Opinião

Por onde anda o “PL das Fake News”? a‰ necessa¡rio focar no aprimoramento dos deveres procedimentais, respeitando o regime de responsabilização adotado pelo Marco Civil da Internet
Precisamos não são corrigir esses e outros erros do projeto como também aprimorar seus pontos de acerto, especialmente os deveres procedimentais.
Por Julia Iunes Monteiro e Natália de Macedo Couto - 05/06/2021



Ha¡ mais de um ano, foi protocolado no Congresso Nacional o projeto que visa instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparaªncia na Internet (Projeto de Lei 2630/2020), popularmente conhecido como “PL das Fake News”. Já abordamos em artigo anterior que, apesar de existirem outras dezenas de projetos propondo a regulação de redes sociais, a atenção sobre este em especa­fico se justifica porque, dentre outros fatores, o PL inova ao estabelecer a necessidade de um devido processo para a moderação de conteaºdo online, ao indicar deveres de transparaªncia, justificação e mecanismos de contestação das decisaµes tomadas pelas plataformas. 

No entanto, o projeto tem chamado atenção do paºblico e da comunidade acadaªmica muito mais por seus erros do que por seus acertos. Apesar da modificação de diversos pontos problemáticos que constavam na redação original, como, por exemplo, a exclusão de abordagens criminais e a reformulação do conceito de “conta inautaªntica”, o texto aprovado pelo Senado ainda estãolonge de ser o que queremos para a internet brasileira. Nãoa  toa, foi criticado por dezenas de centros de pesquisa, além de órgãos nacionais e internacionais, como a ONU e a OEA, em carta direcionada ao Itamaraty.

Na Ca¢mara, houve a formação de um grupo de trabalho informal para deliberar sobre o tema, que resultou na apresentação de um substitutivo pelo Deputado Orlando Silva, o qual, no entanto, não foi apoiado pelos demais parlamentares que compunham a equipe, uma vez que se distanciou das discussaµes do grupo. Tambanãm foram aprovados requerimentos para a realização de audiaªncias públicas, em data ainda a ser marcada. A expectativa éde que outro texto seja apresentado, mas, por enquanto, a versão oficial do projeto aprovada pelo Senado ainda aposta na identificação massiva dos usuários, inclusive por meio da apresentação de documento oficial de identidade (art. 5º, I; art. 7º) e na rastreabilidade de conversas em aplicativos de mensagens (art. 10), podendo resultar em um ambiente de vigilantismo e censura nas redes. Precisamos não são corrigir esses e outros erros do projeto como também aprimorar seus pontos de acerto, especialmente os deveres procedimentais.

A regra de ouro épreservar o exerca­cio lega­timo do anonimato e o regime de responsabilidade adotado pelo Marco Civil da Internet

Muito embora o conceito de conta inautaªntica tenha sido reformulado pela redação oficial do projeto (art. 5º, inc. II) no intuito de resguardar o uso do nome social, de pseuda´nimos e o exerca­cio do anonimato, édifa­cil afirmar que isso ocorrera¡ na prática , já que a própria lei acaba estimulando as plataformas a realizarem a remoção excessiva e indiscriminada de contas. Por que isso acontece?

De acordo com a versão aprovada pelo Senado, as plataformas continuam tendo o dever de “vedar o funcionamento de contas inautaªnticas” (art. 6º, inc. I), sob pena de serem multadas (art. 31, II). Isto significa que precisara£o desenvolver seus pra³prios parametros para identificar as tais “contas inautaªnticas” que, nos termos do projeto, são aquelas que visam “assumir identidade de terceiros para enganar o paºblico” (art. 5º, inc. II). Devido a  imprecisão do conceito, fica difa­cil compreender, no entanto, o que efetivamente a lei quis coibir. 

Mesmo sem uma definição clara do objetivo perseguido pela lei, uma coisa écerta: as plataformas podera£o ser responsabilizadas, independentemente de notificação judicial, caso falhem nesse dever de monitoramento. A consequaªncia prática dessa dina¢mica éum cena¡rio de grande insegurança jura­dica tanto para os usuários (que correm o risco de ter sua conta suspensa), como para as empresas (que precisara£o se envolver numa verdadeira guerra contra as tais “contas inautaªnticas”, sem saber ao certo como identificar o “inimigo” a ser perseguido). Por meio de que procedimento seria possí­vel descobrir o propa³sito por trás da criação das contas? O que significa “enganar o paºblico”? E como diferenciar essas contas “enganosas” daquelas que, legitimamente, fazem uso de pseuda´nimos, de nome social ou mesmo do anonimato, categorias teoricamente protegidas pelo projeto?

Com o temor de serem responsabilizadas por negligaªncia, a tendaªncia éde que, por via das daºvidas, as plataformas adotem uma postura de remoção excessiva de todas as contas que apresentarem qualquer sinal de “inautenticidade” - seja la¡ qual significado esse termo possa assumir. E édessa maneira que o PL das Fake News subverte o regime de responsabilidade implementado pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet. No fundo, as plataformas sera£o obrigadas a fazer uma análise de manãrito subjetiva das contas e conteaºdos postados, sendo responsabilizadas, sem notificação judicial prévia, caso “falhem” em sua avaliação.

As plataformas não devem ser responsa¡veis pelos conteaºdos criados pelos usuários, mas podem e devem ser responsabilizadas pela infraestrutura comunicativa que administram

Visando proteger a liberdade de expressão e evitar a censura, o Marco Civil garante que, como regra, as plataformas não são responsabilizadas pelos conteaºdos postados pelos usuários. Mas disse pouco sobre os deveres que as plataformas devem assumir na posição de administradoras da infraestrutura comunicativa e, especialmente, quais são suas responsabilidades ao lidar com problemas sistemicos, como desinformação, discurso de a³dio e manipulação eleitoral, preocupações que hoje são muito maiores do que sequer se imaginava na anãpoca da elaboração do Marco Civil.

Hoje já sabemos que se, por um lado, as plataformas atuam ativamente para remover conteaºdos nocivos (inclusive para garantir a permanaªncia dos usuários na rede e seus interesses econa´micos), por outro lado, o seu pra³prio modelo de nega³cios pode fomentar os problemas sistemicos que elas buscam remediar. Tanãcnicas de recomendação e perfilhamento são comumente adotadas para direcionar conteaºdos, podendo aprofundar a criação de “filtros bolha”, ca¢maras de eco e polarização pola­tica, distorcendo a percepção do usua¡rio sobre a realidade.

O movimento Stop Hate for Profit denunciou como a  pola­tica de anaºncios do Facebook e Instagram estaria promovendo discursos racistas, misãoginos e de supremacia branca; o esca¢ndalo da Cambridge Analytica demonstrou como os dados de usuários foram utilizados para manipulação pola­tica, enquanto que, atualmente, redes de desinformação se organizam para distorcer dados cienta­ficos durante a pandemia.  

Episãodios como esses demonstram que, apesar das plataformas não serem as criadoras dos conteaºdos, suas políticas de moderação exercem influaªncia decisiva sobre o tipo de informação a ser priorizada, assim como aquelas que sera£o objeto de formas, atéveladas, de censura (como no caso do shadowban), podendo impactar desde a rentabilidade de nega³cios, atémesmo questões de saúde pública e a repercussão de manifestações políticas. Sa£o processos que va£o muito além da mera remoção de um conteaºdo especa­fico e passam ao largo de qualquer tipo de controle, seja por parte do Judicia¡rio ou de qualquer outra instituição no Brasil.

Rumo a um devido processo para a moderação de conteaºdo

O estabelecimento de um devido processo para a moderação de conteaºdo já éadotado por legislações estrangeiras, como a NetzDG na Alemanha, e recomendado por iniciativas internacionais, como os Princa­pios de Santa Clara, Manila Principles e Change the Terms. Entre os principais pontos abordados nestes documentos, estãoi) a exigaªncia de relatórios de transparaªncia elaborados pelas plataformas, informando o número de postagens removidas e contas suspensas por violação aos termos de uso; ii) orientações claras sobre as regras da comunidade, com o oferecimento de justificativas aos usuários sobre o porquaª da remoção, suspensão ou outra técnica de moderação efetuada; e iii) a possibilidade de que os usuários possam recorrer dessas decisaµes.

a‰ importante observar que a implementação de deveres procedimentais deve ter como objetivo adicionar uma camada extra de accountability a s plataformas, mas não subverter o regime de responsabilização por notificação judicial já existente. Esse alerta também éfeito pelo Manila Principles, ao indicar que “os intermediários nunca devem ser responsabilizados objetivamente por hospedar conteaºdos ilegais de terceiros” e que as leis que disponham sobre responsabilidade dos intermediários devem ser “precisas, claras e acessa­veis”.

Esse éum dos erros cometidos pelo PL das Fake News ao responsabilizar as plataformas caso deixem de remover “contas inautaªnticas” e também igualmente cometido pela lei alema£, ao responsabilizar as plataformas caso deixem de remover conteaºdos “manifestamente ilegais”, no prazo exa­guo de 24h. Diversos cra­ticos preocupam-se com as consequaªncias da referida lei para a liberdade de expressão, afirmando que, da forma imprecisa com a qual a obrigação foi imposta, pode encorajar a remoção excessiva e ilega­tima de conteaºdos legais, especialmente levando-se em consideração o escasso tempo para avaliação das reclamações e o alto valor das multas. a‰ essencial que o PL das Fake News aprenda com a experiência estrangeira para não repetir os mesmos erros.

Grandes poderes, grandes responsabilidades: precisamos falar sobre os deveres procedimentais

Pesquisas demonstram que, em regra, as plataformas falham sistematicamente em justificar suas decisaµes de moderação. Os usuários ficam em daºvida sobre como as regras são criadas e como potenciais violações aos termos de uso são identificadas: a reclamação foi feita por um usua¡rio, por um órgão do governo, ou seráque o conteaºdo foi identificado como ofensivo por algum moderador ou algoritmo? Além de não receberem explicações suficientes sobre a origem da reclamação, muitos usuários também ficam sem compreender qual teria sido exatamente o comportamento que desencadeou uma sanção por parte da plataforma: qual regra do termo de uso foi violada? Por que essa postagem foi considerada como uma violação a essa regra?

Se as plataformas se tornaram os “novos governantes da liberdade de expressão”, énecessa¡rio que seus processos decisãorios sejam submetidos a limites pra³prios do constitucionalismo. Elas possuem liberdade para elaborar seus termos de uso, executar medidas de moderação (tanto por humanos quanto por ferramentas automatizadas) e impulsionar anaºncios, mas agora precisam prestar contas sobre como realizam esse processo, porque determinada decisão foi tomada naquele caso em especa­fico e ofertar oportunidades para os usuários questionarem suas decisaµes. O PL acerta ao buscar os parametros iniciais para o cumprimento dessas obrigações, que, no entanto, ainda precisam ser bastante aprimorados. 

Deveres de Transparaªncia, Apelação e Justificação das decisaµes são consensos que merecem ser aprimorados

A demanda por transparaªncia e justificação das decisaµes não pode ser um fim em si mesmo e, para que seja útil, precisa ser um mecanismo viabilizador da prestação de contas pelas plataformas e não apenas uma vitrine cujo aºnico propa³sito éexpor informações. Algumas pesquisas que avaliam a implementação da NetzDG na Alemanha já demonstraram o “baixo valor informativo” dos relatórios de transparaªncia, que, da maneira como aplicados, não estariam levando a uma melhor compreensão das decisaµes tomadas pelas plataformas.

O estabelecimento de deveres de transparaªncia e devido processo para a moderação de conteaºdo são comumente retratados como pontos de consenso por aqueles que avaliam o PL das Fake News, mas merecem ser melhor explorados, em atendimento a s recomendações acadaªmicas e aos documentos internacionais sobre o tema. Os deveres procedimentais indicados no PL são suficientes? Em que medida podem ser aprimorados para viabilizar uma efetiva fiscalização? Os pra³ximos artigos a serem publicados neste portal buscam trazer considerações a esse respeito.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Julia Iunes Monteiro 
Advogada e possui 9 processos indexados, atéentão, pelo Escavador. Com todos os seus processos no Estado do Rio de Janeiro. Desses processos, Fundo Unico de Previdencia Social do Estado do Rio de Janeiro Rioprevidencia foi a parte que mais apareceu, totalizando 4 ou mais processos, seguida por Ministanãrio Paºblico com 3 ou mais processos.

Natalia de Macedo Couto
Mestranda em Direito da Regulação, FGV DIREITO RIO - Pa³s-graduada em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ (2011). Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sa¡ - UNESA (2007). Atualmente éadvogada na MF Assessoria Jura­dica Empresarial e assistente de ensino da Fundação Getaºlio Vargas (FGV). Tem experiência na área de Direito, com aªnfase em Direito Privado. 

 

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