para muitas conquistas, como a dignidade de um lar, com a produção agra­cola que gera renda e empregos. Tudo isso sob uma forte relação de afetos e de valorização do coletivo e do bem comum.”

 

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