Humanidades

Pesquisa revela troca de cartas em tupi entre inda­genas do século 17
Traduzidos pelo professor Eduardo Navarro, da USP, documentos da£o informaa§aµes sobre a Insurreia§a£o Pernambucana
Por Juliana Alves - 29/10/2021


Fotomontagem de La­via Magalha£es com imagens de Patrick Raynaud/APIB e Eduardo Navarro/Arquivo
 
A história éescrita pelos vencedores. No caso brasileiro, primeiro foram os portugueses e, depois, os holandeses. Documentos que contam a história brasileira pela perspectiva dos que foram vencidos osos povos origina¡rios ossão raros. O professor Eduardo Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em tupi antigo e em literatura do Brasil colonial, mostra uma dessas exceções. Navarro pesquisou seis cartas trocadas entre inda­genas em 1645, os aºnicos textos conhecidos que os pra³prios inda­genas escreveram em tupi nos tempos coloniais. Essas cartas estãoguardadas nos arquivos da Real Biblioteca de Haia, na Holanda, e detalham uma guerra religiosa travada entre portugueses e holandeses, com a presença de inda­genas em cada lado, conhecida como Insurreição Pernambucana (1645-1654).

O professor explica que essas seis cartas pertenciam ao arquivo da Companhia das andias Ocidentais, uma empresa de comanãrcio com capitais privados e também capitais do Estado holandaªs. Essa companhia organizou uma invasão do Nordeste brasileiro em 1625, que não foi bem-sucedida. Os integrantes da companhia voltaram para opaís europeu com alguns inda­genas a bordo, entre eles os caciques Pedro Poti e Anta´nio Paraopeba. Na Holanda, os caciques foram convertidos ao protestantismo calvinista. Cinco anos depois, houve outra tentativa de invadir a costa do Nordeste. E dessa vez deu certo, principalmente, em Pernambuco, onde os holandeses permaneceram por 24 anos, desde 1630 até1654. 

Carta de Felipe Camara£o a Pedro Poti, de 19 de agosto de 1645 os
Foto: Arquivo de Eduardo Navarro
 
“E por que Portugal deixou a Holanda invadir o seu territa³rio?”, provoca Navarro. Ele relata que, em 1645, fazia cinco anos que Portugal tinha saa­do do doma­nio espanhol e, para firmar sua independaªncia, era necessa¡rio obter apoio dos holandeses. Essa aliana§a foi consolidada pelo padre Anta´nio Vieira, que também era diplomata. Ele escreveu o plano Papel Forte, que consistia em entregar o Nordeste brasileiro em troca de apoio pola­tico. Já os senhores de engenho não queriam a presença dos holandeses, pois muitos estavam endividados com a Companhia das andias Ocidentais. Queriam que os holandeses fossem embora, para não pagar suas da­vidas. Nesse período, o conde Maura­cio de Nassau foi quem administrou Pernambuco e conseguiu apaziguar os conflitos religiosos e dos senhores de engenho. Ele criou um ambiente de tolera¢ncia religiosa, numa anãpoca em que em territa³rio portuguaªs era obrigata³rio o catolicismo e as outras religiaµes eram consideradas heresia. 

Quando Nassau voltou para a Europa, em 1644, começam a acontecer conflitos religiosos. Jacob Rabbi, um alema£o a serviço do governo holandaªs, provocou um massacre em Cunhaaº, no Rio Grande do Norte. As portas da Igreja de Nossa Senhora das Candeias foram trancadas e dezenas de fianãis foram mortos. Esse foi o estopim para a Insurreição Pernambucana.

Navarro descreve que, do lado holandaªs, ficaram Pedro Poti e Anta´nio Paraopeba, inda­genas protestantes, e, do lado portuguaªs, Felipe Camara£o, inda­gena cata³lico, que pedia a seus parentes Poti e Paraopeba que voltassem para o lado portuguaªs. “Esses pedidos estãonas cartas, todas de 1645: a primeira éde agosto e as últimas são de outubro. Foram preservadas seis cartas, mas imagino que deve haver mais”, destaca o professor. Ele conta que a primeira carta de que háregistro éde Felipe Camara£o, pedindo para que Pedro Poti deixasse os holandeses, sob a alegação de que eram hereges e “estãono fogo do diabo”. Camara£o escrevia que os inda­genas precisavam se unir, pois eram do mesmo sangue e não podiam se matar daquela maneira. A resposta do Poti éconhecida atravanãs de um resumo em holandaªs feito por um pastor holandaªs. “Poti respondeu que não havia motivo para apoiar os portugueses, já que eles são fizeram mal para seu povo: escravizaram e praticaram violência contra os potiguaras. Uma cra­tica bem contundente”, ressalta Navarro. Diferentes dos holandeses, os portugueses não preservaram as cartas dos inda­genas, entre elas a resposta de Poti. “Por isso são épossí­vel ver as cartas que os holandeses receberam”, lamenta o professor.

O conteaºdo das cartas éconstitua­do por textos sobre inda­genas que desejam que seus parentes se unam, que abandonem as suas posições na guerra e parem de matar os seus parentes. Ha¡ comenta¡rios em que eles pedem que suas antigas tradições sejam revigoradas. Por meio das cartas, obtem-se também informações mais especa­ficas, como os nomes dos caciques que morreram na guerra e os lugares em que eles lutaram.

Pelo fato de as cartas serem escritas pelos pra³prios inda­genas, pode-se observar como era a la­ngua efetivamente falada e usada por eles, de acordo com Navarro. Assim, as cartas também são consideradas provas de que os missiona¡rios descreveram a la­ngua corretamente. Como conta o professor, háestudiosos que dizem que os missiona¡rios jesua­tas teriam adaptado a la­ngua aos seus interesses. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. “As cartas comprovam que missiona¡rios escreveram exatamente aquilo que os inda­genas falavam.”

Antes de Navarro, houve algumas tentativas de traduções das cartas. Uma delas foi feita pelo engenheiro Teodoro Sampaio, que recebeu as cartas pelo historiador JoséHygino Duarte Pereira, que foi quem as descobriu, em 1885. O engenheiro confessa, em seu artigo Cartas tupis dos Camaraµes (1908), que atéconseguia reconhecer o assunto das cartas, mas não conseguia traduzi-las efetivamente. Eram “verdadeiros mistanãrios”. Ninguanãm mais tentou traduzi-las atéa década de 1990, quando o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Aryon Rodrigues foi a  Holanda buscar essas cartas. Nãoconseguiu traduzi-las e mostrou-as a Navarro. “Eu pedi para a biblioteca na Holanda e elas chegaram em microfilmes. E percebi que ninguanãm conseguia traduzi-las porque não havia diciona¡rio em tupi antigo. Eu tive que elaborar um diciona¡rio para depois traduzir as cartas”, explica Navarro. Apa³s publicar Diciona¡rio de Tupi Antigo: a La­ngua Inda­gena Cla¡ssica do Brasil (2013), Navarro começou a analisar as seis cartas de forma mais intensa.

“Sa£o os primeiros e os aºnicos documentos escritos pelos pra³prios inda­genas atéa Independaªncia do Brasil. a‰ muito raro ter algo escrito pelos inda­genas que tenha sido preservado. Esse éo verdadeiro valor dessas cartas”, destaca Navarro. Com esses “documentos preciosos”, de acordo com Navarro, observa-se também os rumos da guerra. As cartas mostram o movimento dos exanãrcitos, aspectos da cultura dos inda­genas potiguaras e certa tristeza por terem perdido sua cultura tradicional.

“Esse trabalho me alegra muito”, comenta Navarro. Ele afirma que háduas razões para essa alegria. A primeira éque a pesquisa éuma contribuição para a cultura brasileira. A segunda éque as cartas auxiliam no ensino. O professor conta que desde 2001 ensina tupi para um grupo de inda­genas potiguaras, na Paraa­ba, que tinham deixado de falar sua la­ngua e hoje buscam uma afirmação da sua identidade e querem aprender a la­ngua. 

A pesquisa do professor Navarro serápublicada no Boletim do Museu Paraense Ema­lio Goeldi, de Belanãm, no Para¡. 

 

.
.

Leia mais a seguir