Saúde

Transfusaµes de plasma não previnem sangramentos em casos de cirrose no fa­gado
Procedimento que consome 30% do plasma de banco de sangue no HC pode ser desnecessa¡rio: maioria dos pacientes com cirrose tem coagulaa§a£o normal antes da transfusão
Por Júlio Bernardes - 19/02/2020


Grupo de 53 pacientes com cirrose do Hospital das Cla­nicas (HC) da
Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) foi submetido a testes com
um equipamento chamado Trombograma Calibrado Automaticamente (CAT,
na sigla em inglês), que mede a quantidade total de trombina,
protea­na responsável pela coagulação do sangue, gerada pelo organismo os
Foto: Jorge Maruta / USP Imagens

Quando uma pessoa tem cirrose no fa­gado, uma das complicações mais comuns são os sangramentos, que costumam ser tratados ou prevenidos com transfusaµes de plasma sangua­neo, na tentativa de melhorar a capacidade de coagulação do sangue. Poranãm, uma pesquisa realizada no Hospital das Cla­nicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), feita durante três anos em um grupo de 53 pacientes com cirrose internados no hospital, revela que 96% deles tinham coagulação normal antes da transfusão e apenas 1,9% tiveram melhoras depois de receber plasma. O resultado foi obtido graças a um novo manãtodo de teste sangua­neo que mede a quantidade de trombina, protea­na que realiza a coagulação. O teste, ainda em fase experimental, podera¡ no futuro reduzir o procedimento pouco útil ao paciente e os custos do SUS com transfusaµes de sangue.

“A cirrose éa fase avana§ada de várias doenças do fa­gado, que possui diversas causas, como va­rus, a¡lcool, medicamentos, alterações imunola³gicas, de metabolismo e fígado gorduroso, cuja incidaªncia estãoaumentando e sera¡

um grande problema de saúde nos pra³ximos anos”, relata o professor Alberto Farias, da Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia Cla­nica do HC, um dos orientadores da pesquisa. “Ela écaracterizada pela destruição e perda de função do fa­gado, que deixa de fazer depuração, armazenamento e metabolização de substâncias e para de contribuir com a defesa imunola³gica e a digestão.”

Farias explica que, no ina­cio, as doenças hepa¡ticas não tem sintomas visa­veis, que são aparecem quando 70% do fígado deixa de funcionar. “Na fase mais avana§ada, elas atingem outros órgãos, como coração, cérebro, pulma£o, rim, intestinos, maºsculos, ossos e algumas gla¢ndulas. Isso faz com que o paciente precise ser atendido por vários especialistas, o que torna o tratamento muito caro”, observa. “Nesse esta¡gio, os principais sintomas são olhos amarelos, barriga d’a¡gua, e como os pacientes costumam vomitar sangue, são feitas transfusaµes de sangue para tratar o sangramento, uma das principais complicações decorrentes da cirrose.”

O principal tipo de transfusão feita em pacientes de cirrose éo de plasma sangua­neo, para melhorar a coagulação do sangue, afirma o professor. “Transfusaµes de sangue são um recurso muito utilizado em hospitais de todo o mundo, em diversas situações, e salvam vidas. Nos casos de cirrose, ela éusada frequentemente antes da realização de procedimentos invasivos, para prevenir sangramento”, aponta. “Embora os pacientes com cirrose representem apenas 8% das internações em hospitais como o HC, eles consomem 30% do plasma dos bancos de sangue. Transfusaµes são a segunda maior despesa do Sistema ašnico de Saúde (SUS) com esses pacientes, por isso éimportante medir com precisão a sua efica¡cia.”

Testes de coagulação
A pesquisa analisou 53 pacientes do HC durante 36 meses. Antes e depois das transfusaµes, amostras de sangue foram submetidas a dois testes de coagulação. “Para ocorrer a coagulação do sangue éfundamental que o fígado produza substâncias chamadas fatores da coagulação que, ao serem ativados, resultam na geração de uma protea­na chamada trombina, etapa fundamental.” Atualmente, o manãtodo padrãode teste em todo o mundo éo coagulograma, que mede a atividade dos fatores de coagulação, mas não a quantidade de trombina”, diz Farias. “Apesar do manãtodo ser utilizado hámais de 50 anos, ele identifica apenas 5% da capacidade de coagulação do paciente, superestimando os riscos de sangramento e levando a um maior número de transfusaµes.”

Além do coagulograma, foram realizados testes com um equipamento chamado Trombograma Calibrado Automaticamente (CAT, na sigla em inglês), que mede a quantidade total de trombina gerada. “O CAT permite medir a real capacidade de coagulação, uma vez que avalia o seu principal para¢metro, onívelde trombina. Por meio de exames de sangue, a pesquisa verificou que, antes da transfusão, 96% dos pacientes tinham coagulação normal”, destaca o professor. “Depois da transfusão, apenas 1,9% melhoraram sua capacidade de coagulação, não justificando o uso rotineiro do tratamento porque o benefa­cio émuito pequeno.”

Segundo Farias, o teste com o CAT ainda éexperimental e precisa ser validado para uso cla­nico. “O estudo demonstrou que os pacientes possuem mecanismos compensata³rios que permitem manter a capacidade de coagulação mesmo nas fases mais avana§adas da cirrose, inclusive quando o teste convencional, que émenos preciso, exibe resultados alterados”, afirma. “No futuro, o novo manãtodo podera¡ ajudar a mudar políticas públicas de saúde, direcionando transfusaµes de sangue para casos efetivamente necessa¡rios, representando uma grande economia de recursos nos hospitais.”

A pesquisa édescrita na tese de doutorado de Amanda Bruder Rassi, defendida no Programa de Pa³s-graduação em Ciências Manãdicas (Hematologia) da FMUSP. O trabalho foi orientado pelo professor Alberto Farias e teve como co-orientador o professor Elbio Antonio d’Amico, do Servia§o de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular. O estudo teve financiamento da Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp) e as conclusaµes também são apresentadas em artigo da edição de janeiro de 2020 do Journal of Hepatology, da Associação Europeia para o Estudo do Fa­gado, principal peria³dico da área. A tese também foi premiada no Congresso da Associação Americana para o Estudo do Fa­gado, em Boston (Estados Unidos) e no 8º Simpa³sio Internacional de Coagulação e Doena§as Hepa¡ticas, realizado na Universidade de Groningen (Holanda).

 

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