Da comunicação de riscos a coprodução de conhecimento: reflexões e apostas em tempos de crises
a‰ com esta perspectiva, por exemplo, que novos editais de pesquisa comea§am a ganhar impulsão, focados na coprodução de conhecimento, em dia¡logos tea³rico-metodola³gicos com pesquisa-aa§a£o, transdisciplinaridade, ciência cidada£, entre outras
Na semana em que o mundo ultrapassou mais de três milhões de mortes em decorraªncia da crise de covid-19, aguardamos, entre apreensivos e ansiosos, as possibilidades de reformulações de políticas ambientais com a realização da Caºpula do Clima, organizada pelo presidente estadunidense Joe Biden, na tentativa de conter outra grave crise global: a climática. No Brasil, as tristes marcas alcana§adas elevam nossas preocupações e ansiedades: já registramos mais de 375 mil mortes em decorraªncia do Sars-CoV-2, e devemos ultrapassar os 14 milhões de casos osnúmeros que evidenciam o fracasso dopaís no combate a covid-19. No que tange a crise climática, o cena¡rio não émenos grave. Ana¡lises de pesquisadores brasileiros sobre o Plano Amaza´nia 2021/2022, apresentado publicamente hápoucos dias e que propaµe reduzir o desmatamento na Amaza´nia a média hista³rica do período 2016-2020, sinalizam que a principal fonte de emissaµes de gases de efeito estufa no Paas deve persistir de forma preocupante. Essa observação éagravada ao considerarmos o cena¡rio nacional perturbador diante da crise ambiental, com significativos retrocessos das políticas públicas de proteção ao ambiente e aceleração da perda da vegetação nativa em vários biomas com a expansão de cultivos e pastagens.
Essas breves informações introduzem os desafios desse tempo social que vivemos, marcado por riscos globais, como os associados a smudanças do clima e a pandemia de covid-19, com graves repercussaµes locais, e que explicitam a complexidade de resposta e capacidade de controle, e a desestabilização das certezas. Como argumentou o socia³logo alema£o Ulrick Beck, em suas diversas obras focadas na teoria social do risco, a emergaªncia desses riscos (ou incertezas fabricadas), gerados pelo pra³prio processo de industrialização, desenvolvimento, efeitos colaterais do projeto de modernidade e do avanço tecnola³gico, produz situações inanãditas. Quando materializadas, estas situações desorganizam de forma multidimensional e bastante severa as rotinas das nossas vidas, e mobilizam diversas questões, inclusive de sobrevivaªncia, as quais não estãoa cargo unicamente da ciaªncia, mas perpassam o campo polatico, com disputas entre diferentes atores, negociações, controvanãrsias, e demandam a reorientação de valores, de estratanãgias e uma reorganização do poder e das responsabilidades. Os riscos manufaturados estãona base das crises sistemicas atuais (como a emergaªncia climática) e agudas (como a pandemia de covid-19) e desvelam, com força, sua capacidade de agravar importantes contradições das nossas sociedades, como acessos desiguais a bens e servia§os e garantia de direitos humanos, por exemplo.
Essas crises são resultados de entrelaa§amentos de fatores craticos associados ao modelo de exploração predata³ria dos recursos naturais e ao modelo neoliberalista vigente, que valoriza o crescimento econa´mico ininterrupto a qualquer custo, acentua a desigualdade e acelera o enfraquecimento de servia§os paºblicos de assistaªncia. Seus impactos, entrelaa§ados a efeitos de outras crises que marcam o tempo social que vivemos oscomo a crise das instituições, de confianção e de responsabilidade –, somados a uma cultura do individualismo e da destruição de redes de solidariedade e empatia, agravam o processo de vulnerabilização de grupos sociais em posições desiguais na sociedade (sobre essa discussão ver, por exemplo, Nunes, 2020; Settele et al., 2020; Ventura et al., 2020).
Contudo, háuma aposta, ainda que fragilizada nesse momento de rápida escalada dos efeitos dessas crises, que ao exporem de forma catega³rica as disputas existentes sobre diferentes concepções de sociedade, modos de vida e modelos de desenvolvimento, e ao desvelarem as conexões fundamentais entre seres humanos e não humanos, estas crises podem catalisar transformações nas relações sociais e impulsionarmudanças sociopolíticas e culturais estruturais. Taismudanças perpassariam também as interações entre ciência e sociedade e os processos de comunicação desses riscos e de coprodução de conhecimento. Estas últimas, nos parece, constituem a aposta com mais chances de se concretizar.
Riscos, percepções e comunicação
Nas últimas décadas, uma crescente e robusta literatura evidencia a releva¢ncia de estudos com enfoque sobre como os indivíduos elaboram suas respostas a sDimensões sociais (implacitas ou não) nas suas situações de vida real, como definem os riscos, como se sentem atingidos por eles e como imaginam enfrenta¡-los. Em comum, essas análises mostram que na seleção dos riscos que consideramos mais relevantes e priorita¡rios, dentro de uma lista de riscos aos quais estamos expostos cotidianamente, nem sempre a evidência cientafica tem o papel esclarecedor ou éo elemento mais relevante nas nossas decisaµes. Isso porque essas escolhas são amplamente moldadas por fatores sociais e culturais. Neste processo, para além dos valores e visaµes de mundo, as relações institucionais, clima social, experiências pessoais, informações, conhecimento, confiana§a, incertezas e controvanãrsias são relevantes (Di Giulio et al., 2015).
No caso da crise de covid-19, por exemplo, a forma pela qual os indivíduos compreendem os riscos associados a uma doença nova élargamente mediada pelo conhecimento disponavel, pelas formas com que esses conhecimentos são acessados, apreendidos e interpretados, e pela circulação de informações que passam por diversos filtros de amplificação ou atenuação social das ameaa§as e preocupações. Entre esses filtros estão, por exemplo, posicionamentos dos cientistas, fluxos de informação e como estes são impactados pelas madias sociais e fake news, discursos de agaªncias governamentais, narrativas e atitudes de atores polaticos e econa´micos. Pesam também nesse processo as próprias fragilidades na educação cientafica dos indivaduos, que pode dificultar a compreensão sobre aspectos importantes sobre a doena§a, suas causas e efeitos; e a combinação perigosa entre o atual fena´meno polatico do populismo e o negacionismo da ciência
Nãoéa toa que em situações de crise e emergaªncia, a comunicação de riscos éreconhecida internacionalmente como um dos principais pilares de resposta. a‰ uma condição fundamental para buscar maior adesão das populações a s recomendações das autoridades sanita¡rias, e maior coesão entre os diferentes atores paºblicos e privados nas estratanãgias de enfrentamento. Quando associada a prática de uma comunicação participativa, transparente e aberta, ancorada no pressuposto de que as pessoas afetadas pelas decisaµes devem não apenas receber informações corretas, contextualizadas, estarem cientes das incertezas que existem, mas também se sentirem parte integrante do processo decisãorio, a comunicação de risco facilita a integração dos indivíduos na governana§a do risco e o estabelecimento de uma relação de confianção entre paºblicos, cientistas e autoridades.
No Brasil, diante da resposta caa³tica a pandemia, reconhecemos que a falta de coordenação de ações e as inadequadas estratanãgias de comunicação de risco tem confundido a população, levam a adoção de medidas inapropriadas, amplificam o medo de alguns, enquanto atenuam de forma perversa as preocupações de muitos. Quando hádescranãdito acerca dos conhecimentos e informações que circulam sobre riscos, em um contexto de incertezas marcado pela desconfiana§a, com imprecisaµes sobre atribuições de responsabilidades pelas decisaµes tomadas, as respostas que emergem podem ser desastrosas, sobretudo numa cultura de individualismo acirrado (Di Giulio et al., 2020).
Se a comunicação de riscos deve estar de forma mais ativa no nosso radar enquanto objeto de análise e atuação, assim deve estar também a necessidade de esforços contanuos para melhorar a comunicação pública da ciência Importantes iniciativas tem buscado avana§ar na divulgação reflexiva sobre o conhecimento cientafico produzido, e sobre as condições e implicações sociais e culturais da Ciência e Tecnologia, na perspectiva de promover dia¡logos mais aprofundados com a sociedade. Uma delas éa rede Coaliza£o Ciência e Sociedade, um movimento plural e interdisciplinar, criado no inicio de 2019, e que reaºne cientistas brasileiros com a missão de divulgar informações cientaficas para subsidiar dia¡logos sobre temas socioambientais e contribuir com a elaboração e avaliação de políticas públicas. Outra ação de destaque éo USP Talks, que nasceu em 2016 do desejo de aproximar universidade e sociedade, com uma sanãrie de palestras de curta duração ministradas por especialistas que abordam, numa linguagem livre de formalidades acadaªmicas, temas atuais e de interesse da sociedade.
Se as crises, de um lado, desvelam as limitações das instituições sociais e políticas e da própria ciência em dar respostas, de outro, abrem também uma possível janela de oportunidade para nós, pesquisadores e docentes de universidades e instituições de pesquisa: a busca por novas formas de engajamento entre diferentes atores para viabilizar soluções estruturais e de longo prazo que fomentem a igualdade, a coesão, a justia§a social emudanças transformativas. a‰ com esta perspectiva, por exemplo, que novos editais de pesquisa comea§am a ganhar impulsão, focados na coprodução de conhecimento, em dia¡logos tea³rico-metodola³gicos com pesquisa-ação, transdisciplinaridade, ciência cidada£, entre outras abordagens.
Em comum, estas iniciativas sinalizam o desafio de promover interações mais próximas e efetivas entre acadaªmicos e não acadaªmicos a fim de alcana§ar processos de aprendizado maºtuo, conferindo legitimidade a outras narrativas, representações e saberes para além dos cientaficos, para o avanço do conhecimento. Nãoháreceitas prontas ou manuais a serem seguidos ao péda letra; contudo, análises de processos de coprodução evidenciam que os esforços de criar e aprimorar interações entre ciência e sociedade tem potencial significativo para promovermudanças transformativas para um futuro mais adaptado e sustenta¡vel.
*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com
Gabriela Di Giulio
Professora Associada do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Paºblica da Universidade de Sa£o Paulo (USP)