Opinião

250 mil mortes e argumentos de poder
Argumentos emitidos com base no poder de quem os emite, ou argumentos de autoridade, são facilmente aceitos por aqueles que não foram treinados para, ao analisa¡-los, poder refuta¡-los.
Por Hernan Chaimovich - 02/03/2021

 
Foto: Reuters via BBC

A grande maioria dos brasileiros não tinha nascido quando Hiroshima e Nagasaki foram destrua­das por duas bombas atômicas. Acredito, poranãm, que esse episãodio bem conhecido. Calcula-se que, nesses dois ataques nucleares, o número de vitimas foi da ordem de 250 mil. Ana¡lises estratanãgicas, anãticas e políticas ainda estudam essa cata¡strofe, pois o uso militar da energia nuclear e o dano que causou são temas recorrentes devido, em parte, a  resultante magnitude da perda de vidas. Atéhoje não existe clareza se o elemento decisivo, que levou a  rendição do Japa£o em 1945, foi de fato a bomba atômica ou a invasão da Manchaºria pela Unia£o Sovianãtica.

Pois bem. Neste ano que passou morreu de covid-19 um número de brasileiros que equivale aos que perderam a vida por causa do bombardeio nuclear. A sensação que me invade éa de que, apesar de a magnitude dos eventos ser essencialmente equivalente, boa parte dos brasileiros ainda não tem dimensão da traganãdia.

Os eventos somente são compara¡veis pelo número de vitimas, pois va­rus e bombas são elementos muito diferentes. Mas se no pandaªmico Brasil a magnitude da traganãdia causa espanãcie, o espanto decorre da presunção de que boa parte das mortes poderia ter sido evitada por elementos que, lembrados com frequência, não parecem estar socialmente interiorizados, e, portanto, devem ser repetidos.

Um dos elementos que poderiam ter sido usados para mitigar a pandemia éo SUS, e mais precisamente as Unidades Ba¡sicas de Saúde (UBS). As UBS, em parceria com os munica­pios, permitiram que metade dos domica­lios brasileiros recebessem, pelo menos, uma visita mensal de um agente de saúde. Aanãpoca, 2013, eram 44 mil unidades. Para esclarecer a importa¢ncia deste fato, mundialmente inanãdito para umpaís continental, éadequado explicar a natureza de uma UBS.

Tomo como exemplo uma UBS da zona leste de Sa£o Paulo, que tem a responsabilidade de atender uma regia£o com 15 mil habitantes. A estrutura da UBS conta com cinco médicos, cinco enfermeiros, 10 auxiliares de enfermagem e 25 agentes comunita¡rios. Manãdicos, enfermeiros e auxiliares atendem cidada£os na unidade, a menos que os casos necessitem de visita domiciliar. A responsabilidade dos agentes comunita¡rios édistinta. Eles se deslocam atéos domica­lios, num roda­zio que garante que cada familia receba, pelo menos, uma visita mensal. Os relatórios das visitas dos pacientes a  UBS, bem como aqueles dos agentes comunita¡rios, permitem que este universo seja detalhadamente conhecido. Esta relação, pessoal e de confiana§a, entre instituições de saúde do Estado e as fama­lias residentes na área, permite contar com completas informações sobre o estado de saúde desses cidada£os. Na pandemia presente, isso permitiria identificar portadores, contatos, bem como os indicadores referentes a  doena§a.

As UBS começam a informar a s fama­lias sobre a covid-19 já no começo de mara§o de 2020. Diversos membros das UBS reconhecem que a informação era reduzida e pouco regular, mas que se fez um esfora§o importante de divulgação. Apesar da familiaridade existente entre os trabalhadores das UBS e os moradores da regia£o e das mortes por covid-19 já ocorridas, ainda hoje hávizinhos que insistem em entrar na UBS sem ma¡scaras, que participam de festas clandestinas e continuam a se infectar. Como explicar este fato?

Uma explicação possí­vel passa pela análise das fontes de informação da população atendida pela UBS, pois épossí­vel que a fonte prima¡ria de informação seja a televisão. Segundo dados de 2018, das 69 milhões de casas consultadas no Brasil, 97% tem uma TV ou mais. Apesar de o a­ndice de cidada£os conectados a  internet crescer a cada ano, ainda estãodistante de atingir o número de brasileiros com TV em casa. Portanto, pode-se assumir que, em 2021, a TV ainda émais influente do que a internet.

E aqui, desafortunadamente, énecessa¡rio se repetir que o lider ma¡ximo do Paa­s, seu presidente da República, aparece todos os dias na televisão contradizendo com veemaªncia as recomendações que essa UBS passa para as 15 mil pessoas que bem conhecem. a‰ evidente a opção do morador frente a um conflito de versaµes que opaµe o médico (ou o enfermeiro, o auxiliar ou o agente comunita¡rio) ao presidente da República Federativa do Brasil. Quando ouve do jovem agente comunita¡rio que a covid-19 éperigosa e, a  noite, escuta do presidente que essa doença não passa de uma “gripezinha”, qual versão vai prevalecer nessa fama­lia? O vizinho que, vindo do médico da UBS que o examinou por uma dor abdominal, e que nos 15 minutos da consulta aproveitou para lembra¡-lo de que não existem remanãdios preventivos que curem o Sars-Cov-2, escuta a  noite que a cloroquina mata o va­rus. a‰ realmente possí­vel que esse vizinho ou não volte a  UBS, pois passa a não acreditar no seu médico, ou exija tratamento que acredita ser preventivo. Todo o esfora§o do enfermeiro de convencer os cidada£os dessa UBS de que devem usar ma¡scara para tomar o a³nibus que de manha£ os conduzem ao trabalho, vem por águaabaixo se o presidente da República insinua que as máscaras podem causar doena§as. Que dizer, então, de um deputado federal que aparece na TV insultando a policial federal que insiste em não permitir o ingresso em um recinto médico sem ma¡scara?

Argumentos emitidos com base no poder de quem os emite, ou argumentos de autoridade, são facilmente aceitos por aqueles que não foram treinados para, ao analisa¡-los, poder refuta¡-los. No Brasil, infelizmente, a qualidade do ensino garante que esse treinamento não prevalea§a. Assim a luta pela informação também pode ser percebida como uma demonstração de que o poder do argumento se da¡, somente, pelo poder de quem o emite.

A ciência claramente demonstrou que podemos enfrentar, ainda que a um custo muito alto, esta pandemia. Enfrentar as futuras e prova¡veis pandemias vai requerer ainda mais ciência Mas, sem uma educação que permita aos cidada£os julgar se argumentos efetivamente se sustentam em evidaªncias, ou apenas no poder de quem os emite, atémesmo a ciência pode perder força.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Hernan Chaimovich
Professor Emanãrito do Instituto de Quí­mica da USP e ex-presidente do CNPq

 

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