Opinião

Quando a Internet encontra a sala de aula: ensino de direitos humanos digitais
No Brasil, 74% da populaa§a£o éusua¡ria da Internet, de acordo com a pesquisa TIC Domica­lios, realizada pela Cetic.br.
Por Guilherme Forma KlafkeDeíse Camargo Maito - 28/05/2021


Doma­nio paºblico

A Internet criou um ambiente: o espaço virtual. Agimos, vivemos, convivemos, enfim, levamos nossas vidas cada vez mais entre online e o offline, a ponto de haver quem negue essa distinção. A geração nascida no ini­cio dos anos de 1990 foi a última a ter presenciado um mundo sem este espaço virtual.[1] A partir de agora, todas as gerações necessariamente estara£o em um mundo conectado. A revolução digital já aconteceu e foi intensificada pela pandemia da COVID-19. Trabalho remoto, em muitos setores, e a educação remota em todos os na­veis, tomaram o lugar das atividades presenciais, aumentando ainda mais nossas vidas no espaço virtual.

Nãopodemos cair, entretanto, na fala¡cia dos nativos digitais. Primeiro, porque ninguanãm nasce sabendo usar a Internet, e nada garante que criana§as e adolescentes, adultos ou idosos aprendera£o a usa¡-la corretamente sozinhos. A aprendizagem por tentativa e erro énatural, mas vem com o prea§o dos riscos e do desconhecimento sobre as potencialidades da tecnologia. Segundo, porque as pessoas não tem as mesmas experiências com a Internet. No Brasil, 74% da população éusua¡ria da Internet, de acordo com a pesquisa TIC Domica­lios, realizada pela Cetic.br.[2] A pesquisa aponta também a desigualdade deste acesso: 58% das pessoas acessam a Internet somente pelo celular, sendo que 85% destas pessoas são pertencentes a s classes D e E, reflexo da hista³rica desigualdade social em nossopaís. Sa£o pessoas que não tem, por exemplo, as mesmas oportunidades de acesso a servia§os que outras.

Existem, então, comportamentos e atitudes que devem ser ensinadas a s pessoas, de qualquer idade, no uso da Internet. No espaço virtual nem tudo épossí­vel. Uma pessoa ou um usua¡rio não pode ficar a  sua própria sorte. Como pontua Fernando Barrientos Del Monte, embora a Internet seja um serviço fornecido predominantemente por empresas privadas, seu uso épaºblico, tornando o espaço virtual um bem comum.[3] Assim sendo, este espaço precisa ter regras que protejam as pessoas, a  semelhança do que acontece com shopping centers ou casas abertas ao paºblico.

Um conhecimento importante a ser ensinado são os antigos e os novos direitos que emergem nessa realidade virtual, os direitos (humanos) digitais. Ha¡ os direitos que se mantem semelhantes no espaço online e offline, que são “esticados” para o ciberEspaço (ex. direitos de justia§a, não discriminação e igualdade). Ha¡ os direitos traduzidos, que requerem a tradução para este espaço (ex. proteção de dados pessoais e a restauração do prejua­zo sofrido). E, finalmente, háos direitos propriamente digitais, que exigem uma nova linguagem (ex. acesso livre, igual e seguro a  rede como um direito humano).[4] Na Europa, por exemplo, especialistas elaboraram uma “Carta dos direitos fundamentais digitais da Unia£o Europeia”.[5] A carta convidapaíses a regularem o espaço virtual com direitos fundamentais ma­nimos.

Os direitos humanos digitais também começam a ser protegidos no Brasil. Duas leis importantes são o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD (Lei nº 13.709/2018). O Marco Civil da Internet, por exemplo, defende diversos direitos e garantias no uso da Internet e prevaª o dever do Estado em capacitar as pessoas para “o uso seguro, consciente e responsável da internet como ferramenta para o exerca­cio da cidadania”. Tambanãm indica iniciativas públicas de fomento a  cultura digital, que precisam promover a inclusão digital, buscar reduzir as desigualdades e fomentar a produção e circulação de conteaºdo nacional.

Essa cultura digital baseada em direitos humanos digitais, então, deve ser ensinada nas escolas e pelas fama­lias, com apoio da sociedade. Nessa linha, a Nova Base Nacional Comum Curricular estabelece um tratamento transversal do tema, articulando-o com outrasDimensões nas prática s que aparecem, ora como competaªncia, ora como habilidade a ser desenvolvida, tanto no ensino fundamental, quanto no ensino manãdio. Portanto, o dever de os Espaços educacionais tratarem do tema transversalmente estãocolocado.

Mas como fazer isso na prática ? Como fazer com que um campo do conhecimento, como a matemática, a química ou a educação física possam tratar destes temas?

Traªs linhas ba¡sicas se abrem aqui:

- Inserção da cultura digital nas disciplinas do curra­culo, de maneira transversal. Significa ensinar função exponencial por meio de viralização nas redes sociais ou ensinar interpretação de nota­cias por meio de fake news;
- Inserção da cultura digital por meio de projetos interdisciplinares ou em atividades no contraturno, de maneira que temas específicos possam ser trabalhados com estudantes sob várias perspectivas, como o doma­nio dos algoritmos nas redes sociais;
- Inserção da cultura digital na construção da comunidade escolar, de maneira a construir Espaços de dia¡logo, aprendizagem e resolução de conflitos não apenas com estudantes, mas com familiares e entorno social.
 
Encerramos com dois exemplos de discussaµes sobre direitos que surgiram recentemente. O primeiro direito que chamamos a atenção e impactou diretamente os educadores éo direito ao acesso livre, igual e seguro a  rede. Apesar de 86% dos estudantes brasileiros de 16 anos ou mais de todos os na­veis terem acompanhado as aulas ou atividades remotas, 36% dos estudantes de 16 anos ou mais tiveram dificuldades para acompanhar as aulas, seja por falta ou baixa qualidade da conexão a  internet.[6] A acessibilidade foi uma realidade que as escolas tiveram que enfrentar quando suspenderam as aulas para iniciar as atividades remotas e quando as iniciaram. Trabalhar com os estudantes projetos para acesso a  rede de quem não consegue éapenas um dos caminhos para fomentar cultura digital na escola.

Outra questãorecorrente éa obrigação abrir ou não a ca¢mera durante a aula. Juridicamente, ela opaµe o direito a  privacidade e intimidade contra o poder da escola de fixar as regras no seu ambiente. Mas éuma situação que também precisa levar em consideração conhecimentos da pedagogia, como a necessidade do controle do ambiente da aprendizagem, e da psicologia, como o estado emocional de estudantes, familiares e educadores nesta situação. Como levar estudantes a renunciarem a seu direito a  privacidade? A solução passa por convencimento e conforto do ambiente, não pela obrigação.  

Para mais dicas, organizamos um evento inteiro para discutir esses e outros temas.  Anote aa­: o Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) FGV Direito SP, em parceria com o Naºcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), promove o Bate-papo | Educadores e Internet, a presença de especialistas para debaterem questões como estas. Confira a programação, inscreva-se e participe deste bate-papo: https://nic.br/evento/bate-papo-educadores-e-internet/. Os dia¡logos também ficara£o disponí­veis para quem quiser ou são puder ver depois. Veja também mais sobre nosso projeto Formação de educadores para o ensino de direitos humanos digitais em https://bit.ly/3kicsZb. Juntos, podemos criar um ambiente digital com respeito aos direitos.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Guilherme Forma Klafke
La­der de projetos e pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV DIREITO SP. Doutor (2019) e Mestre (2012-2015) em Direito Constitucional pela Universidade de Sa£o Paulo. Professor do programa de pós-graduação lato sensu da FGV DIREITO SP. a‰ colaborador da Sociedade Brasileira de Direito Paºblico desde 2011, onde coordenou a Escola de Formação Paºblica (2017). Foi professor de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Sa£o Bernardo do Campo (2017-2018).


Dea­se Camargo Maito
Pesquisadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV DIREITO SP.  Doutoranda (2018-2021), no Programa de Pa³s-Graduação em Saúde Paºblica da Faculdade de Medicina de Ribeira£o Preto (FMRP-USP). Mestra (2017), pelo Programa de Pa³s-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Ribeira£o Preto (FDRP-USP).

 

.
.

Leia mais a seguir