Humanidades

Livro de autor a­cone da literatura chinesa étraduzido para o portuguaªs pela primeira vez
Lu Xun, pai da literatura moderna chinesa, agora pode ser lido no Brasil, em edia§a£o bila­ngue
Por Scphie Galeott - 06/08/2021


Cortesia

A Editora da Unicamp lana§a o primeiro tí­tulo da nova coleção Cla¡ssicos da Literatura Chinesa. Trata-se da coleta¢nea de memórias de Lu Xun, Flores matinais colhidas ao entardecer. Lu Xun éum a­cone do modernismo chinaªs e pioneiro no uso do chinaªs vernacular, uma forma de chinaªs escrito que incorpora as variedades lingua­sticas de todo opaís. Trata-se de uma oposição ao chinaªs cla¡ssico, cuja escrita épadronizada e adotada na China imperial atéo ini­cio do século XX.

Para apresentar um pouco da obra, a Editora da Unicamp entrevistou a tradutora dos textos, Peggy Yu, mestre em lingua­stica aplicada pela Unicamp, e um dos diretores do Instituto Confaºcio, Bruno De Conti. A diretora da Editora, Edwiges Morato, também responde sobre a importa¢ncia da parceria com o Instituto e sobre a coleta¢nea deste cla¡ssico da prosa moderna chinesa.

Editora da Unicamp osQual a ideia ao lana§ar a coleção Cla¡ssicos da Literatura Chinesa e qual a expectativa para a coleção?

Edwiges Morato: Com este belo volume de Flores matinais colhidas ao entardecer, de Lu Xun, um cla¡ssico da prosa moderna chinesa, a Editora da Unicamp abre uma parceria com o Instituto Confaºcio sob a forma de um projeto editorial caracterizado como sanãrie, que tem também uma bela e delicada identidade visual. Esta parceria com a Editora da Unicamp éum dos braa§os culturais de um acordo de cooperação, celebrado em 2014, que abrange várias áreas do conhecimento osa tecnologia, a economia e a cultura.

A coleção Cla¡ssicos da Literatura Chinesa inicia-se com Flores matinais, obra a  qual devem se seguir outras publicações, de diferentes autores e gêneros litera¡rios. O objetivo éfornecer ao mercado editorial brasileiro, em edição bila­ngue, obras cla¡ssicas da literatura chinesa. A coleta¢nea constitui-se como um importante instrumento dida¡tico para estudantes lusãofonos de mandarim, bem como para chineses que estudam a la­ngua portuguesa ou se interessam por ela. Vale também notar que os livros contam com prefa¡cios cra­ticos, que salientam e contextualizam aspectos importantes da história e da cultura da China.

A ideia éque, sendo uma coleta¢nea bila­ngue, possamos não apenas estimular a aproximação do Brasil com a la­ngua e a cultura chinesas, como também pavimentar, pela linguagem litera¡ria, um caminho de interesse maºtuo entre duas culturas. Isso éparte de uma interação envolvente entre dois povos, entre doispaíses. Estimular o contato qualificado entre distintas experiências humanas, entre distintas formas de vida, éuma das caracteri­sticas da cultura do livro e uma das funções principais de uma editora universita¡ria, como a Editora da Unicamp.

Editora da Unicamp: Como foi o processo de tradução de Lu Xun, que éum autor tão proeminente na literatura moderna chinesa? Como tradutora, o que sentiu ao trazer sua coleta¢nea de memórias ao portuguaªs pela primeira vez?

Peggy Yu: Para responder a  pergunta, acredito que posso dividir o processo traduta³rio em três etapas: compreensão, tradução e apreciação. Hoje, refletindo sobre a trajeta³ria de tradução, imediatamente vem a  minha cabea§a um ditado chinaªs com o qual me comparo: “um bezerro que não tem medo do tigre”. Ou seja, eu fui inocente e também destemida ao sugerir a publicação de Flores matinais colhidas ao entardecer e ao traduzir o livro. Recordo-me que a primeira tarefa que me propus a fazer foi ler os dez capa­tulos que compõem o livro de uma são vez, para me ambientar com o espa­rito de Lu Xun. Ele envolve sua maneira peculiar de dizer as coisas, seu estilo a­mpar de abordar determinados assuntos e seu olhar crítico e ca­nico para observar o mundo. Com medo de não captar os sentidos impla­citos dessa obra de Lu Xun, recorri a estudos bibliogra¡ficos. Essa etapa de compreensão me fez refletir sobre a condição do tradutor como bom leitor: aquele que disseca criticamente um texto e mergulha nas ideias abordadas, mais, talvez, do que o pra³prio autor. Claro, sempre mantive uma distância sauda¡vel, para não correr o risco de superinterpretar o texto.

Depois disso, entrei na tradução propriamente dita. Mas a fase anterior não deixou de ser uma tradução, poranãm, interlingual. Foi um grande desafio traduzir um autor expoente, considerado o “pai da literatura moderna chinesa”, que, naturalmente, porta um valor litera¡rio significativo. Confesso que o processo foi bastante desafiador e sofrido, no bom sentido. Sofrido (novamente, no bom sentido), pela dificuldade em transmitir a mensagem cra­tica de Lu Xun e seu estilo para a la­ngua alvo, no caso, o portuguaªs. A professora doutora Ma¡rcia Schmaltz, grande pesquisadora, tradutora e intanãrprete do chinaªs para o portuguaªs, tem um texto chamado “Lu Xun e a anatomia de um povo”. Nele, falava que “normalizar” o estilo do autor para transpa´-lo ao portuguaªs éum desafio.

Como tradutora, senti que o desafio de decifrar as “intenções” do autor, somado a s dificuldades encontradas na tradução, culminaram em responsabilidade. Eu não estava “são” traduzindo as memórias de uma pessoa, mas transmitindo, por meio da tradução, uma cra­tica social que pode levar o povo brasileiro a entender como a China se transformou no que ela éhoje. Assim, cada escolha e decisão que eu tomava carregava não são o conteaºdo textual em si, mas uma pista para acessar uma China que estava entrando na modernidade. Por isso, senti muita responsabilidade!

No fim, o que eu chamei de “apreciação” foi minha leitura como leitora de la­ngua portuguesa. Nessa etapa, li as traduções que fiz tentando sentir os efeitos das palavras oscra­ticas, ira´nicas e ca­nicas osque senti ao ler o livro no idioma original. Foi um momento de ajustes da tradução, durante o qual me perguntava: “se vocêfosse brasileira, vocêentenderia?”; “captaria a ironia?” etc. Era como se eu ignorasse minha identidade chinesa e questionasse a tradução para poder melhora¡-la! E, claro, não posso deixar de agradecer as preparadoras e revisoras que melhoraram muito a tradução!

Editora da Unicamp: Houve capa­tulos ou trechos cujas traduções foram mais desafiadoras? Quais e por quaª?

Peggy Yu: Sim! Principalmente, quando a narrativa trouxe expressaµes culturalmente carregadas ou que fizeram alusaµes muito especa­ficas a  cultura chinesa. Esses desafios foram mais evidentes nos capa­tulos 4 e 5, respectivamente, “A procissão dos cinco deuses temerosos” e “Wuchang ou A-vida-anã-impermanente”, porque, nesses capa­tulos, Lu Xun aborda cenários que são tipicamente chineses, com descrições culturalmente carregadas. No capa­tulo 4, por exemplo, o autor descreve, a partir do seu olhar quando era bem jovem, os deuses da procissão folcla³rica chinesa, que envolve deuses de rostos coloridos, o Rei Draga£o, que fazia chover, os “monstros” do mar, a Virgem Mei, entre outras figuras. As imagens escritas são numerosas e va­vidas.

Fiquei conjecturando, durante a tradução, se o povo brasileiro, acostumado com o catolicismo, que émonotea­sta, entenderia o entusiasmo de Lu Xun criana§a diante da procissão dos deuses. E também, não posso deixar de comentar o fato de o pai do menino Lu Xun ter pedido ao filho para “memorizar” e “recitar” um texto cla¡ssico se quisesse ir a  procissão. Acredito que não faz parte da educação brasileira pedir para criana§as “decorarem” os textos cla¡ssicos (ou estou enganada?), e, por isso, durante o processo traduta³rio desse capa­tulo, tomei especial atenção para que a narrativa não ficasse “sem pénem cabea§a”.

O capa­tulo 5, também envolve seres fanta¡sticos tipicamente chineses, como Rei dos Mortos, os rostos pintados, os Cabea§a-de-boi, etc. Inicialmente, quis associar a imagem do protagonista, Wuchang osA-vida-anã-impermanente –, a  do Ceifador ou da Morte. Mas logo desisti, porque ia ser uma tradução domesticadora demais. Tanto no caso acima quanto no anterior, tive que decidir se transcreveria foneticamente o nome dessas criaturas fantasmaga³ricas ou se traduziria literalmente os termos. No fim, decidi fazer a tradução literal, para o texto em portuguaªs não perder a fluaªncia.

Outras dificuldades, além desses desafios advindos de diferenças culturais, eram os jogos de palavras e as ironias usados pelo autor. Ha¡ jogos de palavras no texto original que advanãm do fato de a la­ngua chinesa ser tonal e apresentar termos homa³fonos com significados diferentes. Em casos assim, não consegui escapar da nota de rodapanã, como com o termo “yangguizi”, no capa­tulo 7, “A doença do meu pai”.

Por fim, não posso deixar de falar sobre a dificuldade em traduzir trechos que eram respostas aos ataques que Lu Xun sofria na anãpoca de seus colegas literatos. Certa capacidade de intertextualidade foi necessa¡ria para primeiro compreender e identificar trechos que eram “respostas” e reescrevaª-los de forma que não ficassem muito deslocados do contexto da narrativa. La³gico que em alguns casos, as notas de rodapéeram recorridas para explicar o contexto, um recurso que também existe na versão em chinaªs.


Editora da Unicamp: Lu Xun foi pioneiro no uso do chinaªs vernacular, forma escrita que traz as variedades da la­ngua usadas em toda a China a  sua literatura. Como vocêdiria que isso influaªncia o estilo narrativo desse autor?

Peggy Yu: Ainda que a linguagem utilizada por Lu Xun seja bastante próxima do chinaªs moderno, os recursos de linguagens litera¡ria e tradicional que usou deixam as narrativas um tanto obscuras em algumas passagens. Por isso, além de seu estilo ca­nico e ira´nico, os contos não eram fa¡ceis de ser entendidos sem um olhar apurado e atento. Assim, precisei pesquisar e me apoiar em artigos que discorrem sobre essas narrativas, para não deixar escapar as mensagens nas entrelinhas.

Para transpor essa linguagem muito especa­fica ao portuguaªs, refleti muito sobre o tipo de registro a que eu deveria recorrer para compor as narrativas traduzidas. Pensei nos textos de Gil Vicente, que introduziu elementos populares na sua escrita. Mas era um portuguaªs renascentista! O chinaªs pré-moderno de Lu Xun certamente não era obscuro assim (se éque estou fazendo uma comparação correta).

A reflexa£o me levou também a pensar no estilo de Machado de Assis, ira´nico e pessimista. Lembro-me de ter relido alguns contos machadianos para saber se esse tipo de registro cabia na minha tradução. A experiência foi a³tima, porque de certa maneira, encontrei algum paralelismo nos estilos dos dois autores. No fim, como diria a professora Schmaltz, “normalizei” esse tipo de linguagem no portuguaªs, tomando cuidado com a ordem de construção das orações, com o emprego das aspas e com a escolha das palavras ossimples, mas não a³bvias o suficiente, para que permanecesse certa ironia.

Editora da Unicamp: O livro Flores matinais colhidas ao entardecer éo primeiro da nova coleção Cla¡ssicos da Literatura Chinesa, fruto da parceria entre o Instituto Confaºcio e a Editora da Unicamp. Qual o objetivo dessa parceria?

Bruno De Conti: Eu diria que a parceria cumpre três funções importantes. O objetivo principal écontribuir para a redução de uma lacuna na formação da maior parte da população brasileira, que diz respeito a um profundo desconhecimento sobre a cultura chinesa. Essa ideia de traduzir obras cla¡ssicas chinesas foi gestada durante uma das visitas de professores da Unicamp a  China, organizadas anualmente pelo Instituto Confaºcio com o apoio da Diretoria Executiva de Relações Internacionais (DERI) da Unicamp.

Em 2018, nossa comitiva contou com o então reitor da Unicamp, professor doutor Marcelo Knobel. Em meio a s atividades que fizemos por la¡, o professor Marcelo ficou chocado ao perceber que não conheca­amos nada sobre algumas referaªncias culturais que são fundamentais para os chineses. Diante disso, ele sugeriu a mim e a  professora doutora Ma¡rcia Abreu que nos acompanhava na comitiva e que, a  ocasia£o, dirigia a Editora da Unicamp osque pensa¡ssemos sobre a possibilidade de realizar traduções de cla¡ssicos chineses para o portuguaªs.

Foi a partir daa­ que as conversas tiveram ini­cio e, logo depois, o trabalho começou a ser desenvolvido, com um importante apoio dos funciona¡rios da Editora da Unicamp e do Instituto Confaºcio. Em 2021, a professora Edwiges Morato assumiu a direção da Editora e acolheu o projeto da melhor forma possí­vel, não apenas o apoiando, mas institucionalizando essa parceria por meio da criação da coleção Cla¡ssicos da Literatura Chinesa, que temos agora o prazer de lana§ar. Ou seja, foi um projeto abraçado por muita gente que partilha da percepção de ser necessa¡rio conhecermos mais sobre a China e sua cultura no Brasil.

De fato, por razões hista³ricas, mas também políticas e econa´micas, sempre tivemos um olhar apurado sobre a produção cultural dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, mas com uma negligaªncia tremenda em relação ao restante do mundo. E essa negligaªncia não éfruto do acaso, mas, construa­da. Pior do que uma mera miopia em relação a s áreas mais distantes do globo, trata-se de uma subordinação acra­tica a  visão do Ocidente, que ao longo da história atribuiu a si mesmo o status de “mundo civilizado”, criador de cultura e de ciaªncia, em oposição ao Oriente exa³tico osquando não ba¡rbaro. Essa visão preconceituosa em relação ao Oriente em geral, soma-se, no caso da China, a um elemento que gerou (e gera) turbulaªncias nesse contato intercultural: o fato de ser uma nação que passou por uma revolução socialista e que, atéhoje, define-se como umpaís socialista. Isso, infelizmente, contribui para que, por uma postura maniquea­sta ostambém caracterí­stica do Ocidente ossejam reforçados os esterea³tipos em torno da China.

O resultado éum desconhecimento tremendo em relação a  China e a  cultura chinesa. Em todos os a¢mbitos. Nãosabemos quase nada sobre música chinesa, cinema chinaªs, artes pla¡sticas e literatura chinesa. Aprendi com meu amigo Antonio Florentino Neto, grande especialista da cultura e do pensamento tradicional chinaªs, que o mundo ocidental simplesmente rejeitou que o pensamento chinaªs pudesse ser enquadrado como filosãofico. Vejam aonde chegam os preconceitos! Para contornar esse problema, criaram a categoria da “sinologia”, colocando la¡ o que não queriam rotular como uma filosofia chinesa.

Felizmente, háum movimento que procura enfrentar essa cegueira cultural, não apenas em relação a  China, mas apaíses e povos do chamado “Sul global” osque inclui, e de forma muito importante, os nossos pra³prios povos nativos da Amanãrica. Assim, nesse dia¡logo entre Reitoria, Editora da Unicamp e Instituto Confaºcio, percebemos a pertinaªncia de oferecer uma singela contribuição a esse processo, apresentando ao paºblico brasileiro osou lusãofono osa tradução de obras cla¡ssicas da literatura chinesa. Então, o primeiro objetivo da coleção éesse: dar ao paºblico brasileiro acesso a obras importantes da literatura chinesa. De forma associada, háum segundo objetivo, também muito importante. Sobretudo em função da ascensão da China como grande potaªncia global econa´mica e pola­tica, cresce o interesse da população brasileira em estudar mandarim.

Aqui, no Instituto Confaºcio da Unicamp, temos alunos de ensino manãdio (Cotuca e Cotil) e de graduação e pós-graduação dos mais distintos cursos (letras, economia, engenharias, medicina, etc.), além de professores estudando mandarim. E a coleção que estamos lana§ando publica livros bila­ngues, com os textos originais, em mandarim, e suas versaµes em portuguaªs. Trata-se, assim, de um instrumento dida¡tico extremamente útil para os alunos de mandarim da Unicamp e do Brasil todo.

Reciprocamente, o material podera¡ ser usado pelos estudantes de portuguaªs la¡ na China. Na universidade parceira no Instituto Confaºcio, a Beijing Jiaotong (BJTU), hácursos de portuguaªs e algumas edições de cada livro que for lana§ado sera£o enviadas a eles. Temos também um contato pra³ximo com a Universidade de Macau, já que, nessa ex-cola´nia portuguesa, cada vez menos as fama­lias tem usado o portuguaªs no dia-a-dia, e, por isso hápolíticas públicas para o resgate do estudo do portuguaªs, atémesmo para que a regia£o seja usada como entreposto de comunicação das relações entre China e Brasil, além de todo o mundo lusãofono. Dessa maneira, a coleção que estamos lana§ando serálida pelos interessados na literatura chinesa, mas serátambém um instrumento dida¡tico muito importante para alunos de mandarim ou portuguaªs de diversas partes do globo.

Por fim, os livros que estamos publicando tera£o sempre um prefa¡cio acadaªmico, contextualizando a obra. Em Flores matinais colhidas ao entardecer, por exemplo, o Prefa¡cio éde Fan Xing, da Universidade de Pequim, grande conhecedora das literaturas chinesa e brasileira. Em seu interessante texto, elaborado especialmente para nossa edição, ela apresenta Lu Xun ao paºblico brasileiro por meio de referaªncias a Graciliano Ramos. Assim, o terceiro objetivo da coleção éfornecer um rico material bibliogra¡fico para pesquisas acadaªmicas sobre literatura chinesa ou sobre os autores e as obras que estamos traduzindo.

Editora da Unicamp: Por que a coleta¢nea de memórias de Lu Xun foi escolhida como a primeira obra a integrar a coleção?

Bruno De Conti: A escolha foi feita a partir de um dia¡logo entre a Editora da Unicamp, o Instituto Confaºcio e a Peggy Yu, grande conhecedora da la­ngua e da cultura chinesas, que fez o belo trabalho de tradução da obra. Nosso intuito era escolher um(a) autor(a) cla¡ssico(a) da literatura chinesa, mas pouco conhecido(a) no Brasil osjustamente para dar ao paºblico brasileiro a oportunidade de conhecaª-lo(a). Ha¡ alguns anos, em uma visita de trabalho a Xangai osonde Lu Xun passou parte da vida –, li referaªncias sobre o escritor, que indicavam-no como um dos autores de maior importa¢ncia para a literatura chinesa moderna.

Nãosou um especialista em literatura oslonge disso! –, mas ler éum dos meus maiores prazeres. Assim, fiquei ata´nito por ainda não conhecer Lu Xun e, ao mesmo tempo, muito curioso para ler seus livros. La¡ mesmo, comprei um deles, em inglês, e gostei muito, sobretudo do seu olhar crítico ose de uma divertida ironia ossobre a sociedade chinesa de seu tempo (as primeiras décadas do século XX). Quando esta¡vamos discutindo sobre a obra a ser traduzida, sugeri, portanto, o Lu Xun. Aa­, fizemos uma pesquisa para ver os ta­tulos já traduzidos e foi a Peggy quem sugeriu Flores matinais colhidas ao entardecer, ainda sem tradução para portuguaªs osnem aqui, nem em Portugal. Acolhemos de imediato a sugestãoe ficamos todos muito felizes com o resultado.

Editora da Unicamp: Especialmente em tempos em que a diplomacia entre o Brasil e a China écomprometida pelos comenta¡rios irresponsa¡veis e grosseiros do ex-ministro Abraham Weintraub, de Eduardo Bolsonaro e do pra³prio presidente Bolsonaro, como a troca cultural entre nossospaíses pode reforçar a relação amistosa entre os povos chinaªs e brasileiro?

Bruno De Conti: Eu diria que essa troca cultural éabsolutamente crucial para reduzir os efeitos negativos de atitudes tão deplora¡veis quanto as dessas figuras que, lamentavelmente, alcana§aram uma posição de importa¢ncia no cena¡rio nacional oso que facilita que essas barbaridades ecoem. Ha¡ um conceito formulado pelo socia³logo italiano Pietro Basso que se aplica como uma luva ao que estamos hoje verificando no Brasil, que éo de “racismo de Estado”. Um racismo construa­do por cima e que, infelizmente, tem consequaªncias pesadas para os chineses que vivem no Brasil e para as relações entre os doispaíses.

Em relação a esses sujeitos que vocêmencionou na pergunta, não vejo solução, pois suas declarações são fruto de ignora¢ncia, mas não são. Sa£o também fruto de ma¡ fanã. De uma estratanãgia de governo. O atual governo tenta manter popularidade por meio de um conjunto de atitudes nefastas, dentre as quais, essa de difundir o racismo nopaís. Mas, em relação a  grande maioria da população brasileira, tenho convicção de que um maior conhecimento da China e da cultura chinesa pode ajudar muito na redução dos mal-entendidos; na consolidação dessa relação amistosa a  qual vocêfaz referaªncia.

Nãotenho a menor daºvida de que o dia¡logo intercultural aproxima os povos. A globalização traz um conjunto de problemas para o mundo, sobretudo para ospaíses perifanãricos, como o Brasil. Mas éinega¡vel que hátambém aspectos positivos. E um dos principais éjustamente a possibilidade que hoje temos osmais do que em qualquer outro momento da história osde conhecer outras culturas e de aprender com elas. Infelizmente, as relações de poder, que discuti hápouco, criam obsta¡culos a esse processo, mas éjustamente contra esses obsta¡culos que devemos lutar.

A China tem uma cultura milenar. Como o Brasil, éumpaís continental e muito diverso dos pontos de vista anãtnico, religioso e, claro, cultural. Tem, portanto, expressaµes culturais e arta­sticas das mais variadas. E bela­ssimas! No contato com a cultura chinesa, éevidente que cada um de nostera¡ suas preferaªncias, pode ser que alguns não gostem de uma coisa ou de outra, como acontece com as manifestações culturais de qualquer outropaís. Mas épreciso conhecaª-las. Nãoépossí­vel que, em pleno século XXI e com todas as facilidades tecnologiicas que nos rodeiam, que ainda sejamos refanãns de um macarthismo da pior espanãcie; de um obscurantismo construa­do. a‰ preciso lutar contra essa hierarquia das culturas.

Voltando agora a  pergunta, vejo que o povo brasileiro tem muito interesse na cultura chinesa. E tenho convicção de que um conhecimento maior dessa cultura osconjugada, claro, com um conhecimento maior da cultura brasileira pelos chineses osfortalecera¡ a amizade entre os povos. Para não gerar nenhum mal-entendido, épreciso apenas destacar que essa relação amistosa entre brasileiros e chineses tende a ser a regra. As atitudes execra¡veis de membros do atual governo éque são a exceção. Mas, justamente, um conhecimento maior da cultura chinesa e do povo chinaªs por parte da população brasileira a tornara¡ mais imune a s tentativas do atual governo de criar essa cisma entre os povos.

 

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