Opinião

Nãoéculpa da OTAN e não éuma guerra contra o Ocidente
A crueldade da guerra chega ao mundo por imagens de gra¡vidas feridas, fama­lias inteiras mortas ao tentarem fugir, criana§as viajando sozinhas para escapar das bombas e jornalistas reportando a tensão e a tristeza de vidas perdidas ou, no ma­nimo,
Por Luís Renato Vedovato - 23/03/2022


Presidente da Raºssia, Vladimir Putin, na residaªncia oficial em Novo-Ogaryovo, nos arredores de Moscou

O fluxo de pessoas em busca de refaºgio nas fronteiras da Ucra¢nia com Eslova¡quia, Pola´nia, Hungria e Molda¡via, além da chegada de solicitantes de refaºgio empaíses mais distantes, como Alemanha, Frana§a, Dinamarca, entre outros, éum claro sintoma de que a traganãdia causada pela invasão da Raºssia a  Ucra¢nia afeta vida privada, o cotidiano e os planos de futuro das fama­lias. A crueldade da guerra chega ao mundo por imagens de gra¡vidas feridas, fama­lias inteiras mortas ao tentarem fugir, criana§as viajando sozinhas para escapar das bombas e jornalistas reportando a tensão e a tristeza de vidas perdidas ou, no ma­nimo, alteradas. Nãoháguerra mais cruel que outra. Todas são execra¡veis. Violações cometidas em outros conflitos, como no Iraque, no Afeganistão, no Vietna£, no Iaªmen, na La­bia, na Sa­ria, no Congo ou em Ruanda, apenas para citar alguns palcos de traganãdias recentes, não torna a ação russa menos condena¡vel.

Ta£o frequentes quanto as guerras éa busca pelos responsa¡veis e, não hádaºvida nesse ponto, o responsável sempre équem as inicia. Pode haver tergiversações, como éo caso de se dizer que a invasão da Ucra¢nia pela Raºssia se deve ao avanço da Organização do Tratado do Atla¢ntico Norte (OTAN). Ora, repise-se, isso éequivalente a culpar a va­tima pelo estupro, e nem de longe seria um fundamento. Mas de onde vem essa suposta justificativa?

No ini­cio dos anos 1990, vários especialistas, como o diplomata e historiador norte-americano George Kennan (1904-2005), alertavam para o avanço da OTAN em direção a s fronteiras da Raºssia, afirmação que vem sendo repetida desde então como sendo verdade. Apesar disso, nada indica que os ataques de 2022 não aconteceriam, caso a OTAN tivesse permanecido do tamanho que tinha em 1991. Alia¡s,países que se vincularam a  organização militar ocidental parecem menos preocupados com os avanços russos quando comparados a queles que não fazem parte do pacto.

Então, o que explicaria a invasão? Desde o fim da Unia£o Sovianãtica (URSS), a Raºssia passou por crises econa´micas e políticas, tendo conseguido estabilidade em ambos os campos a partir de meados dos anos 2000, depois de passar a fornecer petra³leo e gás para o mundo, especialmente para a Europa. Em outras palavras, a economia deu fa´lego a  pola­tica.

Essa estabilidade veio ao mesmo tempo em que Putin se fortalecia no poder. Com tal fortalecimento veio a repressão a  ma­dia. Logo em 2006, após a guerra que destruiu Grozny, na Chechaªnia, houve várias cra­ticas dos meios de comunicação russos, especialmente por parte da jornalista Anna Stepanovna Politkovskaya. Ha¡ quem diga que seu homica­dio, que se deu enquanto ela deixava seu apartamento em direção a  redação do jornal Novaya Gazeta, estãorelacionado a s suas investigações sobre as violações a direitos humanos durante o ataque determinado por Putin. De toda sorte, atéhoje não se sabe quem foram os mandantes do crime, tendo sido presos apenas os executores.

Com uma economia baseada na venda de petra³leo e gás, o Kremlin sentiu que poderia gerar na população uma percepção de prosperidade, deixando no passado o sentimento de fraqueza, com atraso de sala¡rios e incerteza inflaciona¡ria dos anos de Boris Ieltsin, fazendo voltar a esperana§a de que o poder russo retornava ao mundo, resgatado de uma era imperial longa­nqua ou da Unia£o Sovianãtica, extinta mais recentemente. Em todo caso, o curto período democra¡tico passou a ser confundido com os complicados primeiros anos após o esfacelamento sovianãtico.

Ao lado dessa expansão, percebe-se a presença dos militares e das forças que poderiam fazer Putin se perpetuar no poder. Vale ressaltar que a ação militar na Sa­ria colocou os militares em destaque nopaís. Aos poucos, portanto, o presidente russo fez que seus principais competidores saa­ssem de cena, valendo citar Garry Kasparov, Dimitri Medvedev, que substituiu o presidente por um curto período, além de Alexei Navalny, que hoje se encontra preso na Raºssia, depois de passar por tratamento na Alemanha, por conta de um envenenamento de que teria sido va­tima.

Além da censura a  ma­dia, que se aprofundou nas últimas semanas, a difusão de informações falsas ganhou patamares mais elevados nopaís, fazendo que parte da população simplesmente não acredite na existaªncia da guerra que destra³i opaís vizinho. Somando tudo isso, não hácomo se dizer que a culpa éda OTAN ou que éuma guerra contra o Ocidente. O que se configura éuma luta pela manutenção no poder internamente. O Ocidente éapenas mais uma desculpa.

Segundo Andrey Kurkov, escritor russo que mora hámuitos anos na Ucra¢nia, Putin deseja deixar seu legado para o futuro do que ele chamaria de Grande Raºssia que, para o ocupante do cargo mais alto do Kremlin, não teria fronteiras, assim como parece não ter sua sede por permanecer no cargo.

No fundo, trata-se de mais um ditador que se incomoda em ser contraditado. Se não fosse a OTAN, seria outro motivo, se não fosse o Ocidente, seria outro povo. O que o deixa em posição diferente de qualquer ditador que usa seu poder para violar direitos éo fato de possuir armas atômicas.

Superar esse momento étarefa a¡rdua. A escalada parece ser inevita¡vel. Que de tudo isso fiquem duas certezas: 1. a importa¢ncia da liberdade de imprensa para fazer correções de rotas em governos; e 2. a necessidade de foros globais coletivos para solução de disputas com base em direitos, que nos últimos anos tem sido demonizado sob o ra³tulo de "globalismo", mas que éa fa³rmula usada desde hámuito tempo para diminuir as possibilidades de conflitos.

O cena¡rio atual indica menos para uma solução coletiva e mais para um avanço no conflito, o que pode tornar a Ucra¢nia apenas a primeira trincheira dessa longa batalha.


Lua­s Renato Vedovato
Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Sa£o Paulo; professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA); pesquisador associado FAPESP do Observatório de Migrações em Sa£o Paulo; e autor do livro “Deve Haver” (2017)

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