Pesquisa investiga os impactos na saúde de quem cuida de pessoas com comportamento suicida
Ao tratar população vulnerável ao risco suicida, profissionais de saúde experimentam sentimentos ambivalentes com repercussão na vida pessoal e profissional
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O suicídio é um problema que afeta famílias e comunidades inteiras, inclusive os profissionais de saúde. Segundo resultados parciais de duas pesquisas realizadas na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, esses trabalhadores experimentam diferentes sentimentos que tendem a ser invisibilizados. Uma revisão sistemática do tema analisou 21 estudos publicados em dez países diferentes entre 2005 e 2021, abrangendo 435 participantes de diversas especialidades (enfermagem, psicologia, serviço social e medicina). Para o segundo estudo, foram entrevistados profissionais de psicologia que, durante a pandemia de covid-19, precisaram se adaptar ao atendimento remoto a pacientes com comportamento suicida.
Ambos os estudos integram o mestrado de Natália Ferracioli, em andamento no Programa de Pós-graduação em Psicologia e no Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS) da FFCLRP, sob orientação do professor Manoel Antônio dos Santos, e estão publicados em dois artigos científicos na Revista Psicologia, Saúde & Doenças.
Natália afirma que o trabalho com pessoas em risco suicida provoca “sentimentos ambivalentes que repercutem e geram transformações significativas nas esferas da vida pessoal e laboral”, fato que justifica a importância do cuidado com esse profissional. Ideia compartilhada pelo professor Santos, para quem o estudo evidenciou “intensidade emocional considerável ao se trabalhar com tal demanda, o que provoca experiências complexas e multifacetadas”.
Insegurança, impotência e compaixão?
Diante de casos que envolvem suicídio, os trabalhadores se sentem confusos, desorganizados, entorpecidos ou inábeis. É comum que “eles também se percebam limitados, impotentes, frustrados, indefesos e desesperançosos ao se depararem com o paciente que manifesta desejo de se suicidar”, informa a pesquisadora, adiantando que os motivos envolvem o despreparo ou o treinamento insuficiente.
Muitos deles, explica o professor Santos, assumem uma postura mais técnica e avaliativa, “desconectando-se dos seus pacientes e até de suas próprias aspirações ao trabalharem com saúde mental”, o que impacta a qualidade do próprio trabalhador e o desenvolvimento da relação com os pacientes, “prejudicando ambos”. Santos também destaca a falta de treinamento e de espaços adequados para o trabalho das emoções dos especialistas como “fatores importantes para o desenvolvimento de sentimentos adversos” vividos por eles. Para o professor, fica evidente a importância de educação continuada, do trabalho multidisciplinar e de espaços para autocuidado.
Natália conta ainda que foram observados empatia, compaixão, respeito, altruísmo e paciência para com os pacientes. Contudo, afirma que “essas experiências não ocorrem isoladamente, estando sempre permeadas, em alguma medida, pelo sofrimento.”
Os resultados estão no estudo Sujeito oculto: profissionais de saúde mental e o trabalho com pessoas com comportamento suicida desenvolvido por Natália sob orientação do professor Santos, com coautoria das professoras Érika Arantes de Oliveira Cardoso e Elaine Campos Rodrigues, ambas da FFCLRP.
Atendimento on-line é alternativa de suporte para regiões distantes
Embora não substitua o atendimento presencial em determinadas situações (como quando há o risco iminente de suicídio), o atendimento on-line se mostrou como uma possibilidade viável no manejo desses casos, especialmente em contexto de difícil acesso a serviços de saúde mental. Esse foi um dos achados do trabalho Manejo online do comportamento suicida na ótica de psicólogas(os) brasileiras(os): primeiras ponderações, desenvolvido pela pesquisadora Natália com orientação do professor Santos.
Com o atendimento on-line a pessoas ou grupos em situação de emergência temporariamente autorizado, devido ao distanciamento social provocado pela pandemia de covid-19, Natália conta que tiveram a oportunidade de entrevistar dez psicólogos clínicos que atuam como psicoterapeutas, com quatro a 30 anos de experiência, e que atenderam pacientes com comportamento suicida durante a pandemia.
Apesar de constatarem a viabilidade deste modo de atendimento, a pesquisadora avalia que a pandemia de covid-19 “foi considerada uma tempestade perfeita de condições que elevou a vulnerabilidade dos indivíduos ou comportamento suicida, gerando uma demanda potencial para psicólogos clínicos, mas a própria atuação desses profissionais sofreu importantes impactos decorrentes do contexto de restrição do contato físico, já que tiveram que se adaptar ao atendimento mediado por tecnologias da informação e comunicação de forma abrupta e, muitas vezes, sem nenhum treinamento prévio”.
Assim, as entrevistas evidenciaram profissionais tristes, estressados, chorosos, ansiosos, convivendo com lutos diversos e planos e expectativas frustrados, além de consequências físicas indesejáveis, como ganho ou perda de peso e descompensação de sintomas e doenças de base. “Eles se sentiram colocados à prova diante da necessidade de exercer uma função de ajuda aos seus pacientes enquanto também estavam se sentindo vulneráveis”, conta a pesquisadora.
A própria adaptação ao atendimento on-line trouxe aos psicólogos resistências, inseguranças e dúvidas, como a “ansiedade e angústia diante da necessidade de transição brusca”, ao mesmo tempo que faziam ajustes para lidar com “o ideal e o possível nas circunstâncias excepcionais”, continua Natália, acrescentando que, por outro lado, também relataram facilidade em relação às “barreiras geográficas e melhor aproveitamento do tempo”. Para a pesquisadora, esses atendimentos levaram “a uma quebra de paradigmas, preconceitos e uma projeção de que, ao menos, alguns atendimentos vão ser mantidos de modo remoto após o período pandêmico”.
Quanto ao manejo do comportamento suicida, Natália afirma que o sentimento de insegurança dos psicólogos por não estarem fisicamente próximos da pessoa em momentos de crise “acentuou o receio de que ela pudesse consumar o suicídio”, o que se traduziu em vivências de “medo intenso e angústias terríveis”. Apesar disso, os profissionais identificaram como positiva a possibilidade de levar um suporte especializado a quem reside em locais onde não há um sistema de saúde mental “adequado e competente”.
Mais informações: e-mails nataliagmendes@hotmail.com e masantos@ffclrp.usp.br