O cineasta e jornalista, morto no último dia 15, deixa um legado de ideias e opiniaµes fortes e filmes marcantes
O cineasta e jornalista Arnaldo Jabor (1940-2022) – (Foto: Divulgação/Canal Brasil)
Â
Em 12 de abril de 2017, Arnaldo Jabor, que morreu no último dia 15, aos 81 anos, em consequaªncia de um AVC, escreveu: “Caros leitores, meus semelhantes e irmãos, vou abandona¡-los. Isso. Correndo o risco de ‘lugares-comuns’ ou lamentos narcisistas, vou dizer por quaª. Foram vinte e seis anos escrevendo sem parar em vários jornais do Paas.
E aqui já vai meu primeiro lugar-comum: ‘como o tempo voa… foi outro dia mesmo’ que estreei na Folha de S. Paulo, onde fiquei por dez anos.
Depois, fui para outros jornais, incluindo o Estada£o e O Tempo, de Belo Horizonte. Fiz as contas e, entre o espanto e o orgulho (outra obviedade), verifiquei que, nestas duas décadas e meia, escrevi cerca de mil e quinhentos artigos em jornais. Mil e quinhentos? a‰. Logo depois, me meti na TV e no ra¡dio, onde também estou hávinte anos mais ou menos. Ra¡dio e TV juntos somam cerca de três mil comenta¡rios sobre a vida do Paas atéhoje. Como ousei? Com que cara me meti nisso, deitando regra sobre tudo? Bem, foi por fome e não por vaidadeâ€.
Nessa crônica, em tom de despedida osa razãoera comea§ar a rodar seu nono filme, Meu ašltimo Desejo, baseado em conto de Rubem Fonseca, e que ficou inanãdito –, Jabor elenca a quantidade de crônicas publicadas em jornais Brasil afora e o número de comenta¡rios feitos na TV e no ra¡dio. Aritmanãtica simples. Se formos pensar que o “adeus†na crônica osque deveria ser a última osnão se concretizou e que ele continuou a destilar sua opinia£o pelos mais diferentes veaculos e madias, poderaamos exponenciar os 1.500 artigos e os três mil comenta¡rios, indo a números ainda mais substantivos. A aritmanãtica continua simples osmas háum problema aa. Arnaldo Jabor, em seus mais de 50 anos de atividade, nunca deu muita bola para a aritmanãtica, para a linearidade, para uma lógica que coloca em caixinhas pensamentos e ideias, preconcebidas ou não.
Naquelas mais de 1.500 crônicas e nos seus milhares de comenta¡rios, Jabor se especializou em uma coisa: fustigar (mesmo irritar) polaticos a esquerda e a direita. Ele incomodava os dois lados? Então, por uma lógica enviesada osmas eivada de verdade –, ele tinha raza£o. Partindo, inclusive, da máxima de Millor Fernandes: “Todo jornalismo éoposição. O resto éarmazanãm de secos e molhadosâ€.Â
E Jabor, do alto de seu 1,87 metro de altura, gostava de ser oposição. Seu tom a¡cido, ira´nico e muito coloquial podia fazer tremer os espectros ideola³gicos de qualquer coloração, talvez atéocupando um espaço que era de direito de Paulo Francis, morto em 1996. Afinal, Jabor fazia um jornalismo de oposição ose de opinia£o, esses artigos tão raros nos dias de hoje.
Pause
Jornalista? Sim, mas não por vocação, mas, como ele mesmo afirmou no texto iniciado la¡ em cima, “por fome, e não por vaidade†osapesar de ele ter comea§ado nas antigas ma¡quinas de escrever, la¡ no começo dos anos 1960, em jornais estudantis.Â
Porque Arnaldo Jabor era, antes de tudo, um cineasta. E dos muito bons. “Eu era cineasta e virei jornalistaâ€, afirmou ele em outra crônica. Então, como foi essa transição?Â
Darlene Gla³ria e Paulo Porto em Toda Nudez Sera¡ Castigada, filme de
Arnaldo Jabor, adaptado da obra de Nelson Rodrigues osFoto: Divulgação
Â
Muitos já sabem, mas não custa repetir osou, no caso, repercutir a voz inconfundavel do autor: “Eu fiz cinema por trinta anos e, como todo cineasta, sofria de duas angaºstias ba¡sicas: ansiedade e frustração. Fiz nove filmes e, mesmo assim, passava necessidade para sustentar minhas filhas. Um dia falei: ‘Enchi. Chega de sofrer’. Encontrei Fernando Gabeira num avia£o e pedi que ele me recomendasse a Folha, onde ele escrevia. Pois não éque o bom Gabeira me indicou ao Otavinho Frias, que me empregou? Sou grato a Gabeira por issoâ€.Â
“Encheuâ€? Nãonecessariamente. Mais acertadamente seria dizer que teve as asas cortadas osele, e o Cinema Brasileiro, com maiaºsculas mesmo, quando o governo de Fernando Collor acabou, em começo dos anos 1990, com a Embrafilme e jogou ideias, ca¢meras e profissionais em uma vala comum onde não cabiam grandes expectativas. Ele apontou o dedo em direção ao “sucateamento†da produção cinematogra¡fica nacional. Um sucateamento que teve vários naveis, ora parecendo arrefecer oscom a criação da Ancine –, ora parecendo ser ainda mais voraz, como tem se visto nos últimos anos, quando o tal “sucateamento†estendeu seus tenta¡culos e, não contente em afundar o cinema, faz questãode colocar a pique a cultura brasileira de um modo geral.
Jabor confessou que teve que se reinventar profissionalmente e, depois de décadas atrás de uma ca¢mera, foi parar atrás de um computador. Por fome, e não por vaidade, lembram? Mas a fome passou, a vaidade osconvenhamos osdeu o ar da graça (sempre da¡) e Jabor talvez tenha se tornado muito mais conhecido do paºblico comum osou de um paºblico mais recente osdepois que começou a escrever em jornais e aparecer na TV e em emissoras de ra¡dio do que no período em que rodou seus oito filmes, alguns deles cla¡ssicos, como Toda Nudez Sera¡ Castigada (1972) e a chamada “trilogia do apartamento†osou “trilogia entre quatro paredesâ€: Tudo Bem (1978), Eu Te Amo (1980) e Eu Sei Que Vou Te Amar (1986).
Corta.
Vamos falar de cinema? Então…
Rewind
CPC, Cinema Novo e nudez castigada osou não
Antes de se reinventar na pele jornalastica, o carioca Arnaldo Jabor já havia construado sua persona cinematogra¡fica, de um diretor que começou la¡ em 1967 com o documenta¡rio Opinia£o Paºblica osuma tentativa de “cinema verdade†fruto de um curso patrocinado pelo Itamaraty que havia feito anos antes com o sueco Arne Sucksdorff, radicado no Brasil, ganhador de um Oscar em 1949, da Palma de Ouro de Cannes em 1952 e 1954 e… inspirador daquilo que o mundo passaria a conhecer como Cinema Novo.
Porque Arnaldo Jabor, antes de tudo, era um cinema-novista, da chamada “segunda geraçãoâ€, e que conviveu intensamente com nomes (e amigos) como Gustavo Dahl, Glauber Rocha, Caca¡ Diegues e Leon Hirszman. E que bebeu em uma fonte essencial naqueles longanquos anos 1960: o Centro Popular de Cultura da Unia£o Nacional dos Estudantes, o ica´nico CPC da UNE. Naquele cadinho de ideias, jovens tentavam entender, repensar e reinterpretar o Brasil, com suas mazelas, sua heterogeneidade, suas distorções sociais e políticas. O caminho seria fazer isso a partir de uma cultura de base, popular, e gente como Carlos Vereza, Sanãrgio Ricardo, Edu Lobo, entre outros, queriam trilhar essa longa e tortuosa estrada. Mas aa veio 31 de mara§o de 1964 e a principal iniciativa cultural do Paas na década de 60 foi extinta, ardendo em um incaªndio real que lambeu a sede da UNE e em chamas metafa³ricas que engolfaram o Paas em uma longa noite que duraria 20 anos.
Mas a semente do pensamento do CPC já tinha germinado e, banhado também nas a¡guas do neorrealismo italiano e da nouvelle vague francesa, surgiu o Cinema Novo, aquele de “uma ca¢mera na ma£o e uma ideia na cabea§aâ€. Mas não osnão foi tão simples, tão sofisticado ou tão imediato assim.
“Lembro-me do cinema nos anos 60, quando comecei. E ouso dizer: o Cinema Novo nasceu num botequim. Isso mesmo. La¡ no bar da Lader, na Rua alvaro Ramos, em Botafogo, foram sonhados dezenas de filmes. O bar da Lader não era um bar; era um botequim tamido e pobre em frente ao laboratório Lader, onde revela¡vamos e copia¡vamos nossos filmes. Tinha dois gara§onzinhos; um espanhol quase anão e um cearense cafuzo, que se esbugalhavam diante de nossas discussaµes infinitas sobre arteâ€, escreveu Jabor a respeito de sua alma mater. “E era ali, no meio de insignificantes objetos brasileiros, era ali que traz¡vamos os planos para conquistar o mundo. Conspira¡vamos contra o ‘campo e contracampo’, contra os travelings desnecessa¡rios, contra o happy end, contra a fa³rmula narrativa do cinema norte-americano e, por uma estranha ilação, acha¡vamos que, se a langua de nossos filmes fosse diferente da langua oficial, estaraamos contribuindo para a salvação polatica do Paas. Claro, nossa ca¢mera era um fuzil que, em vez de mandar balas, recolhia imagens do Paas para ‘libertar’ os espectadores. Acha¡vamos que, mostrando a ‘realidade’ brasileira, misteriosamente, contribuaamos para muda¡-la. Nãosabaamos ainda que, assim como existia um modo de produção oficial, havia também uma ‘realidade oficial’ em cores e efeitos especiais que resistiria ao ataque guerrilheiro das meta¡foras pobres. A estanãtica da fome de Glauber transformava nossa fome em nossa riquezaâ€, relembrou ele. “Por isso, nossos filmes eram meta¡foras deles mesmos; na sua precariedade morava um retrato do Brasil ao avesso, a boa e velha realidade a³bvia, sem efeitos sofisticados.â€
Â
A primeira incursão no cinema foi como tanãcnico de som de Ganga Zumba, Rei dos Palmares, do amigo Carlos (Caca¡) Diegues, mas logo ala§ou voos solo. O primeiro éo já citado documenta¡rio-cinema-verdade Opinia£o Paºblica. O segundo, em 1970, foi um fracasso total: Pindorama quase levou a produtora a falaªncia. Mas Jabor insistiu e já tinha em sua ala§a de mira o espectro que queria deslindar e apresentar: essa entidade complexa e, ao mesmo tempo, instigante e muitas vezes incompreensavel chamada classe média brasileira. E foi com essa ideia na cabea§a, com uma ca¢mera na ma£o e um roteiro bem amarrado em cima de uma das pea§as mais polaªmicas de Nelson Rodrigues que ele realizou Toda Nudez Sera¡ Castigada, em 1972. Pronto. O jogo virou. Trata-se de uma das melhores adaptações de Nelson para o cinema, bem distante daquelas que enveredaram por um lado mais pornochanchada do universo rodriguiano. A nudez não foi castigada, mas sim premiada: Darlene Gla³ria, na pele da prostituta Geni, levou o Urso de Prata do Festival de Berlim graças a uma atuação única: nem antes, nem depois, ela apresentaria uma performance tão marcante.
O universo “classe média vai ao cinema†continuou nas lentes de Jabor, chegando ao seu paroxismo na também já mencionada “trilogia do apartamentoâ€. Ali, solida£o, DRs intermina¡veis, amor e vazio (em suas várias facetas) se misturam em um mosaico tantosensívelquanto inquietante. Mas aa, Fernando Collor virou presidente, e deu no que deu.
Arnaldo Jabor foi para as ondas do ra¡dio, para as telinhas televisivas e para as pa¡ginas dos jornais. Ganhou outra persona, apesar de nunca ter, de fato, se despedido da anterior. Voltou a filmar são em 2010, quando lançou o terno A Suprema Felicidade, que passou praticamente em brancas nuvens. Mas isso, no final das contas, importa? Porque as ideias e as opiniaµes de Jabor ficam, vocêgostando ou não delas ose, com certeza, rendiam (rendem?) uma boa discussão. Esta¡ aa sua validade.
A mesma validade que tinham aquelas reuniaµes em um botequim esquecido em uma esquina de Botafogo, no Rio de Janeiro, onde se gestavam revoluções culturais, cinema-novismos e uma outra realidade. Onde também se sonhava, como o pra³prio Jabor escreveu, com uma ponta de saudosismo, quando lhe perguntaram sobre voltar a filmar:
“O cinema ficou muito complicado, muito mercadola³gico, sem poesia, muito aporrinhante. E me deu uma profunda saudade do ovo cor-de-rosa que o espanholzinho me servia, em cima de um pedacinho de papel de pa£o, num pires de loua§a rachada, com um saleiro sujo do lado. Havia ali, naquela precariedade, naquela vitrininha com linguia§a frita, pastel e empadinha, havia, ali no aa§ucareiro cheio de moscas, uma esperana§a, uma alegria selvagem que nunca mais senti na vida. Ali, naquele botequim, entre a linguia§a e o ovo cor-de-rosa, morava um sonho brasileiro que nunca se realizou.â€