Opinião

Por uma universidade antirracista
A educação vai além da possibilidade de se obter um emprego ou do aumento de renda. a‰ importante para o desenvolvimento econa´mico, social e cultural de umpaís
Por Susana Henriques da Costa , Amarilis Costa e Marina Gonçalves Garrote - 16/03/2021


(Imagem: Arte Migalhas)

Em 9 de fevereiro último, houve novo ataque racista em evento on-line realizado pela Universidade de Sa£o Paulo, durante a conferaªncia internacional de segurança pública (parte da 1ª edição do curso de Segurança Multidimensional das Fronteiras, da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial). Enquanto Evanilson Corraªa de Souza, tenente-coronel da Pola­cia Militar, preparava-se para ministrar sua aula sobre racismo estrutural e participação de policiais militares no sistema de preconceito, um dos participantes do curso usou termos racistas para se dirigir a Evanilson e invadiu seus slides da apresentação com rabiscos e a palavra “macaco”. Posteriormente, outro participante proferiu injaºrias racistas no chat, mas foi retirado da sala pela equipe responsável pelo curso. Depois de retomar o controle dos slides, Evanilson realizou sua apresentação.

Foi realizado um boletim de ocorraªncia dos fatos, assim como instaurado um inquanãrito policial para apurar a autoria do crime na delegacia especializada em crimes de intolera¢ncia. A Reitoria da USP se manifestou repudiando o ocorrido, afirmando: “Infelizmente, o combate ao racismo de toda sorte incita humores de uma minoria retra³grada e beligerante que tira proveito das fragilidades da internet para mostrar o seu lado mais sombrio”.

Esse não éo primeiro nem sera¡, prova¡vel e infelizmente, o último ataque racista perpetrado em eventos acadaªmicos on-line da Universidade de Sa£o Paulo. As próprias autoras do texto tiveram evento invadido em novembro do ano passado, em que se discutia o acesso a  Justia§a e o racismo estrutural.

Com o isolamento social, os eventos da Universidade de Sa£o Paulo passaram a ser realizados de maneira on-line. Enquanto há vantagem de possibilitar participações nacionais e internacionais de convidados e expositores, também hámaior vulnerabilidade a manifestações de intolera¢ncia dirigidas contra grupos minorizados na sociedade. Existem esforços coordenados por grupos de a³dio e ideologias discriminata³rias (racistas, sexistas, LGBTfa³bicos) para invasão de eventos acadaªmicos, valendo-se do anonimato das redes.

Se manifestações de intolera¢ncia e, principalmente, racismo fazem parte da história e criação da democracia brasileira, existem elementos sociopola­ticos recentes que devem ser levados em consideração na tentativa de explicar tais manifestações contemporaneamente.

Em primeiro lugar, hácrescente ocupação dos Espaços de poder, na Universidade e fora dela, de pessoas negras, resultante de uma luta hista³rica do movimento negro. As cotas raciais, ainda que adotadas pela USP tardiamente, apenas para Fuvest de 2018, e sem comitaª para investigação de fraudes, possibilitam o ingresso de maior número de alunos negros em um espaço tradicionalmente ocupado pela elite social e econa´mica (leia-se, branca) de Sa£o Paulo. Outro exemplo éa determinação do TSE de cota do fundo eleitoral e do tempo de propaganda eleitoral gratuita para candidatos negros.

Esse movimento de avanço na consolidação de direitos e redução de desigualdades hista³ricas éparalelo ao crescente autoritarismo e retrocesso em matéria de direitos. O autoritarismo atua recorrentemente para a negação da ciaªncia, redução dos Espaços de discussão cienta­fica, ataque a  liberdade acadaªmica e a  autonomia das universidades. Outro fronte do movimento autorita¡rio e voltado a desmobilizar instituições e estruturas de governo ligadas aos direitos sociais, desvirtuando seu propa³sito, como éo caso da Fundação Palmares, conquista do movimento negro, que tem em sua direção Sanãrgio Camargo, que chamou o movimento social de “esca³ria maldita” e Zumbi de “filho da puta que escravizava pretos”.

Kabengele Munanga explica a manutenção do racismo atravanãs da frase de Elie Wiesel, “o carrasco sempre mata duas vezes, a segunda épelo silaªncio”, prática caracterí­stica do racismo brasileiro que sempre mata duas vezes: fisicamente, como mostram as estata­sticas sobre a genoca­dio da juventude negra em nossas periferias; e mata na inibição da manifestação da consciência de todos, brancos e negros, sobre a existaªncia do racismo em nossa sociedade.

Considerando o racismo estrutural caractera­stico da sociedade brasileira, somado ao movimento de retrocesso, émais do que nunca fundamental a construção de universidades antirracistas.

O ambiente acadêmico éum local para aprimoramento e desenvolvimento humano, por meio do conhecimento, da pesquisa e da ciência A educação tem ainda a caracterí­stica de preparar profissionais para atuar nas mais diversas áreas, lidando com a pluralidade de ideias e diversidade de pessoas.

As diretrizes constitucionais são claras ao determinar como princa­pio o repaºdio ao racismo, conforme o Art. 4º, inciso VIII. Para discussão do antirracismo na esfera da educação, a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394/96) prevaª que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivaªncia humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. O artigo 26-A da referida lei ressalta a importa¢ncia do estudo da história e culturas afro-brasileira e inda­gena. A educação superior, por seu turno, tem por finalidade estimular o desenvolvimento do pensamento reflexivo e a criação cultural.

a‰ dever das universidades abordar de forma anala­tica os contextos sociais, hista³ricos e econa´micos do racismo. O reconhecimento do racismo institucional éfundamental para a construção de um pensamento crítico acerca da falsa “democracia racial” e o autoengano da branquitude existentes no Brasil, e para a promoção de uma educação plural, inclusiva e diversa. Ainda, com o crescimento considera¡vel de estudantes negros nos últimos anos, énecessa¡ria uma reorganização interna nas instituições de ensino, que não foram criadas pensando na inclusão da população negra.

Por meio de nota técnica do ano de 2020, ante o cena¡rio de constantes ataques virtuais racistas, a Comissão de Graduação, Pa³s-Graduação e Pesquisa da OAB de Sa£o Paulo, por meio de suas presidentes Amara­lis Costa, Raphaella Reis e Lazara Carvalho, propa´s, além de ações afirmativas alinhadas ao movimento antirracista, para melhor garantia de um ingresso e permanaªncia digna de estudantes negros em Espaços universita¡rios, recomendações expressas para combate ao racismo em ambiente universita¡rio. Sa£o elas:

1. Criação de canal oficial de denaºncia para apuração de prática s discriminata³rias e racistas nas universidades;
2. Criação de programa de acolhida e acompanhamento psicola³gico para alunos negros;
3. Criação de uma grade curricular que amplie o direito antidiscriminata³rio e abordagem de tema¡ticas anãtnico-raciais para além das datas oficiais (Dia do andio, Dia da Consciaªncia Negra, Dia da Abolição da Escravatura), bem como o incentivo a palestras e debates voltados ao processo de conhecimento da racialização, branquitude, privilanãgios e identificação racial;
4. Criação de setores voltados diretamente ao compliance antidiscriminata³rio, que sera£o responsa¡veis pela fiscalização e garantia de políticas e posicionamentos internos efetivos para a prevenção e combate de prática s discriminata³rias;
5. Formação do corpo docente para o combate de posturas discriminata³rias e contribuição permanente para uma sociedade mais justa e igualita¡ria.

A educação vai além da possibilidade de se obter um emprego ou do aumento de renda. a‰ importante para o desenvolvimento econa´mico, social e cultural de umpaís. Este desenvolvimento são éalcana§ado por meio da formação que ultrapassa os campos teóricos, despertando o pensamento crítico e questionador capaz de romper com o status quo e com os pra³prios privilanãgios, em prol de uma sociedade mais justa e igualita¡ria.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Susana Henriques da Costa
Professora da Faculdade de Direito (FD) da USP e promotora de Justia§a do MPSP

Amarilis Costa
Advogada e professora de Direito e GestãoPaºblica

Marina Gona§alves Garrote
mestranda na FD/USP

 

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