Humanidades

Arnaldo Jabor, um olhar para além da tela e da imprensa
O cineasta e jornalista, morto no último dia 15, deixa um legado de ideias e opiniaµes fortes e filmes marcantes
Por Marcello Rollemberg - 21/02/2022


O cineasta e jornalista Arnaldo Jabor (1940-2022) – (Foto: Divulgação/Canal Brasil)
 
Em 12 de abril de 2017, Arnaldo Jabor, que morreu no último dia 15, aos 81 anos, em consequaªncia de um AVC, escreveu: “Caros leitores, meus semelhantes e irmãos, vou abandona¡-los. Isso. Correndo o risco de ‘lugares-comuns’ ou lamentos narcisistas, vou dizer por quaª. Foram vinte e seis anos escrevendo sem parar em vários jornais do Paa­s.

E aqui já vai meu primeiro lugar-comum: ‘como o tempo voa… foi outro dia mesmo’ que estreei na Folha de S. Paulo, onde fiquei por dez anos.

Depois, fui para outros jornais, incluindo o Estada£o e O Tempo, de Belo Horizonte. Fiz as contas e, entre o espanto e o orgulho (outra obviedade), verifiquei que, nestas duas décadas e meia, escrevi cerca de mil e quinhentos artigos em jornais. Mil e quinhentos? a‰. Logo depois, me meti na TV e no ra¡dio, onde também estou hávinte anos mais ou menos. Ra¡dio e TV juntos somam cerca de três mil comenta¡rios sobre a vida do Paa­s atéhoje. Como ousei? Com que cara me meti nisso, deitando regra sobre tudo? Bem, foi por fome e não por vaidade”.

Nessa crônica, em tom de despedida osa razãoera comea§ar a rodar seu nono filme, Meu ašltimo Desejo, baseado em conto de Rubem Fonseca, e que ficou inanãdito –, Jabor elenca a quantidade de crônicas publicadas em jornais Brasil afora e o número de comenta¡rios feitos na TV e no ra¡dio. Aritmanãtica simples. Se formos pensar que o “adeus” na crônica osque deveria ser a última osnão se concretizou e que ele continuou a destilar sua opinia£o pelos mais diferentes vea­culos e ma­dias, podera­amos exponenciar os 1.500 artigos e os três mil comenta¡rios, indo a números ainda mais substantivos. A aritmanãtica continua simples osmas háum problema aa­. Arnaldo Jabor, em seus mais de 50 anos de atividade, nunca deu muita bola para a aritmanãtica, para a linearidade, para uma lógica que coloca em caixinhas pensamentos e ideias, preconcebidas ou não.

Naquelas mais de 1.500 crônicas e nos seus milhares de comenta¡rios, Jabor se especializou em uma coisa: fustigar (mesmo irritar) pola­ticos a  esquerda e a  direita. Ele incomodava os dois lados? Então, por uma lógica enviesada osmas eivada de verdade –, ele tinha raza£o. Partindo, inclusive, da máxima de Millor Fernandes: “Todo jornalismo éoposição. O resto éarmazanãm de secos e molhados”. 

E Jabor, do alto de seu 1,87 metro de altura, gostava de ser oposição. Seu tom a¡cido, ira´nico e muito coloquial podia fazer tremer os espectros ideola³gicos de qualquer coloração, talvez atéocupando um espaço que era de direito de Paulo Francis, morto em 1996. Afinal, Jabor fazia um jornalismo de oposição ose de opinia£o, esses artigos tão raros nos dias de hoje.

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Jornalista? Sim, mas não por vocação, mas, como ele mesmo afirmou no texto iniciado la¡ em cima, “por fome, e não por vaidade” osapesar de ele ter comea§ado nas antigas ma¡quinas de escrever, la¡ no começo dos anos 1960, em jornais estudantis. 

Porque Arnaldo Jabor era, antes de tudo, um cineasta. E dos muito bons. “Eu era cineasta e virei jornalista”, afirmou ele em outra crônica. Então, como foi essa transição? 

Darlene Gla³ria e Paulo Porto em Toda Nudez Sera¡ Castigada, filme de
Arnaldo Jabor, adaptado da obra de Nelson Rodrigues osFoto: Divulgação
 
Muitos já sabem, mas não custa repetir osou, no caso, repercutir a voz inconfunda­vel do autor: “Eu fiz cinema por trinta anos e, como todo cineasta, sofria de duas angaºstias ba¡sicas: ansiedade e frustração. Fiz nove filmes e, mesmo assim, passava necessidade para sustentar minhas filhas. Um dia falei: ‘Enchi. Chega de sofrer’. Encontrei Fernando Gabeira num avia£o e pedi que ele me recomendasse a  Folha, onde ele escrevia. Pois não éque o bom Gabeira me indicou ao Otavinho Frias, que me empregou? Sou grato a Gabeira por isso”. 

“Encheu”? Nãonecessariamente. Mais acertadamente seria dizer que teve as asas cortadas osele, e o Cinema Brasileiro, com maiaºsculas mesmo, quando o governo de Fernando Collor acabou, em começo dos anos 1990, com a Embrafilme e jogou ideias, ca¢meras e profissionais em uma vala comum onde não cabiam grandes expectativas. Ele apontou o dedo em direção ao “sucateamento” da produção cinematogra¡fica nacional. Um sucateamento que teve vários na­veis, ora parecendo arrefecer oscom a criação da Ancine –, ora parecendo ser ainda mais voraz, como tem se visto nos últimos anos, quando o tal “sucateamento” estendeu seus tenta¡culos e, não contente em afundar o cinema, faz questãode colocar a pique a cultura brasileira de um modo geral.

Jabor confessou que teve que se reinventar profissionalmente e, depois de décadas atrás de uma ca¢mera, foi parar atrás de um computador. Por fome, e não por vaidade, lembram? Mas a fome passou, a vaidade osconvenhamos osdeu o ar da graça (sempre da¡) e Jabor talvez tenha se tornado muito mais conhecido do paºblico comum osou de um paºblico mais recente osdepois que começou a escrever em jornais e aparecer na TV e em emissoras de ra¡dio do que no período em que rodou seus oito filmes, alguns deles cla¡ssicos, como Toda Nudez Sera¡ Castigada (1972) e a chamada “trilogia do apartamento” osou “trilogia entre quatro paredes”: Tudo Bem (1978), Eu Te Amo (1980) e Eu Sei Que Vou Te Amar (1986).

Corta.

Vamos falar de cinema? Então…

Rewind

CPC, Cinema Novo e nudez castigada osou não

Antes de se reinventar na pele jornala­stica, o carioca Arnaldo Jabor já havia construa­do sua persona cinematogra¡fica, de um diretor que começou la¡ em 1967 com o documenta¡rio Opinia£o Paºblica osuma tentativa de “cinema verdade” fruto de um curso patrocinado pelo Itamaraty que havia feito anos antes com o sueco Arne Sucksdorff, radicado no Brasil, ganhador de um Oscar em 1949, da Palma de Ouro de Cannes em 1952 e 1954 e… inspirador daquilo que o mundo passaria a conhecer como Cinema Novo.

Porque Arnaldo Jabor, antes de tudo, era um cinema-novista, da chamada “segunda geração”, e que conviveu intensamente com nomes (e amigos) como Gustavo Dahl, Glauber Rocha, Caca¡ Diegues e Leon Hirszman. E que bebeu em uma fonte essencial naqueles longa­nquos anos 1960: o Centro Popular de Cultura da Unia£o Nacional dos Estudantes, o ica´nico CPC da UNE. Naquele cadinho de ideias, jovens tentavam entender, repensar e reinterpretar o Brasil, com suas mazelas, sua heterogeneidade, suas distorções sociais e políticas. O caminho seria fazer isso a partir de uma cultura de base, popular, e gente como Carlos Vereza, Sanãrgio Ricardo, Edu Lobo, entre outros, queriam trilhar essa longa e tortuosa estrada. Mas aa­ veio 31 de mara§o de 1964 e a principal iniciativa cultural do Paa­s na década de 60 foi extinta, ardendo em um incaªndio real que lambeu a sede da UNE e em chamas metafa³ricas que engolfaram o Paa­s em uma longa noite que duraria 20 anos.

Mas a semente do pensamento do CPC já tinha germinado e, banhado também nas a¡guas do neorrealismo italiano e da nouvelle vague francesa, surgiu o Cinema Novo, aquele de “uma ca¢mera na ma£o e uma ideia na cabea§a”. Mas não osnão foi tão simples, tão sofisticado ou tão imediato assim.

“Lembro-me do cinema nos anos 60, quando comecei. E ouso dizer: o Cinema Novo nasceu num botequim. Isso mesmo. La¡ no bar da La­der, na Rua alvaro Ramos, em Botafogo, foram sonhados dezenas de filmes. O bar da La­der não era um bar; era um botequim ta­mido e pobre em frente ao laboratório La­der, onde revela¡vamos e copia¡vamos nossos filmes. Tinha dois gara§onzinhos; um espanhol quase anão e um cearense cafuzo, que se esbugalhavam diante de nossas discussaµes infinitas sobre arte”, escreveu Jabor a respeito de sua alma mater. “E era ali, no meio de insignificantes objetos brasileiros, era ali que traz¡vamos os planos para conquistar o mundo. Conspira¡vamos contra o ‘campo e contracampo’, contra os travelings desnecessa¡rios, contra o happy end, contra a fa³rmula narrativa do cinema norte-americano e, por uma estranha ilação, acha¡vamos que, se a la­ngua de nossos filmes fosse diferente da la­ngua oficial, estara­amos contribuindo para a salvação pola­tica do Paa­s. Claro, nossa ca¢mera era um fuzil que, em vez de mandar balas, recolhia imagens do Paa­s para ‘libertar’ os espectadores. Acha¡vamos que, mostrando a ‘realidade’ brasileira, misteriosamente, contribua­amos para muda¡-la. Nãosaba­amos ainda que, assim como existia um modo de produção oficial, havia também uma ‘realidade oficial’ em cores e efeitos especiais que resistiria ao ataque guerrilheiro das meta¡foras pobres. A estanãtica da fome de Glauber transformava nossa fome em nossa riqueza”, relembrou ele. “Por isso, nossos filmes eram meta¡foras deles mesmos; na sua precariedade morava um retrato do Brasil ao avesso, a boa e velha realidade a³bvia, sem efeitos sofisticados.”
 
A primeira incursão no cinema foi como tanãcnico de som de Ganga Zumba, Rei dos Palmares, do amigo Carlos (Caca¡) Diegues, mas logo ala§ou voos solo. O primeiro éo já citado documenta¡rio-cinema-verdade Opinia£o Paºblica. O segundo, em 1970, foi um fracasso total: Pindorama quase levou a produtora a  falaªncia. Mas Jabor insistiu e já tinha em sua ala§a de mira o espectro que queria deslindar e apresentar: essa entidade complexa e, ao mesmo tempo, instigante e muitas vezes incompreensa­vel chamada classe média brasileira. E foi com essa ideia na cabea§a, com uma ca¢mera na ma£o e um roteiro bem amarrado em cima de uma das pea§as mais polaªmicas de Nelson Rodrigues que ele realizou Toda Nudez Sera¡ Castigada, em 1972. Pronto. O jogo virou. Trata-se de uma das melhores adaptações de Nelson para o cinema, bem distante daquelas que enveredaram por um lado mais pornochanchada do universo rodriguiano. A nudez não foi castigada, mas sim premiada: Darlene Gla³ria, na pele da prostituta Geni, levou o Urso de Prata do Festival de Berlim graças a uma atuação única: nem antes, nem depois, ela apresentaria uma performance tão marcante.

O universo “classe média vai ao cinema” continuou nas lentes de Jabor, chegando ao seu paroxismo na também já mencionada “trilogia do apartamento”. Ali, solida£o, DRs intermina¡veis, amor e vazio (em suas várias facetas) se misturam em um mosaico tantosensívelquanto inquietante. Mas aa­, Fernando Collor virou presidente, e deu no que deu.

Arnaldo Jabor foi para as ondas do ra¡dio, para as telinhas televisivas e para as pa¡ginas dos jornais. Ganhou outra persona, apesar de nunca ter, de fato, se despedido da anterior. Voltou a filmar são em 2010, quando lançou o terno A Suprema Felicidade, que passou praticamente em brancas nuvens. Mas isso, no final das contas, importa? Porque as ideias e as opiniaµes de Jabor ficam, vocêgostando ou não delas ose, com certeza, rendiam (rendem?) uma boa discussão. Esta¡ aa­ sua validade.

A mesma validade que tinham aquelas reuniaµes em um botequim esquecido em uma esquina de Botafogo, no Rio de Janeiro, onde se gestavam revoluções culturais, cinema-novismos e uma outra realidade. Onde também se sonhava, como o pra³prio Jabor escreveu, com uma ponta de saudosismo, quando lhe perguntaram sobre voltar a filmar:

“O cinema ficou muito complicado, muito mercadola³gico, sem poesia, muito aporrinhante. E me deu uma profunda saudade do ovo cor-de-rosa que o espanholzinho me servia, em cima de um pedacinho de papel de pa£o, num pires de loua§a rachada, com um saleiro sujo do lado. Havia ali, naquela precariedade, naquela vitrininha com linguia§a frita, pastel e empadinha, havia, ali no aa§ucareiro cheio de moscas, uma esperana§a, uma alegria selvagem que nunca mais senti na vida. Ali, naquele botequim, entre a linguia§a e o ovo cor-de-rosa, morava um sonho brasileiro que nunca se realizou.”

 

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