O modelo de família nuclear esconde outras relações, outros modos de constituir cuidados e convivência cotidiana. O fato de não haver um casal heterossexual como base, não impede que sejam famílias.
Imagem da Internet
Trago aqui uma pequena contribuição para o debate: o que é uma família?
Para as ciências humanas, pensamos a família como um arranjo de coabitação em que há relações de afetos e cuidado de crianças e, muitas vezes, dos idosos e doentes. Na demografia, família compreende quem mora em cada unidade domiciliar. Na antropologia, na sociologia e na historiografia, família é um arranjo de convivência que pode se estender para mais de uma moradia, pois há redes de cuidado e sustento que se espraiam para além de uma casa.
Quando se discute família no Brasil, imagina-se que no passado colonial predominava a família patriarcal e, mais recentemente, a família nuclear moderna, mais afeita ao meio urbano. A família extensa, advinda do modelo colonial, era composta de um proprietário de terras e sua esposa, filhos, noras e genros, netos, outros parentes e afins, além de agregados. Tratava-se de uma família marcada por uma brutal desigualdade de poder entre as gerações e entre homens e mulheres, além da violência estruturante das pessoas escravizadas.
Esse modelo histórico, no entanto, foi revisto pelas pesquisas. Existiu a grande família patriarcal nas elites agrárias – mas era apenas entre as reduzidas elites que o modelo se mantinha. Houve também toda uma população livre e urbana que se formou ao longo dos séculos, assim como os agregados e os escravizados com outros tipos de família. Mesmo pessoas escravizadas buscavam fazer família, quando isso era possível. Pessoas de poucas posses, ou do meio urbano, muitas vezes não se casavam legalmente, mas constituíam núcleos familiares mais ou menos estáveis.
No mundo urbano contemporâneo, quando se faz referência à família, imagina-se um tipo ideal de grupo de parentesco: supõe-se que ele seja composto de um casal heterossexual e seus filhos, formado por uma união supostamente monogâmica. Trata-se de um modelo denominado “família nuclear” por oposição à família extensa colonial.
Porém, tal ideal de família nuclear monogâmica baseada em relações de afetividade é tomado como universal, o que é um equívoco, pois não corresponde à realidade empírica. No Brasil contemporâneo, são diversos os contextos sociais e de parentesco, os arranjos de moradia, as relações de casais – e não apenas heterossexuais – bem como entre pessoas de diferentes gerações, que se escondem sob o termo “família”. Família não é uma só. São muitas.
Dados dos censos e pesquisas demográficas recentes demonstram a crescente quantidade de lares brasileiros com chefia feminina, por exemplo. No censo de 2010, 37,3% dos lares eram chefiados por mulheres, sendo a maioria deles, 87,4%, sem cônjuge. Quase 13% são moradias chefiadas por mulheres, com seus companheiros, mas sendo elas consideradas as “chefes”. Não são famílias “desestruturadas”, são muito mais comuns do que se imagina, e não são um problema em si – o problema é a violência, que aparece com mais frequência nas famílias com presença do pai (tema que voltarei a tratar aqui nas próximas colunas).
Há e sempre houve outros arranjos, como mostram as pesquisas históricas e socioantropológicas: crianças que são criadas por outros parentes, como tias, madrinhas, avós; amigos e colegas que coabitam; e mesmo a família nuclear passando por diversas fases ao longo do curso da vida – que pode incluir a coabitação com outros parentes, ou um casal que passa por diversas fases, inclusive a saída dos filhos do domicílio e a morte de um cônjuge. Cabe lembrar que, nas camadas de renda mais alta, quem realmente cuida e cria das crianças podem ser as babás ou empregadas domésticas, muitas vezes esquecidas no modelo ideal de família e invisibilizadas pelo racismo estrutural.
Assim, o modelo de família nuclear esconde outras relações, outros modos de constituir cuidados e convivência cotidiana. O fato de não haver um casal heterossexual como base, não impede que sejam famílias. As pesquisas demonstram que a estrutura familiar é variada e não uma só.
Heloisa Buarque de Almeida
Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com