Opinião

Da criação a  destruição de um sistema de C&T&I, um conto infausto
O Brasil teve, durante uns poucos anos, um sistema de investimento em pesquisa e inovaa§a£o que poderia ter incorporado o setor industrial ao patamar alcana§ado pelo setor de produção de alimentos, açúcar e a¡lcool.
Por Hernan Chaimovich - 01/05/2021


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Os contos infantis escondem traganãdias que nem sempre alegram a vida das criana§as. Um exemplo ta­pico éo conto da Chapeuzinho Vermelho onde aparecem personagens bons, ingaªnuos e pouco espertos, como a Chapeuzinho Vermelho, mentirosos assassinos, o lobo mau, vitimas inocentes, a vovozinha, e hera³is violentos, o caçador, que depois de matar o lobo mau resgata a Chapeuzinho Vermelho dos interiores do lobo desmembrado. Esta história tem correlatos, com traganãdias e personagens compara¡veis e provavelmente origens comuns que se escondem em fena´menos psicola³gicos fundamentais em todos os continentes [Jamshid J. Tehrani, “The Phylogeny of Little Red Riding Hood”, PLoS ONE 8(11): e78871. doi:10.1371/journal.pone.0078871]. a‰ por isso que descrevo uma traganãdia na forma de um conto.

No universo infinito (ou não) existe, num dos milhares sistemas planetarios descobertos, um onde o sol central tem, entre outros, um planeta chamado Terra. Neste planeta, hálgum tempo, existe umpaís que descobriu que aplicando ciaªncia, tecnologia e investimento se transformou de um consumidor de soja num dos maiores produtores desse gra£o da Terra. Pouco antes tinha descoberto que a¡lcool podia ser um combusta­vel de preferaªncia para impulsar os carros, de novo apoiado, em boa parte, por ciência feita nessepaís. Nessepaís já na década dos 80 do século XX existiam vários exemplos de iniciativas social e economicamente bem-sucedidas usando ciência nacional e ciência traduzida por cientistas locais para o benefa­cio de todos. Inclusive, na década seguinte, por iniciativa de cientistas, criou-se um sistema universal de saúde (o SUS) que foi a inveja de muitospaíses mais desenvolvidos.

Os cientistas que permitiram que estepaís tropical ocupasse um lugar de destaque no cena¡rio mundial da produção de alimentos, dos carros movidos a a¡lcool e da saúde pública formavam parte de um pequeno grupo de pessoas, a maioria professores de universidades ou institutos paºblicos. Com o tempo foram acompanhados por alguns que trabalhavam em centros privados de pesquisa em vegetais e animais.

Opaís também contava com cientistas em outras áreas que nada tinham a ver com plantas ou animais. Eram também poucos, mas criavam conhecimento universal em muitas áreas do saber. Existiam também humanistas e artistas, acadaªmicos e outros vinculados a instituições de reflexa£o públicas e privadas.

Todo este universo de gente criativa era apoiado por algumas instituições públicas que, com algumas raras exceções, pouca importa¢ncia recebia dos governantes dopaís.

Eis que, quase por acaso, e sem os governantes perceberem, foram surgindo iniciativas e instituições que começam a mudar o panorama. Provavelmente aconteceu, como contam as boas bruxas, porque instituições de apoio a  pesquisa e inovação foram surgindo aos poucos e separadamente. Mas, de alguma forma não planejada, e certamente misteriosa, foi surgindo um sistema descentralizado de apoio a  pesquisa e a  inovação. O sistema era complexo, e foi, enquanto existiu, um exemplo para muitospaíses da Terra. Os elementos desse sistema eram variados e isso permitiria formular projetos integrados para beneficiar toda a sociedade brasileira, que alia¡s nunca foram sequer formulados. Vale a pena aqui, como em qualquer conto, descrever os componentes do sistema. Mas, a  diferença dos contos infantis, não se encontram aqui as descrições dos pra­ncipes, princesas ou dos lobos maus.

O conjunto de mecanismos e sistemas era constitua­do por diversas siglas que precisam ser explicadas, atépara as criana§as entenderem: CNPq, Capes, Finep, FAPs, FS, dentre outros. Essa sopa de letrinhas permitiu que essepaís tropical, nesse planeta insignificante chamado Terra, ficasse, por alguns poucos anos, a  beira de se tornar um gigante pela sua própria natureza. Para contar direito tem que explicar, e assim, começo.

Era uma vez, hálgumas décadas, alguém neste estranhopaís que se deu conta de que, para entender o que estava acontecendo com o poder demonstrado pelas bombas atômicas, se precisava de cientistas que fizessem ciência Somente assim poder-se-ia colaborar com conhecimento e, sobretudo, entender o que estava acontecendo alhures no mundo da ciência atômica. E mais, este ser criativo compreendeu que mulheres e homens de ciência não eram nem eternos nem sacerdotes. Assim, precisavam de sala¡rios que não os tornassem misera¡veis, financiamento para as pesquisas e um sistema de bolsas para que jovens pudessem receber esta­mulo para se tornar cientistas e ocupar o lugar dos que se retiravam por não poderem mais contribuir. E assim nasceu o Conselho Nacional de Pesquisa, o CNPq.

O CNPq era a casa dos cientistas, lugar ma¡gico onde se analisavam propostas de pesquisa, se investiam recursos nos projetos de qualidade, se davam bolsas a pesquisadores de reconhecida competaªncia e se apoiavam os jovens que crescentemente desejavam conhecer o desconhecido. Porque repetir o que se sabe ou predizer claramente o resultado não épesquisa nem tem graça. Todo ano, o CNPq recebia dos impostos pagos pelo povo, uma certa quantidade de recursos que permitia a formação de um número crescente de jovens e o apoio a projetos de muitos cientistas repartidos pelopaís todo. Nos últimos anos, uma perversa concepção, que não entende o papel do CNPq, tem sistematicamente diminua­do a fonte privativa de receita, ora§amento da instituição. Em particular, no ano em que eu conto este conto, um lobo muito perverso assinala com um corte de ora§amento que pode prenunciar a morte da instituição.

A Capes, Coordenação de Aperfeia§oamento de Pessoal de Na­vel Superior, data da metade do século XX. Um educador visiona¡rio, com sãolida formação no exterior, acreditou que para ensinar precisava aprender. E que os docentes das universidades deviam, portanto, se aperfeia§oar a fim de formar profissionais e cientistas que soubessem aprender continuamente o que se estava criando no Brasil e no mundo. ACapes, desde 1981, cabia elaborar, avaliar, acompanhar e coordenar as atividades relativas ao ensino superior, em especial os programas de Mestrado e Doutorado. A Capes era uma organização muito peculiar, pois, ao mesmo tempo que assegurava a qualidade dos programas que formavam mestres e doutores em todas as artes da criação, fornecia recursos para os jovens que obtinham essa formação. Mas eis que no meio do caminho (1990) aparece um lobo mau, ou um ogro demolidor que, com uma medida provisãoria (faa§o porque quero), extingue a Capes. Por uma pressão dos cidada£os, a Capes foi recriada no mesmo ano.

Antes de continuar a história vale aqui destacar que, como em qualquer conto infantil, os lobos maus, ou ogros demolidores, sempre podem aparecer no meio da história e que quando detem poder ou força são capazes, porque fazem o que querem, de destruir sem aviso instituições que empoderam a sociedade. Tambanãm aprendemos com este episãodio que se a sociedade não se organiza, ou apela para um forte lenhador, como no conto da Chapeuzinho Vermelho, as organizações como a Capes podem desaparecer para sempre.

Mas a Capes, com o passar do tempo, foi mudando e, ao invanãs de manter o seu papel preca­puo, que évelar pela qualidade da pós-graduação nopaís e atravanãs de bolsas de estudo permitir o crescimento dos programas, optou por comea§ar a financiar pesquisa, numa clara superposição de responsabilidades com o CNPq. a‰ na superposição e na competição de missaµes que pode comea§ar a destruição de um sistema. Mas não foi essa ação a responsável principal. Nos anos recentes a Capes, por conta de um novo lobo perverso, também vem perdendo ora§amento e diminuindo o seu investimento.

A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) éuma empresa pública brasileira de fomento a  ciaªncia, tecnologia e inovação em empresas, universidades, institutos tecnola³gicos e outras instituições públicas ou privadas. Criada em 1967, por outro visiona¡rio, desempenhou um papel central na consolidação de grandes infraestruturas ligadas a programas e a cursos de pós-graduação. A estrutura da Finep écomplexa, pois as suas caracteri­sticas incluem as de um banco de desenvolvimento, isto anã, investe com retorno; éuma agaªncia de fomento onde écobrado o impacto e o investimento érealizado sem que o agente que o recebe tenha que, além de prestar detalhadas contas, devolvaª-lo. O ora§amento de fomento vem caindo de forma quase exponencial no último quinquaªnio.

As Fundações de Amparo a  Pesquisa dos Estados (FAPs) começam a aparecer na década de 60 do século XX. A história da primeira, a Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp), éum conto onde aparecem muitos hera³is e, atéagora, poucos e incompetentes lobos, pois a Fapesp atéhoje desempenha um papel importante no Estado de Sa£o Paulo. Por ser financiado pelos contribuintes de cada Estado, o investimento das FAPs em pesquisa e inovação, bem como na formação de pessoal, se relaciona com as necessidades de cada Estado. Graças ao trabalho de outro hera³i, e aproveitando as novas Constituições Estaduais depois de 1968, essencialmente todos os Estados da República Federativa do Brasil contam com FAPs. a‰ bem verdade que, como em contos de criana§as, os ogros em muitos Estados da Federação fizeram com que ciclicamente as FAPs tivessem um papel de pouca importa¢ncia.

A criação de um instrumento federal de investimento associando pesquisa fundamental e aplicada com atividades econa´micas, os Fundos Setoriais (FS) foram recebidos como um conto de fadas madrinhas pelas comunidades, que pensavam que o bom gigante adormecido, Brasil, poderia desta vez acordar com a força necessa¡ria para fazer dopaís “um sonho intenso, um raio va­vido de amor e de esperana§a” atravanãs da incorporação de ciência e tecnologia a  produção. Permitindo quia§a¡ oportunidades iguais para todos e cada um dos seus cidada£os. As receitas dos FS podem provir de impostos a  exploração de recursos naturais, parcelas de imposto de certos setores econa´micos, bem como de outros impostos referidos ao uso ou aquisição de conhecimentos tecnola³gicos/transferaªncia de tecnologia do exterior.

A administração dos FS por Comitaªs Gestores (CG) permitia, por força de lei, que cada CG, composto de empresa¡rios e trabalhadores do setor, membros da comunidade cienta­fica relacionados a esse setor econa´mico e representantes de governo, definisse as diretrizes, ações e planos de investimentos dos Fundos. Enfim, um conto de fadas para alavancar a competitividade de cada um dos setores. Atéagora existe, ao menos no papel, atéum “fundo Verde-Amarelo que estimula a cooperação tecnologiica entre universidades, centros de pesquisa e setor produtivo, as ações e os programas que consolidem uma cultura empreendedora e de investimento de risco”. Nos livros de contos em inglês se diria, “too good to be true”. Os CG com o tempo foram perdendo poder, apareceram programas transversais, que retiravam recursos dos fundos, e a ideia inicial foi se esvaindo.

Os contos para criana§as costumam ser curtos, senão atéos adultos que os leem a  noite para os seus filhos se cansam. Assim, para não continuar me alongando vou caminhando para o final, são que neste conto a princesa não acorda, o sapatinho não cabe no péda Cinderela e ninguanãm podera¡ dizer hoje que foram felizes para sempre.

O Brasil teve, durante uns poucos anos, um sistema de investimento em pesquisa e inovação que poderia ter incorporado o setor industrial ao patamar alcana§ado pelo setor de produção de alimentos, açúcar e a¡lcool. Nestes últimos setores, vencedores, dominamos uma parte relevante do mercado mundial. Junto com o setor de gás e petra³leo, que também se beneficiou da ciência e tecnologia nacional, os demais setores produtivos poderiam ter alcana§ado competitividade e inovação conta­nua para dominar segmentos do mercado global. Poranãm, o sistema nacional de investimento em C&T&I foi aos poucos destrua­do.

Tivemos em algum momento instituições que cuidavam (em termos de investimento) das ciências naturais emnívelfundamental, das ciências sociais e humanidades (CNPq), da avaliação da qualidade da pós-graduação (Capes), de grandes infraestruturas e programas (Finep), das necessidades de pesquisa nos Estados (FAPs), das necessidades de pesquisa requeridas para inovação constante em setores da indústria e na saúde (FS). Tanto a articulação, a missão preca­pua dos atores, e, claro, o ora§amento parecem ter acabado.

Se por algum milagre, desses que aparecem com frequência nas histórias para criana§as, a economia destepaís melhorar muito depois da pandemia, éatépossí­vel (outro milagre necessa¡rio aqui) que os lobos que costumam governar decidam recuperar ora§amentos de um dia para o outro. Já recuperar o sistema serámuito mais difa­cil e pode requerer mais que um milagre, alguns muitos anos de esfora§o conta­nuo.

Nãodevo terminar este conto sem reconhecer que, apesar dos muitos lobos e da infinidade de ogros que tudo fizeram para diminuir a importa¢ncia da ciência e da tecnologia nestepaís, háde se reconhecer que a densidade de hera³is e visiona¡rios éimensa, pena que tenham menos peso pola­tico que os lobos e os ogros.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Hernan Chaimovich
Professor Emanãrito do Instituto de Quí­mica da USP e ex-presidente do CNPq

 

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