Humanidades

Livro recupera textos raros de 'autor oculto' da historiografia nacional
Escritos do diplomata e historiador Manuel de Oliveira Lima ganham edia§a£o da Biblioteca Brasiliana da USP
Por Luiz Prado - 17/09/2021


“Oliveira Lima ainda não faz parte do ca¢none historiogra¡fico brasileiro por desconhecimento de sua obra”, afirma Raªgo osFoto: Unsplash
 
A história intelectual osalia¡s, qualquer especialização da história, sejamos precisos oséfeita de figuras consagradas, nomes menores, sujeitos controversos e personagens ocultos. Estes últimos são aqueles encontrados em notas de rodapanã, edições amareladas de sebo ou relana§amentos esparsos de um ou dois trabalhos, não importa o tamanho da obra completa do autor. Aparecem na boca dos especialistas, e seus nomes são uma espanãcie de palavra³rio arcano de iniciados. Ecos de suas ideias reverberam nos cla¡ssicos, mas émuito fa¡cil perder de vista seu rastro encoberto.

Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) éum desses sujeitos ocultos da historiografia nacional. Diplomata e historiador pernambucano nascido em Recife, Oliveira Lima tem uma obra elogiada sobre o período da corte portuguesa no Brasil, além de um conjunto de trabalhos que cobre desde a chegada dos lusitanos ao Paa­s atéos primeiros anos da República. Fora do campo da história, teve longa colaboração na imprensa e deixou escritos sobre cra­tica litera¡ria, geografia, diplomacia e direito.

Apesar da publicação recente de livros como D. Joa£o VI no Brasil e O Reconhecimento do Impanãrio, parte considera¡vel de sua produção carece de reedições cuidadosas. E muito de suas conferaªncias, ensaios, produção jornala­stica e textos curtos permanece praticamente inanãdito, tendo em vista que após a publicação original ose algumas já ultrapassam um século osnão ganharam novas versaµes.

Com a chegada de O Descobrimento do Brasil e Outros Ensaios, esse vazio comea§a a abrir espaço para uma redescoberta de Oliveira Lima, passados poucos anos de seu sesquicentena¡rio. Organizado pelo também historiador, diplomata e pernambucano AndréHera¡clio do Raªgo, o volume integra a Coleção 3a—22 da Biblioteca Brasiliana Guita e JoséMindlin (BBM) da USP, dedicada ao lana§amento de obras que propaµem narrativas alternativas ao ca¢none da história nacional.

O livro organizado por Raªgo, que étambém pa³s-doutorando do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e em 2017 já havia lana§ado Oliveira Lima: Um Historiador das Amanãricas, reaºne sete textos “quase inanãditos” de Oliveira Lima. Sa£o ensaios, artigos para jornal e transcrições de conferaªncias que integram o acervo da BBM, mas atéagora se encontravam dispersos e sem tratamento cra­tico. Especialmente digitalizados, transcritos e revisados para o livro, ganharam também um estudo introduta³rio feito para a edição, além de notas e comenta¡rios que acompanham cada um dos ensaios.

“O grande diferencial deste livro éque são textos quase inanãditos”, explica o organizador. “Sa£o escritos que foram publicados de forma esparsa em coleta¢neas, na Revista do Instituto Hista³rico e Geogra¡fico de Sa£o Paulo, em uma obra chamada Livro do Centena¡rio, de 1900, e depois não foram mais publicados.” Para Raªgo, a presente edição, reunindo textos pouco conhecidos, uma introdução inanãdita e notas atualizadas, éa possibilidade de os leitores redescobrirem Oliveira Lima.
 
Uma visão abrangente do Brasil

Raªgo procurou, na seleção dos textos, compor uma visão cronola³gica e abrangente da história do Brasil. Por isso, o livro abre com o ensaio O Descobrimento do Brasil osSuas Primeiras Explorações e Negociações Diploma¡ticas a Que Deu Origem, contribuição de Oliveira Lima feita para o 4º Centena¡rio do Descobrimento e publicado no que ficou conhecido como Livro do Centena¡rio. Sem ver uma nova edição há121 anos, o escrito abarca desde os antecedentes ao Tratado de Tordesilhas, de 1494, atémais ou menos 1530, nos prima³rdios da ocupação portuguesa.

Hista³ria da Colonização Portuguesa do Brasil, um
dos livros de Oliveira Lima-Foto:
Leila£o de Arte Brasileira

O segundo texto, A Nova Lusita¢nia, trata das capitanias heredita¡rias a partir do exemplo de Pernambuco, batizada por seu primeiro donata¡rio, Duarte Coelho Pereira, como Nova Lusita¢nia. Foi publicado originalmente em 1924, em Portugal, na coleta¢nea Hista³ria da Colonização Portuguesa do Brasil, supervisionada por Carlos Malheiros Dias e lana§ada em homenagem ao centena¡rio da Independaªncia brasileira.

A Conquista do Brasil e O Brasil e os Estrangeiros resultam da transcrição de duas conferaªncias realizadas por Oliveira Lima na Banãlgica, respectivamente em Bruxelas e em Antuanãrpia, publicadas no mesmo número da Revista do Instituto Hista³rico e Geogra¡fico de Sa£o Paulo, em 1910. A primeira discute a ocupação do interior do Paa­s ao longo dos séculos 17 e 18, enquanto a segunda aborda a importa¢ncia dos estrangeiros na formação nacional, comentando as guerras e ocupações francesa e holandesa e outras presena§as particulares, como de italianos e alema£es. “Oliveira Lima trata aqui também de uma categoria interessanta­ssima, os estrangeiros que ajudaram o Brasil sem nunca estar aqui”, conta Raªgo. “Cita o caso, por exemplo, do inglês Robert Southey, autor da primeira história do Brasil digna desse nome e que nunca esteve no Brasil.”

Outra conferaªncia, dessa vez realizada em Sa£o Paulo, deu origem a O Papel de JoséBonifa¡cio no Movimento da Independaªncia, publicado em 1907 também na Revista do Instituto Hista³rico e Geogra¡fico de Sa£o Paulo. Segundo Raªgo, o texto éuma antecipação do material que apareceria em uma obra mais conhecida do autor, O Movimento da Independaªncia, de 1922. “A gaªnese desse livro estãonesse ensaio de 1907”, pontua.

Dos sete ensaios do volume, o dedicado a JoséBonifa¡cio étambém o aºnico que recebeu uma segunda edição. Foi em 1971, integrando uma obra seleta de Oliveira Lima organizada pelo jornalista, historiador e pola­tico Barbosa Lima Sobrinho. “O Descobrimento do Brasil e Outros Ensaios pretende ser também uma homenagem a Barbosa Lima Sobrinho e uma tentativa de prosseguimento do labor dele”, declara Raªgo.

O livro segue com um ensaio de cunho memorialista sobre Euclides da Cunha, escrito para o jornal O Estado de S.Paulo por ocasia£o da morte do autor de Os Sertaµes, em 1909, e republicado em livro em sua homenagem em 1918. Encerra a obra Aspectos da Hista³ria e da Cultura do Brasil, transcrição de conferaªncias realizadas por Oliveira Lima na Faculdade de Letras de Lisboa em 1923 e que serve como uma espanãcie de conclusão para os textos anteriores.

Autor oculto

Em vida, Oliveira Lima acumulou presta­gio, reconhecimento e desavena§as que podem surpreender quem escuta seu nome pela primeira vez. Um nota³rio amante dos livros, o historiador foi educado em Lisboa, onde se graduou em Letras e reuniu uma formação robusta em cra­tica litera¡ria e historiografia. Foi também em Portugal que iniciou sua carreira diploma¡tica, que o levaria ainda para a Banãlgica, Suanãcia, Alemanha, Japa£o, Venezuela, Inglaterra e Estados Unidos. a‰ la¡, inclusive, na Universidade Cata³lica de Washington, onde lecionou, que hoje se encontra sua imponente biblioteca, com 58 mil ta­tulos.

Oliveira Lima conciliou a carreira diploma¡tica com a vocação de historiador, desdobrando-se ainda na cra­tica litera¡ria e em colaborações em jornais de Pernambuco e Sa£o Paulo, como uma sanãrie de artigos para O Estado de S.Paulo durante a Primeira Guerra Mundial. Arrumou tempo ainda para ser um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, em 1897.

“Oliveira Lima éum historiador sui generis na história do Brasil, porque foi o primeiro grande historiador brasileiro que não foi autodidata”, comenta Raªgo. Essa diferença em relação a nomes como Joaquim Nabuco e o Bara£o do Rio Branco, oriundos de cursos de Direito, e Capistrano de Abreu, um autodidata, singulariza Oliveira Lima. “Se de um lado isso prejudicou sua carreira social, tanto na diplomacia quanto na academia osporque ele não foi beneficiado pela sociabilidade que a frequência dos cursos de Direito do Recife e de Sa£o Paulo possibilitava –, por outro lado, garantiu acesso antes deles e de forma acadaªmica a s modernas teorias e correntes da história e da sociologia.”

Em Lisboa, Oliveira Lima teve como professores grandes nomes da intelectualidade local, como Tea³filo Braga, folclorista, cientista social e primeiro presidente portuguaªs. Graças a eles, o pernambucano tomou contato com as novas teorias da história, o que refletiu em sua abordagem. “Oliveira Lima dizia que a história do Paa­s não deveria ser são a história militar”, conta Raªgo. “Ele afirmava que a história de uma nação, do povo, deveria considerar também os aspectos da vida privada, das relações entre senhores e escravos, entre brasileiros e portugueses, entre governantes e governados. Nesse sentido, ele antecipa não são Gilberto Freyre, mas a própria Escola dos Annales, com a história da vida privada.”

Em D. Joa£o VI no Brasil, prossegue Raªgo, Oliveira Lima também antecipou Sanãrgio Buarque de Holanda e seu homem cordial quando salientava a influaªncia predominante das relações afetivas nas decisaµes políticas. Já na abordagem do processo de Independaªncia, sua originalidade seria ecoada pelo pensamento de Freyre, quando este falaria dos revoluciona¡rios conservadores, tais como Feija³. “Oliveira Lima inovou em muita coisa e foi precursor de muita gente importante da intelectualidade brasileira do século 20. Alguns reconhecem isso, outros não”, explica Raªgo.

Para o organizador da coleta¢nea recanãm-lana§ada, além de Freyre e Sanãrgio Buarque, a lista daqueles que carregam em seu DNA as intuições do pernambucano inclui ainda gente como Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes, apenas para ficar em nomes destacados. “Eu diria que Oliveira Lima éum sujeito oculto da historiografia e da sociologia brasileira do século 20. Suas percepções estãoem muitos autores, declaradamente ou não.”

Mas o que explicaria essa invisibilidade de Oliveira Lima? Para Raªgo, os motivos são variados. Em primeiro lugar, ele era um “diplomata muito pouco diploma¡tico”, que acumulou desavena§as com seu chefe, o Bara£o de Rio Branco, com Joaquim Nabuco e com outras figuras influentes da anãpoca. Sua mudança para Washington no fim da vida também pode ter influenciado no empoeiramento de sua obra, já que muitos de seus contatos no Brasil foram perdidos. Além disso, diferentemente de Capistrano de Abreu, que teve uma sociedade criada em sua homenagem logo após sua morte, responsável por garantir a edição de seus trabalhos, o pernambucano não teve nada parecido. “Oliveira Lima ainda não faz parte do ca¢none historiogra¡fico brasileiro por desconhecimento de sua obra”, pontua o organizador.

Se depender de Raªgo, isso pode mudar em breve. Durante o processo de recolha, seleção, revisão e diagramação do livro, o pesquisador ficou tão empolgado que decidiu dar continuidade ao trabalho de busca dos textos “quase inanãditos” de Oliveira Lima. A jornada o levou a  Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, a  Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, ao IEB, a  Biblioteca Nacional Francesa e a  Biblioteca da Academia Brasileira de Letras, além de garantir novas visitas a  BBM. Nessa aventura, cerca de 70 textos foram encontrados, versando sobre a história do Brasil, de Portugal e de Pernambuco, cra­tica litera¡ria, geografia, diplomacia e direito.

Raªgo quer agora fazer uma nova edição com esses escritos e estãoem busca de editoras e patrocinadores. “Lana§o um apelo a s instituições públicas e privadas e aos amigos da cultura brasileira em prol dessa obra seleta de Oliveira Lima, que seria uma homenagem ao autor e uma homenagem a Barbosa Lima Sobrinho, que fez a primeira obra seleta. Seria uma maneira bem interessante de comemorar o bicentena¡rio da Independaªncia”, oferece Raªgo.

O Descobrimento do Brasil e Outros Ensaios, de AndréHera¡clio do Raªgo (organização), Publicações BBM, 352 pa¡ginas. Download gratuito no site da BBM.

 

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