Humanidades

Por que devemos nos lembrar do golpe de 1964?
Professores analisam os diferentes aspectos da ditadura militar e os seus desdobramentos hoje
Por Pedro Barreto - 13/04/2021


População brasileira ainda não superou os horrores da ditadura militar | Foto: Fa¡bio Caffé(Coordcom/UFRJ)

“Ha¡ sob a nossa responsabilidade a população do Brasil, o povo, a ordem. Assim sendo, declaro vaga a Presidaªncia da República. E, nos termos do artigo 79 da Constituição, declaro presidente da República o presidente da Ca¢mara dos Deputados, Ranieri Mazzilli.” 


Com essas palavras, o senador Auro de Moura Andrade, que presidia sessão no Congresso Nacional, deu legitimidade institucional ao golpe de Estado, no dia 2 de abril de 1964. A alegação era de que o então presidente da República, Joa£o Goulart, não se encontrava nopaís. A informação fora desmentida pelo então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, que comunicara que Jango se encontrava no Rio Grande do Sul. O golpe, no entanto, já estava dado, desde a madrugada de 31 de mara§o para 1º de abril, quando o general Ola­mpio Moura£o Filho, comandante da 4ª Regia£o Militar, em Juiz de Fora, rumou com suas tropas para o Rio de Janeiro. Goulart, em Porto Alegre, fora aconselhado por Leonel Brizola, seu cunhado e então deputado federal pelo estado da Guanabara, a resistir. Temendo um derramamento de sangue, o presidente da República por direito não seguiu o conselho e se exilou no Uruguai. Comea§avam ali os primeiros dias dos 21 anos de autoritarismo, endividamento, corrupção, censura, torturas e mortes que se seguiriam.

Ainda que executada por generais do Exanãrcito brasileiro, a conspiração que resultou no golpe de Estado havia sido urdida em parceria com setores civis, como a imprensa, a igreja, pola­ticos, empresa¡rios, e recebera apoio do governo estadunidense, na anãpoca comandado pelo democrata Lyndon B. Johnson. Incomodava-os sobremaneira a sanãrie de reformas de base iniciadas por Goulart − administrativa, fiscal, banca¡ria e agra¡ria − e anunciadas no emblema¡tico coma­cio da Central do Brasil, em 13 de mara§o. A resposta veio menos de uma semana depois, no dia 19, com a Marcha da Fama­lia com Deus pela Liberdade, em Sa£o Paulo. O movimento, que teria reunido cerca de 300 mil pessoas, era composto, basicamente, por pessoas das classes média e alta paulistana, representantes da igreja cata³lica e pola­ticos conservadores osentre eles, o governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, e o senador Auro de Moura Andrade. A crise com os setores militares acentuou-se ainda mais no dia 30 de mara§o, quando Jango discursou em defesa de liderana§as da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, que haviam se amotinado em protesto contra punições impostas por oficiais da Marinha.

No momento em que recordamos os 57 anos do golpe osque alguns preferem chamar de “revolução” ou “movimento” –, ainda háreflexões importantes a fazer em relação a quele episãodio, que atéhoje não foi superado pela sociedade brasileira. Quais elementos propiciaram a ruptura democra¡tica? Seria possí­vel resistir a ela? De que forma se deu a transição para a redemocratização dopaís? Ainda hoje háriscos de uma nova quebra institucional? Para responder a essas perguntas, o Setor de Comunicação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (Secom/CFCH) entrevistou professores e pesquisadores que se dedicam a refletir e investigar os diferentes e complexos aspectos que fazem parte dos estudos sobre aquele período.


O Ato Institucional nº 5, de 1968, suprimiu garantias ma­nimas de direito e autorizou
a censura a  imprensa | Foto: Evandro Teixeira

Resistaªncia possí­vel?

Como primeira questão, indaga-se: seria possí­vel resistir ao golpe? E se Joa£o Goulart tivesse considerado a recomendação de Leonel Brizola e enfrentasse os generais, pola­ticos, eclesia¡sticos, empresa¡rios e o governo dos Estados Unidos, o que teria ocorrido? No documenta¡rio O Dia que Durou 21 Anos, de 2013, os diretores Camilo e Fla¡vio Tavares exibem documentos que apontam a colaboração do governo daquelepaís, que teria oferecido o envio de uma frota de navios estadunidenses para debelar a resistência, caso ela ocorresse. Nãofoi preciso.

Para o professor Pedro Cla¡udio Cunca Bocayuva, do Programa de Pa³s-Graduação de Pola­ticas Paºblicas em Direitos Humanos (PPDH), vinculado ao Naºcleo de Estudos de Pola­ticas Paºblicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) da UFRJ, não havia condições políticas para a resistência. “As condições para fazaª-lo não estavam necessariamente reunidas. Nãoésimples compor um bloco capaz de sustentar a legalidade. A questãoanã: como construir uma legalidade com realismo pola­tico e força? A derrota não ensina apenas que vocêse precipita por meios armados. Pelo contra¡rio”, afirma o professor, que foi militante de grupos de resistência a  ditadura, éintegrante do Coletivo Fernando Santa Cruz e membro da direção do Comitaª Brasileiro da Anistia (CBA) no Rio de Janeiro. O docente também ésobrinho do deputado Cunca Bocayuva, um dos parlamentares a protestar contra o pronunciamento de Auro de Moura Andrade, no Senado Federal, no dia 2 de abril de 1964. “Foi o golpe precursor na Amanãrica do Sul, dentro do contexto de guerra fria. O objetivo foi barrar regimes de reforma social, como no Brasil, e processos transformadores considerados possa­veis, que tinham como modelo a Revolução Cubana. Barrava a mobilização social popular, o populismo, as mobilizações de esquerda e as reformas de base”, analisa o professor do PPDH/Nepp-DH/UFRJ.

Mortos e desaparecidos

O número de mortos e desaparecidos nas mais de duas décadas de regime de exceção permanece impreciso atéhoje. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado durante o governo da presidenta Dilma Rousseff osque atuou como militante na resistência a  ditadura –, menciona 434 mortos e desaparecidos entre 1946 e 1988. O dado éalgumas vezes inferior a queles apresentados pelas comissaµes da verdade em outrospaíses sul-americanos que também passaram por ditaduras militares. Na Argentina, organizações de defesa dos direitos humanos calculam em 30 mil os assassinatos cometidos pelo Estado. Grande parte dessas mortes foi cometida durante o governo do ditador Jorge Rafael Videla, entre os anos 1976 e 1981 (clique aqui para ler mais). No Chile, o ditador Augusto Pinochet assumiu o poder em 11 de setembro de 1973, após o bombardeio de aviaµes de fabricação estadunidense sobre o Pala¡cio de la Moneda, onde se encontrava o presidente Salvador Allende osque teria cometido suica­dio para não se entregar aos militares golpistas. A Comissão Valech, presidida pelo bispo Sergio Valech e criada para investigar os crimes cometidos durante o governo Pinochet, afirma terem sido cometidos mais de 40 mil assassinatos durante os 17 anos de governo ditatorial (1973-1990). Entretanto, associações de vitimas dizem que esse número pode superar os 100 mil.

Devido a essa discrepa¢ncia entre os números oficiais de vitimas nos diferentespaíses, o jornal Folha de S. Paulo entendeu ser possí­vel considerar o período em que o Brasil esteve governado por militares como uma “ditabranda”, em editorial publicado em 17 de fevereiro de 2009 . No entanto, os editorialistas, prova¡vel ou convenientemente, ignoram a subnotificação de registros de mortos e desaparecidos nopaís. Os números presentes no relatório da CNV não contemplam, por exemplo, as vitimas encontradas na chamada Vala de Perus, em Sa£o Paulo, de onde foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos, no dia 4 de setembro de 1990. Apenas cinco vitimas foram identificadas: Daªnis Casemiro, ex-lavrador e pedreiro, ingressou em movimentos da luta armada, foi torturado na carceragem do Departamento de Ordem e Pola­tica Social (Dops) de Sa£o Paulo e fuzilado, aos 29 anos, no dia 18 de maio de 1971. Frederico Eduardo Mayr, estudante de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, foi morto, aos 23 anos, com três tiros no peito, após sessaµes de tortura no Destacamento de Operações de Informações osCentro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de Sa£o Paulo, no dia 24 de fevereiro de 1972. Fla¡vio Carvalho Molina, graduado em Quí­mica pela UFRJ, foi morto em 7 de novembro de 1971, na sede do DOI-Codi de Sa£o Paulo, aos 34 anos. Dimas Anta´nio Casemiro, irmão mais novo de Daªnis, foi torturado atéa morte, no dia 7 de abril de 1971, aos 25 anos. Alua­sio Palhano Pedreira Ferreira tinha 48 anos quando foi torturado e morto, em 21 de maio de 1971, no centro de tortura conhecido como Casa da Morte, em Petra³polis, no Rio de Janeiro. Nãose sabe quantas das ossadas encontradas na Vala de Perus são de pessoas assassinadas pelo Estado brasileiro. O fato éque, após 31 anos de sua descoberta, essa ainda éuma história a ser revelada.

Em relação a  repressão do Estado contra trabalhadores do campo, o livro Camponeses Mortos e Desaparecidos: Exclua­dos da Justia§a de Transição éo resultado do projeto Direito a  Mema³ria e a  Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidaªncia da República, lana§ado em 2013. A obra reaºne casos de 1.196 camponeses mortos e desaparecidos, entre 1961 e 1988. Do total de mortes registradas, estima-se que 760 tenham ocorrido entre 1964 e 1985.

Quanto aos povos inda­genas, o Texto 5 do relatório da CNV menciona que “foi possí­vel estimar ao menos 8.350 inda­genas mortos no período de investigação da CNV, em decorraªncia da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”. O documento, poranãm, admite que “o número real de inda­genas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos inda­genas afetados foi analisada e que hácasos em que a quantidade de mortos éalta o bastante para desencorajar estimativas”.

Papel da imprensa

Entre os agentes envolvidos na urdidura do golpe de 1964, a imprensa desempenhou papel fundamental na formação de uma base de apoio e na legitimação discursiva da ruptura democra¡tica a partir de prosaicos argumentos como a “defesa da pa¡tria e das fama­lias contra a iminente ameaça comunista”, entre outros. Marcio de Souza Castilho éprofessor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (Iacs/UFF) e autor do livro Sob o Impanãrio do Arba­trio: Praªmio Esso, Imprensa e Ditadura (Alameda, 2019), que analisa a relação de jornalistas e empresas de comunicação com o regime militar. A obra ébaseada na tese de doutorado de Castilho, defendida na Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, em 2010, e orientada pela professora Ana Paula Goulart. “Todos os grandes jornais apoiaram o golpe de 64, em uma grande articulação das forças armadas com a sociedade civil. Exceção feita ao jornal ašltima Hora, do Samuel Wainer, que sempre denunciou o golpe e sofreu uma sanãrie de represa¡lias atéo seu fechamento, em decorraªncia disso. O Correio da Manha£ apoiou, mas foi o primeiro a debandar, nos primeiros dias após o golpe, percebendo as violências cometidas”, analisa o professor do Iacs/UFF. Castilho ressalta que a observação do contexto hista³rico érelevante para a análise. “Todos eles tinham uma perspectiva liberal e, portanto, alinhados a setores da sociedade civil que viam no governo Jango uma ameaça comunista, sindicalista etc., dentro de um idea¡rio ta­pico do contexto de guerra fria. Esses jornais não faziam cra­ticas a s violências da repressão estatal e classificavam como ‘terroristas’ os atos de resistência a  ditadura”, completa.

Houve uma mudança, entretanto, a partir da decretação do Ato Institucional nº 5, no dia 13 de dezembro de 1968, que suprimiu garantias ma­nimas de direito e autorizou a censura a  imprensa. Castilho compara aquele momento com o processo que ocorreu na Frana§a da década de 1940, após a ocupação nazista. Em ambos os casos, configurou-se o que o historiador Pierre Laborie oscujos conceitos foram trazidos para a historiografia brasileira pela professora Denise Rollemberg, da UFF osdenominou de “zona cinzenta”, ou seja, onde os mesmos atores sociais que resistem também colaboram com o regime. “Com o AI-5, essa relação foi estremecida, porque o governo atingiu mais diretamente os jornais, atravanãs da censura prévia e também por meio de bilhetes e telefonemas para as redações, indicando assuntos de deveriam ser proibidos. Ainda assim, esses jornais continuaram apoiando o regime militar, principalmente no que diz respeito a s políticas econa´micas”, analisa.

Para professor do Iacs/UFF, havia uma relação de ambivalaªncia entre os jornalistas e as empresas de comunicação com o governo militar. “Esta éuma visão mais complexificada e menos reducionista nessa discussão sobre o uso das memórias nesse passado autorita¡rio. As cra­ticas ao governo se limitavam ao terreno da censura e da liberdade, que atingiam mais diretamente as empresas jornala­sticas. Havia uma postura de resistência com a publicação de versos de Camaµes no espaço de uma matéria que fora censurada, no caso do Estado de S.Paulo. Mas em relação a outras iniciativas do governo, em grande medida, a posição era de apoio oscomo, por exemplo, no chamado ‘milagre econa´mico’”, menciona Castilho em referaªncia a  pola­tica de importação de bens industrializados e realização de obras faraa´nicas, como a Rodovia Transamaza´nica, que jamais foram conclua­das, entre outras medidas. O resultado dessa pola­tica foi o aumento exponencial da inflação, da da­vida externa e da corrupção, silenciada a  anãpoca pelos meios de comunicação.

Por que recordar?

A memória do golpe militar de 1964 éobjeto de disputa que, no momento atual, estãoainda mais acirrada. Para a historiadora Maria Paula Araaºjo, professora titular do Instituto de Hista³ria (IH) da UFRJ, épreciso recordar aquele período hista³rico. “Todos ospaíses que viveram golpes militares, seguidos de ditaduras de vários tipos, sabem a importa¢ncia de, ao sair desse governo autorita¡rio e iniciar uma caminhada rumo a um estado democra¡tico de direito, não esquecer essa experiência”, afirma. Araaºjo menciona o termo “justia§a de transição”, criado por organismos de direitos humanos e juristas, para explicar a releva¢ncia de marcar a data. “Depois de uma experiência de Estado autorita¡rio, éfundamental que a sociedade saiba o que aconteceu, que as vitimas dessas violências tenham um espaço para lembrar e denunciar. E mais: não basta lembrar, épreciso repudiar o que foi feito”, diz ela.

Por esse motivo, a professora do Programa de Pa³s-Graduação em Hista³ria Social (PPGHIS)/IH/UFRJ aponta o trabalho das comissaµes da verdade, criadas durante o governo Dilma Rousseff (2011-2014/2015-2016) como fundamentais nesse processo. “a‰ também importante que essas vitimas sejam reparadas. Isso ocorreu no Brasil: pessoas foram realocadas em postos de trabalho, algumas foram indenizadas, houve um pedido de perda£o formal por parte do Estado brasileiro”, aponta. Para Araaºjo, entretanto, nesse processo de justia§a de transição, faltou ao Estado brasileiro responsabilizar os autores de mortes e desaparecimentos. “Nisso, nosnão avana§amos no Brasil. Ha¡ uma diferença entre responsabilização e punição, mas que eles fossem, ao menos [aªnfase dela], responsabilizados osligados a quilo e aquela ação repudiada”, analisa.

A professora também critica a posição do atual governo federal em relação ao golpe. “Outra coisa importante, que nospensa¡vamos que houvanãssemos feito, mas não fizemos, éo repaºdio da sociedade a quelas prática s. Na medida em que temos um presidente que elogia torturadores, que diz que ‘a ditadura matou pouco’, isso émuita­ssimo grave”, aponta. “Enquanto não houver, por parte do Estado, o repaºdio expla­cito ao golpe de 64 e a todas as violações que ocorreram a partir daa­, enquanto não houver um compromisso expla­cito por parte do Estado e de toda a sociedade em defesa da democracia, essa história não estara¡ fechada”, completa.

Anistia

No dia 28 de agosto de 1979, o então presidente Joa£o Baptista Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, que, em seu artigo 1º, anistiava todos aqueles que “cometeram crimes pola­ticos ou conexos com estes”, entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, aos servidores paºblicos que tiveram os direitos pola­ticos suspensos e dirigentes sindicais punidos com os atos institucionais decretados durante o período da ditadura militar. Excetuam-se da anistia “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”, de acordo com o que consta no artigo 2º da referida lei. Ainda assim, énecessa¡rio destacar que não houve punição, ou qualquer tipo de responsabilização, aos militares que cometeram torturas e assassinatos.

Por outro lado, háque se ressaltar que o governo ainda era comandado por militares, que tinham vantagem na disputa com a sociedade civil, que, por sua vez, pressionava pormudanças no cena¡rio pola­tico. “O regime não queria a anistia ampla, geral e irrestrita. Ao mesmo tempo, ele tinha forças para impor regras na transição. Ele perdeu. Por exemplo, ele não queria que pessoas que tivessem participado da luta armada fossem anistiadas. Nãoqueria nenhuma tolera¢ncia, queria definir um limite de aplicação”, afirma o professor Pedro Cla¡udio Cunca Bocayuva. “O pra³prio processo da constituição da Comissão da Mema³ria e da Verdade éum mecanismo de aplicação de justia§a. O Estado reconhecendo que cometeu crimes, em si, já éum processo decisivo. Houve luta, houve disputa, houve avanços e retrocessos”, analisa.

Redemocratização

A transição democra¡tica dopaís foi um processo de negociação entre as forças conservadoras que estavam no poder e as progressistas, que se organizavam para reivindicar a retomada e a conquista de lega­timos direitos. Essas tensaµes, inerentes ao processo democra¡tico, estiveram postas no movimento pelas Diretas Já, em 1984 osque culminou com a vita³ria das forças conservadoras, marcada pela rejeição a  Emenda Dante de Oliveira −, e na Constituinte de 1987, em que estiveram representados diversos atores da sociedade civil naquele momento marcante da história brasileira. “Ela, a Constituição de 1988, enunciou a possibilidade de um programa democra¡tico, mas que ainda manteve monopa³lios, como terra e comunicação, que não foram democratizados, e a tutela policial e militar. Então, essas contradições, evidentemente, va£o marcar o problema dessa condução da nossa transição e dos seus acordos”, analisa Cunca.

Para ele, faltarammudanças no campo da Segurança Paºblica para que a democracia brasileira fosse, de fato, restitua­da. “Na³s sempre vivemos a  sombra de uma transição jura­dica e de uma justia§a de transição limitada em conseguir estabelecer o corte simba³lico, material, jura­dico e institucional, que tocasse no sistema repressivo, na dina¢mica militar, no Judicia¡rio, que conseguisse um efeito de democratização a  altura do projeto cidada£o expresso na Constituinte de 1988 e na fala emblema¡tica de Ulisses Guimara£es”, afirma, em referaªncia ao discurso do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no Congresso Nacional, em 2 de fevereiro de 1987. “Temos a³dio a  ditadura. a“dio e nojo”, proclamou Guimara£es na ocasia£o.

Cunca, entretanto, reconhece as conquistas das forças populares, que tiveram aªxito naquele processo. “Isso também significou um movimento que levou, aos poucos, a uma adesão crescente das forças de esquerda ao paradigma institucional e democra¡tico, e aceitando, inclusive, essa limitação. E foi na aceitação dessa limitação, no reconhecimento de estar submetido a esses acordos, que essas forças foram negociando por dentro”, avalia. O professor entende que a Constituinte e o movimento das Diretas Já propiciaram uma ampliação da participação popular na pola­tica brasileira. “A grande revolução democra¡tica brasileira se expressou na liberdade partida¡ria ampla e no direito de voto. Esses elementos foram decisivos.”

Mema³ria do golpe e suas implicações hoje

E como tem se dado a disputa pela memória do golpe de 1964 nos dias de hoje? De que forma abandonamos as agendas que reivindicavam direitos pola­ticos e sociais e passamos a empunhar bandeiras como lei e ordem, militarização e o uso de armas? Existe base popular para uma nova ruptura democra¡tica? Maria Paula Araaºjo interpreta como um erro de avaliação o fato de que, ainda hoje, pessoas comemorem o golpe de 1964 e clamem pelo retorno a um regime ditatorial. “Em algum momento, nospensamos que tivanãssemos derrotado esse vianãs autorita¡rio e violento, que estava presente na ditadura militar. Então, eu penso que esse tenha sido o nosso grande e principal erro: a nossa avaliação da capacidade de restauração da direita e, sobretudo, da extrema direita. Pensamos que a população brasileira não aprovaria nunca certas medidas que estãosendo aprovadas agora”, analisa.

De acordo com a professora, o retorno de um pensamento de extrema direita não éum fena´meno exclusivo do Brasil. “O mundo todo, nesses últimos anos, se surpreendeu com um levante de um movimento de extrema direita, que pensa¡vamos que tivesse sido derrotado. Eu penso que isso tenha a ver com as novas tecnologias, com as redes sociais, com as novas formas de propaganda pola­tica. E nosainda estamos pensando sobre aquelas velhas fa³rmulas, que conhecemos desde quando comea§amos a estudar a história dos movimentos pola­ticos e dos movimentos sociais”, acrescenta. Ao comparar os cenários de 1964 e 2021, Araaºjo vaª poucas semelhanças. “Ao contra¡rio do que existe hoje, em 64 havia uma frente de comunistas e trabalhistas muito forte. Havia uma atuação de intelectuais politizados, que pensavam a pola­tica nopaís desde os anos 1950, como Paulo Freire, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Ana­sio Teixeira, Josuéde Castro, Nise da Silveira, Milton Santos. Era uma intelectualidade pensando o Brasil mais do que pensando em seus projetos específicos. Hoje nosnão temos a mesma situação”, comenta.

Cunca Bocayuva acredita que o tripéNecropola­tica-Neoliberalismo-Negacionismo éo resultado de um processo que levou décadas para se instalar. “A democracia não ésempre guerra. Mas tem uma desigualdade enorme. E nessas desigualdades vários segmentos não foram contemplados, ou foram recalcados, ou perderam poder, prerrogativas. E isso vale para o sujeito da esquina que pensa: ‘Qualquer garoto/qualquer mulher/qualquer negro/qualquer gay agora tem opinia£o?’, ‘Nãome interessam o meio ambiente, os inda­genas, os quilombolas’. Esses elementos todos podem ser agrupados em um dado momento, alguns com causas lega­timas, como a corrupção, formas de não atendimento, injustia§as reais, políticas equivocadas”, analisa Cunca, segundo o qual esse tripécompaµe uma articulação discursiva que vai ao encontro de interesses particulares, como o agronega³cio, oligopa³lios de comunicação, o capital especulativo financeiro e aqueles que utilizam o discurso da fée da moralidade. “Todas essas ideias estãopresentes no senso comum. Foram reagrupadas de uma maneira especa­fica no Brasil, na Hungria, na Pola´nia, na Raºssia, nos Estados Unidos. Aqui, eles foram criados e urdidos de uma maneira que permitiu a emergaªncia dessas forças que já estavam dentro do Estado, mas eram minorita¡rias, ou de forças ultraelitistas, que alimentam esse mal-estar”, comenta. “a‰ uma construção simba³lica, que diz que a história brasileira éa história da familia purificada, biológica, etnicamente, militarmente, tutelada por pessoas que são portadoras da missão civilizata³ria, ao lado das potaªncias do ocidente. Portanto, são subservientes a essa cruzada de base escravocrata”, completa.

O professor do PPDH/Nepp-DH/UFRJ entende que épreciso lembrar a todo o momento as vitimas de um regime repressor. “Na³s temos o debate da questãomilitar, o debate da questãojura­dica, mas também temos que observar: quem foi morto? De quem nosestamos falando? Estamos falando do povo, do Amarildo, da Marielle, Rubens Paiva, Honestino Guimara£es, das liderana§as comunita¡rias, camponesas, opera¡rias, dos policiais que morrem nessa pola­tica equivocada de guerra a s drogas. Então, nosestamos falando em construir uma democracia viva e isso significa dizer ampliar a representação das forças que não estãorepresentadas”, diz Cunca, para quem os elementos banãlicos e militaristas estãonos levando a um estado de barba¡rie. “Isso não gera um regime esta¡vel, um projeto racional de longo prazo, não gera uma ditadura militar. Nãoéverdade. Isso gera um estado de exceção e guerra permanente marcado pela barba¡rie. Isso éaniquilador”, afirma o professor.

O papel da educação

Qual éo papel da educação na construção da memória do golpe de 64, no momento em que setores da sociedade reivindicam a sua comemoração? Como falar a jovens estudantes e demais pessoas que não viveram aquele período hista³rico e que, muitas vezes, tem acesso a desinformações? Alessandra Carvalho éprofessora de Hista³ria do Colanãgio de Aplicação (CAp) e do Programa de Pa³s-Graduação em Ensino de Hista³ria (ProfHista³ria), ambos da UFRJ, e integra o Naºcleo de Pesquisa Hista³ria e Ensino das Ditaduras (Nuphed) e o Naºcleo de Pesquisas e Pra¡ticas em Ensino de Hista³ria (Nuppeh). Segundo ela, éimportante estimular que os pra³prios alunos busquem informações a respeito da ditadura militar. “Na última vez em que eu lecionei sobre isso, deixei-os livres para pesquisarem sobre qualquer tema relacionado a quele período. Isso deu a eles a oportunidade de se aprofundarem naquilo que gostavam mais. Um grupo de alunos que gostava de futebol pesquisou sobre a relação da ditadura com a seleção brasileira na Copa de 1970 e a democracia corintiana. Outro grupo entrevistou militares e chegou a  conclusão de que essas experiências foram muito diversas”, comenta. Para Carvalho, o resultado tem sido positivo em termos de aprendizagem. “Nãofui eu, Alessandra, que os ensinei sobre a ditadura. Eles éque foram construindo, atravanãs dos seus interesses pessoais, asDimensões da ditadura e da violência. Se estãodizendo que cada um tem uma opinia£o e tem um lado nessa história, então que seja permitido a eles fazer uma pesquisa sistema¡tica para chegarem a s suas próprias conclusaµes. Isso tem sido mais positivo”, conclui.

A professora do CAp/UFRJ entende que esse colanãgio éum ambiente no qual questões ligadas a  democracia, luta social e ao ativismo pola­tico estãofrequentemente presentes nos debates dos estudantes. Ainda assim, existem questionamentos sobre o tema nos ca­rculos familiares e que chegam atéo conhecimento dos professores. Além disso, Carvalho tem a dimensão do papel do educador em uma sociedade socialmente desigual, em que o estado democra¡tico de direito não estãoacessa­vel a todos. “Eu, como professora universita¡ria, tenho a melhor experiência possí­vel com a democracia. Mas qual éa experiência das pessoas com esse regime, no seu cotidiano, considerando elementos de classe, de raça e gaªnero?”, indaga ela. “Sera¡ que o estado democra¡tico de direito sobe o morro? Como eu vou dizer para um adolescente morador de uma favela que a escola pública éum direito? Sera¡ que ele entende aquele espaço dessa maneira? O que nosprecisamos fazer para fortalecer isso, para que efetivamente essas pessoas desfrutem dos direitos legalmente assegurados a elas?”


Foto: Acervo pessoal | Arte: Pedro Barreto (Secom/CFCH)

Saa­das possa­veis

Como caminhar rumo a uma sociedade que preze os valores democra¡ticos e repudie o arba­trio e a violência? Todos os professores ouvidos nesta reportagem são una¢nimes em afirmar que a democracia pressupaµe, sim, tensaµes, mas, sobretudo, a escuta e o dia¡logo. “Como se desconstra³i o discurso da guerra? Entendendo que háuma guerra e praticando a contraguerra. Ou seja, épreciso uma pola­tica de contraviolência, contundente e afirmativa”, destaca Cunca Bocayuva. “O planeta tem agendas. E essas são agendas de vida. Nãoexiste agenda que não passe por uma cooperação internacional da vacina, pela agenda climática, pela questãonutricional/alimentar, ha­drica, pela democratização do acesso a  internet. Nãoéverdade que o mundo ficara¡ melhor se ele estiver ao livre-arba­trio das forças do saque. O que deve nos orientar éa agenda da vida”, acrescenta o professor do PPDH/Nepp-DH/UFRJ.

Maria Paula Araaºjo acredita no poder da educação: “Eu penso que contar essas histórias para as criana§as seja uma forma de valorização da vida, dos direitos humanos. Esse trabalho com a Hista³ria tem uma implicação muito grande com o presente e o futuro. Então, penso que, fundamentalmente, nosprecisamos resistir. E esse campo da Hista³ria e das Ciências Humanas tem um papel grande”.

Para Alessandra Carvalho, a saa­da estãona ampliação do dia¡logo para o entendimento do lugar do outro. “O conflito faz parte. O que não deve fazer parte éque esse conflito seja resolvido atravanãs da imposição de um sobre o outro. Nos últimos tempos, esses conflitos pola­ticos transbordaram a fronteira do pessoal e para a esfera familiar. Essa éuma questãoem que nosvamos precisar dar um passo atrás”, analisa. “Para restabelecer esse dia¡logo, vamos ter que ouvir, desconstruir o seu inimigo. Isso éimportante atémesmo para saber como contra-argumentar. Neste momento, isso éainda mais difa­cil, porque háum esta­mulo ao enfrentamento e a  não escuta. Eu acho que isso épossí­vel, mas vai levar tempo e precisaremos construir outra conjuntura mais favora¡vel ao dia¡logo”, conclui.

 

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