Mundo

Por que a Amanãrica não pode escapar de suas raa­zes racistas
Orlando Patterson diz que houve progresso, mas opaís precisa rejeitar a ideologia da supremacia branca, intolera¢ncia no policiamento e segregaa§a£o
Por Liz Mineo - 05/06/2020


Um estudioso da escravida£o e questões raciais, Orlando Patterson, o professor de
Sociologia John Cowles, fala sobre o assassinato de George Floyd. 
Foto de arquivo de Stephanie Mitchell / Harvard

A morte de George Floyd, ocorrida depois que um policial branco de Minneapolis se ajoelhou no pescoa§o por quase nove minutos durante uma prisão, provocou uma onda de raiva, angaºstia e protestos em todo opaís. Para entender melhor o que estãoacontecendo e o que o futuro reserva, com a palavra Orlando Patterson, professor de Sociologia de John Cowles. Estudioso da escravida£o e questões de raça, Patterson falou sobre o legado da ideologia da supremacia branca, o racismo no policiamento e a conta­nua discriminação generalizada e segregação na vida americana. Ele também explicou por que espera que opaís ainda possa curar sua divisão racial e vaª uma promessa particular nos jovens.

Perguntas e Respostas
Orlando Patterson


Ha¡ dois anos, vocêfalou com a Gazeta no 50º aniversa¡rio do Relata³rio Kerner, que culpou o racismo da sociedade branca como a causa subjacente dos distúrbios raciais de 1967. Vocaª disse então que talvez precisa¡ssemos de outro relatório que analise as raa­zes do desigualdades raciais nopaís. Qual éa sua opinia£o agora?

Os relatórios são sempre aºteis se bem executados. Atualmente, existem muitos estudos sobre raça e desigualdade, de fato, éuma indústria virtual. Nãofaltam pesquisas completas e bem informadas. Mas não faria mal nenhum um grupo de pessoas reunir os principais resultados das descobertas de estudos recentes, incluindo também a visão de pessoas influentes, não apenas acadaªmicos, mas também lideres comunita¡rios, pola­ticos e religiosos, que podem diga onde eles pensam que estamos e para onde estamos indo em termos de relações raciais na Amanãrica. Isso seria importante agora, depois do assassinato de George Floyd. Muitas pessoas devem estar se perguntando o que aconteceu nos últimos meio século ou mais, desde os primeiros distúrbios definidores dos anos 60, sem mencionar os distúrbios de Rodney King em 1992. O elemento da supremacia branca e do racismo cra´nico estãotão profundamente enraizado que não apenas não apenas protestos, mas reformas emudanças institucionais va£o fazer a diferença? Essa éuma visão deprimente. Meu sentimento éque hálgo novo nessas manifestações.

O que háde novo nesses protestos, em comparação com os protestos de 1967, 1968 ou 1992, ou com os mais recentes organizados pelo movimento Black Lives Matter?

Por um lado, e isso também éverdade nas manifestações de Rodney King em 1992, a diferença éa composição dos manifestantes. Nãose pode deixar de ficar impressionado com a proporção significativa de manifestantes brancos, hispa¢nicos e asia¡ticos. Foi interessante, por exemplo, que quando a pola­cia interrompeu brutalmente uma manifestação perto da Casa Branca e prendeu os manifestantes em uma estrada, um homem do sul da asia levou 70 deles em sua casa. Meu sentimento éque essa éuma expressão de indignação mais diversa, embora ainda predominantemente negra. Eu acho que tem a ver com o momento em que estamos vivendo agora. As pessoas pareciam horrorizadas porque estamos vendo esse tipo de coisa depois de todos esses anos, mas também sentem que algo estãoprofundamente errado. O que éaterrorizante neste momento éque as instituições fundamentais de nossa democracia estãosob ataque,

Que semelhanças vocêencontra entre os protestos anteriores, incluindo os que se seguiram ao espancamento de Rodney King e os liderados pelo movimento Black Lives Matter, e os protestos atuais?

O denominador comum éa violência policial e a brutalidade. Temos esses atos e assassinatos brutais, e temos indignação, protestos, comissaµes, recomendações e, repetidas vezes, a pola­cia continua nos seus modos antigos. Eles não procuram respeitar a vida e estãopreparados para brutalizar alguém por algo menor do que passar uma nota falsificada de US $ 20 ou passear de jay. A pola­cia também faz parte de um dos piores desenvolvimentos recentes na vida americana: encarceramento em massa. a‰ historicamente sem precedentes, e évergonhoso que opaís que afirma ser o lider do mundo livre, embora a maioria do resto do mundo considere que uma piada, tenha o maior número de pessoas na prisão do mundo: 2,3 milhões. E mais de 40% dos presos são negros. Isso érealmente surpreendente, e a pola­cia tem muito a ver com isso,

Houve outros casos de brutalidade policial nos últimos anos, mas por que vocêacha que o assassinato de George Floyd levou a essa onda de protestos, mesmo além dos Estados Unidos? Por que isso aconteceu agora e não antes?

Primeiro, a coisa toda foi capturada em va­deo. E foi especialmente arrepiante por causa da indiferença, do sentimento de completa indiferença, do desdanãm pela vida de alguém que o policial mostrou ao matar Floyd. Já vimos va­deos de brutalidade no passado, mas este ocorreu logo após uma sanãrie de assassinatos na pola­cia, e simplesmente chegou ao ponto de ruptura. Quando vi a expressão no rosto daquele policial e que outros três policiais estavam ao seu redor, esperando como se isso fosse apenas um nega³cio, como sempre, pensei em Hannah Arendt e em sua frase "a banalidade do mal". O que Arendt achou mais horra­vel foi que as pessoas comuns foram capazes de cometer assassinatos horra­veis e, no final do dia, voltaram para casa, para suas boas casas e suas boas fama­lias, e no dia seguinte voltaram e mataram novamente.

Qual o papel da pandemia nessa onda de agitação?

Quando passamos por esse marco crítico de 100.000 mortes, pedimos que um lider expressasse nosso medo e ansiedade coletivos. Na³s não entendemos isso. As pessoas ficaram realmente horrorizadas com o que estava acontecendo e com os relatórios que dizem que milhares de vidas poderiam ter sido poupadas se nossa liderana§a fosse mais competente e menos auto-absorvida e preocupada apenas com o problema da reeleição. Opaís viu duas grandes falhas se unindo: por um lado, a ausaªncia de um sistema de saúde adequado e, por outro, a liderana§a incompetente. Quando a questãoda brutalidade policial surgiu com este va­deo, as pessoas viram um elo entre a liderana§a incompetente, o fracasso do estado de bem-estar americano e o ressurgimento de um dos piores aspectos da sociedade americana: sua supremacia branca e ideologia racista.

Como a supremacia branca se encaixa nisso?

O que a matana§a fez énos mostrar que ainda persiste uma ideologia racista de supremacia branca incondicional, que rejeita forasteiros, qualquer um que não seja branco. Essa ideologia agora estãoem ascensão como resultado da liderana§a na Casa Branca. O que vejo são duas grandes tradições americanas que estãocompetindo. Existe a tradição liberal e existe a tradição igualmente dominante da supremacia branca, que sai do sul, mas viaja para o norte. Existe uma tensão real entre eles.

Argumentei em meus escritos que houve um progresso extraordina¡rio na mudança de atitudes dos americanos brancos em relação aos negros e outras minorias. No ini­cio dos anos 60, a maioria dos brancos disse abertamente que via os negros como inferiores, e agora háuma aceitação da igualdade, pelo menos em suas opiniaµes. Eu sempre disse que essa pode ser a grande maioria, mas ainda há20, 25% dos brancos que ainda adotam visaµes supremacistas brancas. Esse núcleo duro de supremacistas brancos ainda estãola¡ e foi incentivado e estãoliderando um tipo de movimento revanchista. E isso éassustador.

Manifestantes em frente a um mural de George Floyd no local onde ele foi imobilizado
por um policial ajoelhado no pescoa§o em Minneapolis. Stringer / Sputnik via AP

Para aqueles que não são supremacistas brancos, mas podem estar apenas despertando para as disparidades raciais nopaís, o que vocêgostaria que eles soubessem sobre questões de raça nos Estados Unidos?

Nãoquero usar o termo “pessoas brancas” em termos gerais, porque, como disse antes, o que háde especial nesses protestos recentes éa participação de brancos, muitos deles jovens. Mas também vejo pessoas de meia idade e algumas da minha idade. Quero enfatizar que acho que os americanos brancos passaram pormudanças bastante radicais em suas atitudes, e que estamos falando de 25% dos americanos que são racistas incondicionais, mas acho que a maioria dos americanos tem opiniaµes bastante decentes sobre a raça.

Mas os socia³logos argumentam que, embora alguns brancos possam ter visaµes liberais, muitos deles não estãopreparados para fazer as concessaµes que são importantes para a melhoria da vida dos negros. Por exemplo, uma das razões pelas quais as pessoas estãolotadas nos guetos éo fato de a habitação ser tão cara nos subaºrbios, e uma razãopara isso éque os estatutos restringem a construção de moradias para várias ocupações. Esses estatutos tem sido muito eficazes para impedir a entrada de moradias de renda moderada nos subaºrbios, e isso tem impedido que os trabalhadores, entre os quais os negros são desproporcionais, se mudem para la¡ e tenham acesso a boas escolas. Os socia³logos afirmaram que, embora tenhamos uma melhoria genua­na nas atitudes raciais, o que não temos éa disposição dos liberais brancos de colocar seu dinheiro onde estãoa boca.

Um dos aspectos fundamentais do problema racial americano éa segregação. A população negra estãoquase tão segregada agora como nos anos 60. Essa éa base de muitos problemas que os negros enfrentam, mas também explica e perpetua o isolamento dos brancos que crescem em bairros onde não vaªem os negros ou interagem com eles. Isso reforça a ideia de que os negros são estranhos e não pertencem.

O que muitas pessoas brancas não entendem sobre a vida e as experiências das pessoas de cor nestepaís?

Alguns fazem; alguns não. Eu definitivamente vejo uma mudança na geração mais jovem. Nãoéapenas uma questãode atitudes. De muitas maneiras, os jovens brancos são provavelmente os menos racistas entre os brancos. Eles são mais tolerantes racialmente.

Eu vi sinais encorajadores disso. Eu morava na Trowbridge Street, em Cambridge, e gostava de caminhar pela Cambridge Rindge e pela Latin School. Sempre fiquei impressionado com a fa¡cil interação entre criana§as brancas e criana§as negras, que era muito diferente das décadas de 1960 ou 1970. Ele mostra o que épossí­vel com uma configuração mais integrada. Agora vocêtem isso em muitas áreas, mas não o suficiente. Na maioria dos casos, o que vocêtem são escolas amplamente segregadas. a‰ a³bvio que, se vocênão cresce com as pessoas, não sabe como interagir com elas ou como fazer amizade com elas. Muitos negros reclamam do constrangimento de interagir com os brancos que cresceram com pouco contato com os negros. a‰ por isso que enfatizo fortemente a necessidade de se livrar dos guetos e da segregação.

Como opaís pode avana§ar na superação da divisão racial?

A questãoimediata com a qual estamos lidando agora éa brutalidade policial. Sera¡ necessa¡rio repensar profundamente a organização dos departamentos de pola­cia em todo opaís. Nãose trata apenas de nomear chefes de pola­cia negros, porque não háevidaªncias de que isso faz alguma diferença. Porque geralmente o que acontece éque eles se inclinam para trás para provar a  maioria dos policiais brancos que estãosendo bons policiais, e a última coisa que eles querem ése abrir a  acusação de racismo reverso. O que énecessa¡rio éum repensar completo da cultura policial e a tendaªncia de ver as comunidades a s quais estãoservindo como inimigos. Essa éa coisa mais imediata, porque a brutalidade policial estãose tornando epidaªmica. Se algo não for feito, assim que as manifestações terminarem, eles voltara£o silenciosamente a fazer o que sempre fazem.

Tambanãm precisamos abordar as taxas de encarceramento. Apoiei fortemente o [presidente Barack] Obama, mas não acho que ele tenha feito o suficiente nessa questão. Precisamos continuar reduzindo o tamanho da população carcera¡ria. E precisamos ter uma atitude radical em relação a  des guetização. Prefiro dizer des gueto, em vez de integração, porque temos que tirar as pessoas dos guetos, ou das cidades do interior - porque os guetos não apenas separam os negros da capital social e cultural da classe média americana, mas também fazem residentes alvos fa¡ceis para a pola­cia que vaª os guetos como o inimigo. A des guetização édiferente da integração, embora eu seja a favor da integração, mas isso significa que os negros precisam sair dessas áreas concentradas de pobreza e se mudar para a comunidade em geral.

E, finalmente, épreciso haver um acerto de contas com o legado da nação de escravida£o e supremacia branca, que se baseia na escravida£o. Passei minha vida inteira estudando escravida£o.

Nãoacho que a escravida£o tenha sido estritamente abolida em 1865. O que foi abolido em 1865 foi a escravida£o pessoal individual de uma pessoa por outra, mas o que persistiu foi a cultura da escravida£o, e o ponto central dessa cultura era a sensação de que os brancos a população achava que era seu dever controlar e suprimir a liberdade dos negros. Eles fizeram isso de várias maneiras, atravanãs da multida£o de linchadores, mas também pelo uso de encarceramento, durante o sistema neo-escravista de Jim Crow.

Durante Jim Crow, o que persistiu foi a atitude de ver os negros como forasteiros, como pessoas a serem punidas, a serem controladas, a ter privilanãgios ba¡sicos de cidadania ou propriedade de terras e a serem presos imprudentemente. Nesse sentido, a escravida£o não foi realmente abolida nos Estados Unidos atéa década de 1960, quando o sistema Jim Crow foi finalmente desmontado fundamentalmente. Então, éclaro, precisamos de muita educação em nossas escolas sobre isso e quais foram as consequaªncias para os negros e também para os brancos. a‰ importante que as pessoas aprendam isso.

Esta entrevista foi editada e condensada para maior clareza e duração.

 

.
.

Leia mais a seguir