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Pandemias do passado e do futuro: uma conversa com o Nobelista David Baltimore
Em 1975, Baltimore compartilhou o Praªmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta da enzima que va­rus como o HIV usam para copiar seu RNA no DNA.
Por Lori Dajose - 19/04/2020

Cortesia

Embora não haja duas pandemias iguais, cada uma delas tem lições para nos ensinar sobre a próxima. David Baltimore , presidente emanãrito e professor de biologia de Robert Andrews Millikan, éum virologista que estudou o HIV durante o auge da pandemia da Aids nas décadas de 1980 e 1990.

Em 1975, Baltimore compartilhou o Praªmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta da enzima que va­rus como o HIV usam para copiar seu RNA no DNA. Esses chamados retrova­rus inserem permanentemente a ca³pia do DNA de seus genes em uma canãlula hospedeira, impossibilitando a verdadeira remoção de uma infecção. Embora o novo coronava­rus (sa­ndrome respirata³ria aguda grave coronava­rus 2 ou SARS-CoV-2) felizmente não seja um retrova­rus, ele ainda estãocausando a pandemia global mais destrutiva desde o pico da pandemia de AIDS.

Em conversa por telefone com a jornalista Lori Dajose, caltech/news, reproduzia no maisconhecer.com, Baltimore  fala  sobre a perspectiva dessa pandemia, e como se preparar para as inevita¡veis ​​que estãopor vir.

Vocaª pode nos guiar primeiro pela linha do tempo da epidemia de AIDS?

A epidemia de Aids começou, na verdade, com algumas observações em Los Angeles de pacientes que apareciam nos consulta³rios médicos com uma variedade de sintomas estranhos, todos sugerindo uma falha no sistema imunológico. Era uma sa­ndrome que nunca havia sido vista antes. Doena§as especa­ficas da pele e da boca e outras coisas que, juntas, não faziam sentido. Esses pacientes eram em sua maioria homens gays e eram atendidos por médicos especializados no tratamento de homens gays.

Os médicos relataram esses casos aos Centros de Controle de Doena§as em Atlanta, que publicaram essa ocorraªncia como uma raridade, mas outros médicos em outros lugares reconheceram que estavam vendo problemas semelhantes. Tornou-se uma sa­ndrome de origem desconhecida e levou algum tempo atéque a causa fosse reconhecida como um va­rus, chamado va­rus da imunodeficiência humana ou HIV.

Uma vez que ficou claro que era um va­rus, foi possí­vel considera¡-lo uma doença infecciosa que se espalhava de uma pessoa para outra. Isso ajudou enormemente a identificar o tipo de problema que era, mas era claramente um agente que nunca vimos antes. Acabou sendo um va­rus pertencente a uma classe de va­rus em que eu havia trabalhado 10 anos antes, chamada retrova­rus. Eu havia descoberto que os retrova­rus tinham uma capacidade enzima¡tica única para fazer uma ca³pia de DNA de seu RNA. Por isso, eu ganhei o Praªmio Nobel em 1975. Agora, no ini­cio dos anos 80, essa classe de va­rus estava bem estabelecida, mas ninguanãm nunca a viu causando uma doença desse tipo.

Eventualmente, o va­rus HIV foi atribua­do a um va­rus endaªmico em macacos da áfrica, que chegou aos chimpanzanãs, aos seres humanos e estava sendo transmitido - mal, mas efetivamente - entre os humanos. Mal no sentido de que não éum va­rus muito infeccioso. Tudo isso ficou claro nos anos 80 e 90.

Enquanto isso, o va­rus HIV naturalmente se espalhou pelo mundo. a‰ bastante uniforme e letal, causando uma pandemia de doenças e mortes. Felizmente, as pessoas estudavam inibidores de va­rus como esse, e havia na prateleira alguns medicamentos que foram testados imediatamente quanto a  capacidade de interromper a doena§a. De fato, um deles, o AZT, mostrou-se muito eficaz, embora tenha pouco efeito porque o va­rus sofreu uma mutação. Mas, deu a pista de que essa era a direção a seguir no desenvolvimento de drogas. Muitos outros medicamentos dessa classe foram fabricados por diferentes empresas farmacaªuticas e, finalmente, obtivemos bons compostos antivirais.

A comunidade cienta­fica estudou a natureza do va­rus e encontrou outros pontos fracos que foram alvos do desenvolvimento de medicamentos. Acabamos com um amplo espectro de medicamentos para tratar esta doena§a. Hoje, a AIDS émantida como uma doença crônica, mas sua letalidade tem sido amplamente controlada, pelo menos no mundo desenvolvido, onde os medicamentos estãodisponí­veis de maneira mais consistente. Agora vivemos com o va­rus da Aids, HIV, como parte do nosso mundo.

Portanto, a pandemia da Aids foi retardada com medicamentos para tratamento, mas não com uma vacina contra o HIV. Por que não houve uma vacina contra o HIV?

Essa éuma história muito interessante, porque assumimos que seremos capazes de fazer uma vacina contra a maioria dos va­rus quando eles forem descobertos. Historicamente, fabricamos vacinas contra uma ampla variedade de va­rus: vara­ola e poliomielite, sarampo, caxumba, rubanãola, etc. Com essa história, espera¡vamos fazer uma vacina.

Eu estive envolvido em pensar sobre isso nos anos 80 e, quando analisamos esse va­rus, vimos que ele tinha uma caracterí­stica que sugeria que talvez não fosse possí­vel fazer uma vacina. Essa caracterí­stica éque o va­rus pode e sofre mutação livremente, apresentando constantemente um perfil imunológico diferente. Apesar do trabalho de empresas e cientistas universita¡rios em todo o mundo, não temos uma vacina. Realmente nunca houve um va­rus tão recalcitrante de controlar e tão letal. Ainda assim, alguns de meus colegas estãotrabalhando em maneiras pelas quais finalmente podemos desenvolver uma vacina .

Portanto, esse éo pano de fundo contra o qual o COVID-19 apareceu. Quais são algumas diferenças entre essa pandemia e essa? Por exemplo, vocêmencionou que o HIV étransmitido mal, enquanto o va­rus COVID-19 parece estar transmitindo muito rapidamente.

Sim, uma das principais diferenças éque o SARS-CoV-2 éextremamente infeccioso, enquanto o HIV émuito pouco infeccioso.

Existem muitas outras diferenças entre os dois va­rus. Primeiro de tudo, eles fazem parte de fama­lias muito diferentes de va­rus. O SARS-CoV-2 éum coronava­rus. O HIV chamamos de retrova­rus ou lentiva­rus. Eles tem uma história evolutiva completamente diferente e muitas diferenças de mecanismos. Embora sejam ambos va­rus - ou seja, são agentes muito pequenos que crescem apenas dentro das células -, eles se comportam de maneiras muito diferentes.

Mas eles são semelhantes porque ambos vieram de animais. Para o HIV, eram macacos e, para a SARS-CoV-2, pensamos em morcegos. Ambos são novos para os seres humanos. Nãotemos nenhum medicamento para lidar com os coronava­rus, porque os coronava­rus não foram um grande problema atéagora. Eles eram um pequeno problema focal com os va­rus que causam SARS e MERS [sa­ndrome respirata³ria do Oriente Manãdio], que são coronava­rus, mas esses surtos foram contidos relativamente rapidamente.

Como estamos lidando com essa pandemia atual? O foco estãono tratamento com medicamentos ou no desenvolvimento de uma vacina?

No momento, não temos nada para lidar com o va­rus. Esperamos que os medicamentos desenvolvidos para outros fins possam funcionar contra o coronava­rus, mas éclaro que não temos vacina. Estamos comea§ando do zero. No entanto, temos um enorme arsenal para trabalhar nisso. Temos empresas que fizeram vacinas contra muitos outros va­rus e desenvolveram medicamentos como os do HIV.

A comunidade cienta­fica espera que fazer uma vacina contra o COVID-19 seja relativamente simples. Mas não temos experiência para continuar. Na³s nunca fizemos uma vacina contra nenhum coronava­rus porque não precisamos. Nãotemos experiência para saber se essa classe de va­rus seráfa¡cil de lidar com imunologia ou difa­cil. Estou esperana§oso, mas o va­rus estãose espalhando tão incrivelmente efetivamente que não temos muito tempo se quisermos ter um impacto na propagação.

Por isso, escolhemos a única rota que sabemos que funcionara¡ para retardar a propagação do va­rus e impedir as pessoas de se congregarem. Esse va­rus, como qualquer outro va­rus, são existe ao se espalhar de uma pessoa para outra pessoa para outra pessoa. Essa divulgação requer um contato pra³ximo entre as pessoas, e épor isso que agora pedimos que as pessoas fiquem um metro e oitenta, que usem máscaras e que fiquem em casa.

Estamos fazendo coisas que nunca fizemos antes nesta escala para tentar bloquear a transmissão, sem drogas e sem vacina. Temos que aceitar a perturbação da sociedade, a interrupção da atividade econa´mica, a interrupção da atividade intelectual, a interrupção de todos os comportamentos comuns.

O resfriado comum também éfreqa¼entemente causado por um coronava­rus; por que não éconsiderada uma pandemia?

O resfriado comum também éuma pandemia. Mas não életal. Existem centenas de tipos diferentes de va­rus que causam o resfriado comum - alguns deles com coronava­rus -, mas geralmente não nos preocupamos com eles, porque eles se cuidam. Eles causam um resfriado leve, geralmente em criana§as, que depois desaparece.

Esses tipos de coronava­rus não são causas graves de doenças e, portanto, não nos preocupamos com eles. Mesmo que eles causem uma pandemia - ou seja, existem muitas e muitas pessoas no mundo todo que estãopegando o fungo -, apenas permitimos que nosso sistema imunológico lide com isso.

Provavelmente não éuma boa ideia ignorarmos os va­rus do resfriado comum. As autoridades de saúde pública a s vezes estudam o resfriado comum, pelo menos para entender sua história natural e onde édistribua­da, como éinfecciosa, outras coisas. Mas não colocamos muitos recursos nisso porque não éum desafio real para a nossa sociedade.

O va­rus COVID-19 életal em algo como 1-5% das infecções, ao contra¡rio do coronava­rus do resfriado comum, que praticamente nunca életal. Nãota­nhamos imunidade pré-existente ao COVID-19, porque nunca foi visto em humanos antes, atéonde sabemos. Agora estamos nos mobilizando para tentar impedir sua disseminação porque estãomatando pessoas e seunívelde perturbação do funcionamento comum de nossa sociedade éabsolutamente extraordina¡rio. Nunca vimos nada assim desde a epidemia de gripe de 1918 - e muito poucos de nosviram isso.

Em retrospecto, hálgo que vocêacha que epidemiologistas e autoridades de saúde pública deveriam ter feito de maneira diferente para lidar com a pandemia da Aids, e algo que vocêacha que devera­amos estar fazendo de maneira diferente agora para lidar com essa pandemia?

Bem, a pandemia de AIDS foi tratada muito mal. Na anãpoca, no ini­cio dos anos 80, parecia ser uma doença que afetava principalmente os gays. Naquela anãpoca, a homossexualidade era tratada como um desvio. O Presidente Reagan nem queria usar a palavra AIDS, a palavra HIV, a palavra gay. Por isso, demoramos muito a desenvolver uma resposta a  epidemia de HIV por causa da homofobia. Realmente levou uma década ou duas antes de reconhecermos que, em primeiro lugar, este era um va­rus que foi encontrado na comunidade homossexual muito extensivamente, mas também fora dela, e particularmente na áfrica.

Ta­nhamos que perceber que precisa¡vamos trata¡-lo como uma ameaça a  nossa sociedade, não apenas como uma doença de uma determinada classe de pessoas. Fomos então muito mais eficazes em evita¡-lo, impedindo o contato e tratando-o com os medicamentos que surgiram. Mas demorou muito tempo.

Em 1986, fui co-presidente de um comitaª da Academia Nacional de Ciências que publicou um relatório chamado Confrontando a AIDS. Essa era uma atividade que deveria ter sido realizada pelo governo federal, mas o governo federal tinha medo de toca¡-la. Então, foi feito pela Academia Nacional de Ciências e estabeleceu um plano para opaís estudar o va­rus, responder ao va­rus e agir. O dinheiro foi apropriado pelo Congresso e iniciamos um programa de pesquisa sanãrio. Mas isso foi cinco anos depois que conhecemos a natureza do va­rus.

O ini­cio da nossa resposta ao COVID-19 foi muito semelhante a  nossa resposta ao HIV. Tentamos classifica¡-lo como uma doença de apenas certas pessoas, chineses para COVID-19 ou homossexuais para AIDS. Tentamos ignora¡-lo. Saba­amos, na comunidade cienta­fica, que os va­rus não afetam apenas um grupo de pessoas, que se espalham para todos. Assim que soubemos que o COVID-19 era infeccioso, saba­amos que ele se espalharia por todo o mundo. Agora estamos descobrindo que a terra­vel epidemia na cidade de Nova York realmente começou em fevereiro, mas ninguanãm estava prestando atenção nela. E veio da Europa, não veio da China.

A comunidade cienta­fica entende que uma nova pandemia faz parte da história das pandemias e que o que aconteceu uma vez antes acontecera¡ novamente.

O que podemos, como sociedade, fazer para nos preparar para a próxima pandemia viral?

Devemos colocar os recursos para nos proteger e desenvolver nossas capacidades nas áreas de epidemiologia, saúde pública, vacinas, respostas rápidas e ciência de va­rus em geral.

Devera­amos ter um grupo de profissionais de saúde pública que estudam esses problemas continuamente, analisando todos os va­rus do mundo natural e dizendo um por um: "Se esse va­rus se soltar, o que fara­amos?" e nos preparar. Na³s podemos fazer tudo isso. Na verdade, não émuito caro. Mas isso significa que, antes de tudo, não podemos depender de nossas indaºstrias para fazaª-lo, porque não éeconomicamente atraente.

a‰ algo que deve ser feito pelo paºblico e isso significa que deve haver dinheiro reservado para isso. Durante toda a minha vida, o que eu vi éque toda vez que háuma epidemia, dizemos: "Agora temos que estudar isso e nos preparar para a próxima". Mas dentro de alguns anos, esse impulso se foi, o dinheiro foi transferido para outros problemas e não mantemos nossa vigila¢ncia do mundo natural. Nãoestamos mantendo nossas capacidades no desenvolvimento de vacinas e medicamentos; portanto, precisamos comea§ar tudo de novo quando surgir a próxima doena§a. Isso éma­ope. a‰ a realidade da pola­tica, no entanto.

Agora que os pesquisadores estãotrabalhando com drogas e vacinas, e o resto da sociedade parece mobilizado de nossa própria maneira com as diretrizes para ficar em casa e as medidas de proteção, hálgo em particular que vocêacha que podemos fazer melhor?

Bem, estou realmente muito impressionado com o que estãoacontecendo. Algumas empresas simplesmente disseram: "Vamos dedicar nossa experiência a esse problema e não vamos nos preocupar com a economia dele". Acho que teremos uma resposta para esse problema, mas a resposta já étarde demais. O que vimos com essa epidemia éque, assim que o gaªnio sair da garrafa, por assim dizer, ele se espalha tão amplamente e com tanta rapidez que, a menos que tenhamos todas as nossas defesas prontas, vamos chegar tarde demais. Agora estamos atrasados.

Devemos aprender com isso. Já devemos ter um programa nacional para garantir que da próxima vez que isso acontea§a, não estamos tão indefesos.

 

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