O rompimento com os ca¢nones acadaªmicos e com os valores tradicionais, foram decisivos para que a arte conquistasse a sua autonomia, mesmo que de forma transgressiva e subversiva ao sistema.
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Os tempos modernos e a autonomia conquistada pelo indivaduo gradualmente estabeleceram e afirmaram a sua liberdade de escolha e participação social atual. Na arte, o processo foi o mesmo, passando pelas ideologias marcantes que a arte moderna defendia naquele momento de envolvimento social e polatico da modernidade. Uma arte que provocava muitas vezes o status quo. O rompimento com os ca¢nones acadaªmicos e com os valores tradicionais, foram decisivos para que a arte conquistasse a sua autonomia, mesmo que de forma transgressiva e subversiva ao sistema.
Na arte contempora¢nea, todo o significado difere do da arte moderna, em relação a uma abordagem da vida, ao se aproximar de uma estanãtica do cotidiano. Antes havia ideologias para estabelecer o sentido da arte e selecionar a referaªncia e, atualmente, a ausaªncia desses valores nos condiciona apenas ao tempo para escolher entre as obras contempora¢neas, aquelas que marcam seu valor. Estas obras de arte são aquelas que se tornam inesquecaveis enquanto outras são esquecidas, conforme os valores do contexto sociocultural de nossos dias.
Da virada do século XIX ao século XX, um novo sentido foi encontrado para a história da arte ocidental, que, quando analisada pelo tea³rico e crítico de arte americano Harold Rosenberg (1907-1978), seria condicionada a uma redefinição, comprometendo a noção que se tinha sobre a arte e não especificamente sobre a obra de arte atual. Entretanto, atualmente, não se trata de questionar as conquistas artasticas em suas particularidades, problematizando-as, e recusando-as como obras de arte diante das velhas noções sobre arte. Mas, ao contra¡rio, trata-se de possibilitar novas experiências estanãticas, ou melhor, de criar uma nova visão do mundo.
Assim, a arte, como forma essencialmente humana de manifestação de seus conhecimentos e ideias, também forma a estrutura social. A ideologização exercida pelas instituições não éformada apenas por ideias. a‰ necessa¡rio materializa¡-las, ou seja, coloca¡-las em ordem e submetaª-las a ação, para conseguir a sua realização. Para que uma ideologia exista, énecessa¡rio ter meios suficientes para sua materialização, e estes meios não são uma ideologia, mas sim a realidade. Esta representação ideola³gica — a materialização — érelativa a s regras da ordem estabelecida pela ideologia dominante. A arte, neste sentido, érealizada seguindo os ideais da instituição ou de uma forma pseudoconsensual. Em uma posição contra¡ria, esta arte seria subversiva ao sistema.
Entretanto, para situar esta introdução na contemporaneidade, considerando a autonomia da arte e o significado da imagem em relação ao ideal democra¡tico global e referaªncia para a noção de liberdade, apresento o exemplo da arte de Candido Portinari e Robert Rauschenberg como coadjuvantes dos objetivos institucionais da Organização das Nações Unidas. Contudo, para situar melhor este ensaio, as seguintes questões são basilares: a realização artastica estãovinculada a uma interdependaªncia das estruturas e das relações sociais? O que éliberdade de expressão nas artes? Quais autonomias pessoais, coletivas ou artasticas são possaveis na sociedade contempora¢nea?
Um dos marcos modernistas mais significativos e representativos de uma nova direção para a orientação democra¡tica global após a Segunda Guerra Mundial foi a missão essencial de fazer valer os direitos humanos fundamentais com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Para tanto, foi verificada uma nova relação entre instituições e organizações ligadas aos Estados-nação quanto ao significado da arte contempora¢nea. Este sentido da arte tem lentamente perdido suas caracteristicas subversivas para se tornar uma arte mais consensual associada aos ideais polaticos e sociais de organizações influentes.
Uma referaªncia significativa a este respeito éa importa¢ncia da imagem dos artistas ligando sua arte aos valores dos direitos fundamentais destinados a s sociedades democra¡ticas. A sede principal das Nações Unidas também mantanãm uma rica coleção de obras de arte preservada pelo Comitaª de Arte da ONU. Artistas renomados de seus Estados-membros doaram obras a coleção de arte das Nações Unidas, representativas dos ideais da entidade e incorporadas na Carta das Nações Unidas, promovendo a ideia de unidade da humanidade em toda a sua diversidade cultural. Entre essas obras de arte, destacam-se os murais Guerra e Paz, de Candido Portinari. Dois murais foram apresentados a s Nações Unidas, montados nas paredes leste e oeste do lobby do andar tanãrreo do edifacio da Assembleia Geral. Eles foram um presente do Brasil para a sede da ONU.
Ironicamente, a apresentação deste presente foi inesquecavel porque Portinari não pa´de estar presente na inauguração. Porque comunista, Portinari não pa´de obter do governo americano a autorização para entrar nopaís. No entanto, esta situação destacou o significado de uma obra-prima com objetivos que superam as diferenças; ou seja, a arte continua sendo uma memória e uma mensagem para os ideais das Nações Unidas. Outra obra de arte nota¡vel éum mural do artista espanhol JoséVela Zanetti, também localizado na sede das Nações Unidas. O colossal mural retrata a Luta pela Paz Duradoura da Humanidade, comea§ando com a destruição de uma familia e terminando com a ressurreição, mostrando uma criana§a de olhos brilhantes olhando para uma geração de paz. Campos de concentração, bombardeios e toda a agonia da guerra moderna estãosimbolizados no quadro, no centro do qual uma gigantesca figura de quatro braa§os implanta o emblema das Nações Unidas enquanto a humanidade reconstra³i um mundo dilacerado pela guerra.
O artista atento a s exigaªncias do cidada£o no espaço paºblico mantanãm os ideais de democracia em seus propósitos artasticos. Sua obra estãosituada no contexto social, atua em relação a condição humana. Esta consciência democra¡tica orienta o artista na busca de seus direitos, em princapio, não apenas para a ideologia social, mas também para a realidade do direito a liberdade baseada em outros direitos, como a soberania pessoal, que já estãoestabelecida e énecessa¡ria.
Esses direitos estãorelacionados a manutenção da ordem social por meio da igualdade de poder e de escolha, um espaço compartilhado por todos com integridade e administrado pela própria sociedade. No entanto, devemos também considerar que a democracia moderna não tem o mesmo sentido de democracia da Granãcia antiga. Na verdade, a democracia moderna difere no que diz respeito ao sistema de governo. Entretanto, em geral, os cidada£os nas sociedades democra¡ticas de hoje assumem a existaªncia de igualdade e buscam maior liberdade nas suas decisaµes sobre o que fazer em relação a s suas escolhas, desejando algum poder e mais participação. A independaªncia estabelecida dentro de uma comunidade representa a orientação para a realização de ações sem restrições. Assim, nas relações sociais, os cidada£os buscam mais igualdade e o direito de participar nas decisaµes e descentralização do poder. As imagens resultantes desta relação entre arte e polatica focalizadas na estanãtica cotidiana e nos ideais democra¡ticos são percebidas quando a autenticidade da arte transforma a produção criativa em uma causa social.
Desta forma, entendemos a importa¢ncia dos estudos visuais nas sociedades contempora¢neas em meio ao desenvolvimento acelerado da cultura visual e dos meios de comunicação. Imagens de diferentes contextos incorporam principalmente as possibilidades oferecidas pelas diversas relações da cultura. Destaca-se aqui Tributo 21, uma sanãrie de litografias offset impressas na Universal Limited Art Editions (ULAE), Nova York, doada a 21 museus no mundo inteiro, incluindo o Museu de Arte Contempora¢nea (MAC) da Universidade de Sa£o Paulo, em 1994. Essas imagens estãorelacionadas ao impacto contempora¢neo da imagem associada ao valor cultural como progresso sociopolatico, buscando melhorar o que poderia ser descrito como uma “democratização da arteâ€. Outro objetivo do trabalho éa reflexa£o estanãtica provocada pelas imagens, que envolvem a diversidade cultural e o respeito a diferença. Talvez não haja exemplo mais significativo e simba³lico da visualização de uma ideia abstrata relacionada aos direitos humanos do que a homenagem a Nelson Mandela, lembrando-nos da era do Apartheid. Outros exemplos desta mesma sanãrie Tributo 21 (1994) são Culturas a‰tnicas ‒ Dalai Lama; Paz ‒ Mikhail Gorbachev; Tecnologia ‒ Bill Gates; e Meio Ambiente ‒ Al Gore.
Em geral, os nomes e temas mencionados no Tributo 21 de Rauschenberg tornam o significado de sua arte evidente, evitando, assim, qualquer ambiguidade ou especulação interpretativa e estanãtica sobre a composição visual de seus agrupamentos que abrangem um entendimento global. Eles representam fatos sociais e, além disso, as gravuras celebram eventos com temas humanita¡rios interpretados como relevantes para este período, desde a anãpoca moderna atéa contempora¢nea, em seu significado hista³rico, social, polatico e cultural. Em 1995, para a celebração do 50º aniversa¡rio da fundação das Nações Unidas, foi criada uma exposição de arte em seu complexo de Genebra, intitulada Dia¡logos de Paz. Esta exposição apresentou obras de arte de 60 artistas contempora¢neos internacionais com o conceito e a curadoria assumidos por Adelina von Fa¼rstenberg e organizada pela Associação Francesa para a Ação Artastica. Na ocasia£o, o crítico de arte Alan Riding escreveu o ensaio Politics, This is Art. Art, This is Politics para o The New York Times, em 10 de agosto de 1995, destacando o seguinte:
"Para todo o instinto natural dos artistas de querer mudar o mundo, éraro que suas obras sejam expostas em um ambiente onde os funciona¡rios do governo devem tomar nota delas. Mas uma exposição incomum no complexo das Nações Unidas em Genebra faz exatamente isto: obriga a arte e a polatica a coexistir".
Entre essas obras de arte, a sanãrie de Robert Rauschenberg foi conspacua. Entretanto, a organizadora da exposição, Sra. von Fa¼rstenberg, esclareceu que nem todas as obras eram explicitamente políticas, mas “em suas diferentes formas, todas elas fazem declarações sobre o estado do mundo meio século após o nascimento das Nações Unidasâ€. Ela também enfatizou a imensa importa¢ncia da sanãrie de Rauschenberg, a Tributo 21, dado que
“cada uma das 21 litografias toca um aspecto da existaªncia humana — da felicidade e dos direitos humanos a saúde e a tecnologia — e, consideradas em conjunto, cobrem a gama da experiência humanaâ€.
Entretanto, recordemos asmudanças sociais ocorridas desde a Declaração Francesa dos Direitos Humanos (La Danãclaration des Droits de l’Homme), em 1789, como um primeiro passo, levando ao que estãoestabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, e que ainda estãoem prática . Entretanto, asmudanças sociais resultantes do desenvolvimento econa´mico, tanãcnico e industrial resultaram em novas formas de comunicação, maior acesso a informação e a aquisição de conhecimento. Essasmudanças representam um processo de transformação social que levou as relações humanas a adquirir novas necessidades, condicionando-as, assim, a novas exigaªncias, que são, no que lhes concerne, novos direitos. A diversidade e a complexidade dos direitos humanos estãofundamentadas nas dificuldades inerentes ao conteaºdo da retida£o, que se baseia na moralidade e, por extensão, no acordo comum. Por um lado, o consenso de alguns sobre um determinado assunto implica a compreensão de que estes cidada£os tem um “valor absolutoâ€. Por outro lado, a expressão “direitos humanos†leva a homogeneidade na sociedade perante a lei; de fato, para dar direitos a alguns, outros tera£o tido seus direitos retirados. Norberto Bobbio justifica a situação atual e o futuro da democracia apresentando o direito mais significativo: o direito a liberdade de expressão. Entretanto, para obter o direito a liberdade de expressão, também énecessa¡rio remover o direito do cidada£o de não ser enganado, persuadido, provocado, escandalizado ou ridicularizado.
Portanto, podemos imaginar as liberdades e os direitos sociais como podemos vivencia¡-los nas sociedades atuais, de tal forma que, quanto mais livres os seres humanos são, menos factualmente corretos eles são e vice-versa. Assim, para Bobbio, “liberdade†éo direito concedido quando o Estado não intervanãm, e “poder†éo direito pelo qual a intervenção do Estado éassumida. Consequentemente, liberdade e poder nunca sera£o complementares, mas sim incompataveis. Pensar em liberdade faz parte da natureza humana, ou seja, da vida em todos os seus sentidos. Entretanto, a compreensão do valor da liberdade éuma parte essencial da experiência em conjunto com a falta desta liberdade em várias formas. Os seres humanos são condicionados como cidada£os ou simples sobreviventes a s condições naturais que determinam seus caminhos. Portanto, pensar na humanidade em sua natureza biológica, psicológica e social, assim como em seus aspectos anãticos, estanãticos e morais, e suas diferenças culturais, anãtnicas e religiosas ébuscar uma compreensão de como a humanidade, em meio a condições determinadas ou arbitra¡rias, pode construir melhores relações. Para isso, sem daºvida, a comunicação em suas formas e meios éo fator determinante.
Christiane Wagner
Professora pesquisadora do Museu de Arte Contempora¢nea (MAC) da USP
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