Saúde

Vacina éassunto da ciaªncia, não da pola­tica
Cra­ticas infundadas contra a CoronaVac alimentam movimento antivacina e provocam prejua­zos imensos a  saúde pública do Paa­s
Por Herton Escobar - 14/11/2020


CoronaVac, vacina produzida pelo Butantan - Foto: GOVESP

O presidente Jair Bolsonaro indignou a sociedade novamente esta semana com mais uma declaração de desrespeito a  vida, a  saúde pública e a  ciência Em uma postagem de seu perfil oficial no Facebook, na tera§a-feira (10 de novembro), ele celebrou como uma vita³ria o fato de os testes clínicos da vacina CoronaVac, conduzidos pelo Instituto Butantan, terem sido suspensos por causa da morte de um participante do estudo. A paralisação da pesquisa durou apenas um dia, mas os danos causados pela contaminação pola­tica do episãodio tendem a ser muito mais profundos e duradouros do que isso, segundo especialistas que monitoram a evolução do discurso antivacinal no Brasil.


“Essa declaração do presidente, considerando o alcance que ele tem nas plataformas digitais, éalgo sem paralelo na história do movimento antivacinas no Brasil”, diz o pesquisador Joa£o Rafael, analista de comunicação do Instituto de Estudos Avana§ados da USP em Ribeira£o Preto (IEA-RP) e idealizador da Unia£o Pra³-Vacina (UPV), uma iniciativa multi-institucional de monitoramento e combate a  desinformação sobre vacinas. 

A repercussão do episãodio nas ma­dias bolsonaristas simboliza uma crescente incorporação do discurso antivacinas — antes restrito a pequenos grupos radicais nas redes sociais — por movimentos pola­ticos mais amplos, com um poder de influaªncia muito maior sobre a opinia£o pública e, consequentemente, sobre as políticas públicas de saúde relacionadas a  imunização, avalia Rafael. O tema deixa de ser tratado como uma questãocienta­fica — que éa sua verdadeira natureza — para ser discutido como uma questãode ideologia pola­tica.

A maneira atravessada como a decisão da Anvisa chegou a  sociedade — noticiada pela imprensa, na noite de segunda-feira, antes mesmo de a agaªncia ter se reunido com o Butantan para discutir o assunto — também contribuiu para alimentar a polaªmica, dando margem para todo tipo de especulações sobre a segurança da vacina e interferaªncias políticas no processo. Em vez de uma comunicação oficial bem contextualizada, o que se viu no dia seguinte foi um confronto paºblico de narrativas apresentadas pelo Butantan e Anvisa, ao mesmo tempo em que a imprensa revelava dados sobre a causa da morte do volunta¡rio (um aparente caso de suica­dio, ou overdose) e repercutia a fala de Bolsonaro no Facebook.

Nãofoi a primeira vez que Bolsonaro se referiu de maneira depreciativa a  vacina do Butantan, que foi originalmente desenvolvida na China, pela empresa Sinovac, e estãosendo testada agora no Brasil, em parceria com o instituto paulista. Cerca de 10 mil voluntários já receberam a vacina, que éconsiderada uma das mais promissoras no mundo para ajudar no combate a  pandemia do novo coronava­rus. O pra³prio Ministanãrio da Saúde chegou a anunciar um acordo para a aquisição de 46 milhões de doses da vacina, em 20 de outubro, mas Bolsonaro desautorizou a compra no dia seguinte, dizendo que o povo brasileiro não seria “cobaia” da “vacina chinesa de Joa£o Doria”. Os ataques derivam do fato de os testes com a vacina no Brasil terem sido negociados pelo governador paulista, que se elegeu como aliado mas agora éadversa¡rio pola­tico de Bolsonaro.

Se as cra­ticas atéagora vinham embrulhadas numa conotação mais xenofa³bica, no sentido de desmerecer a vacina pelo fato de ela ser chinesa, a declaração de que a CoronaVac pode causar “morte, invalidez, anomalias” eleva a gravidade do discurso a um patamar especialmente preocupante, segundo Rafael.

Ainda que os dados cienta­ficos e a cobertura da imprensa profissional desmintam sistematicamente essas afirmações, diz o pesquisador do IEA-RP, o simples fato de elas serem veiculadas na ma­dia contribui para pautar o debate social e semear daºvidas na opinia£o pública sobre a segurança da vacina. Ele compara o caso ao do médico brita¢nico Andrew Wakefield, que em 1998 publicou um estudo fraudulento, dizendo que vacinas causavam autismo. Mesmo décadas depois de o estudo ter sido provado falso, o mito de que as vacinas podem causar autismo em criana§as permanece vivo nos meios digitais e no imagina¡rio popular.

Da mesma forma, mesmo que não haja qualquer evidência de que a morte do volunta¡rio possa ter relação com a vacina, a simples suposição do fato já foi suficiente para suscitar diversas teorias especulativas (sem qualquer embasamento cienta­fico) de que a “vacina chinesa” poderia induzir a  depressão e levar as pessoas a se suicidar. Teorias, essas, que podera£o perseguir a CoronaVac por muito tempo, não importa quanto descabidas sejam. “Esse pode ser o caso Wakefield do Brasil”, avalia Rafael.

O prejua­zo não ésão para a CoronaVac. “a‰ claro que essa desconfianção vai respingar em outras vacinas”, diz o médico e pesquisador JoséGallucci Neto, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Cla­nicas da Faculdade de Medicina da USP. Querendo ou não, diz ele, o presidente estãocontribuindo para o crescimento do movimento antivacina no Brasil. “Qualquer discurso que gere uma hesitação da população em se vacinar pode se considerado parte do movimento antivacina”, diz. Especialmente, diz ele, quando esse discurso parte da autoridade máxima da nação. “Mesmo que não seja uma agenda expla­cita, ele estãocontribuindo para isso.” 

A hesitação em se vacinar éclassificada pela Organização Mundial da Saúde como uma das 10 maiores ameaa§as a  saúde pública mundial. As vacinas previnem a morte de 2 milhões a 3 milhões de pessoas por ano, segundo a agaªncia.

Isso tudo acontece num momento especialmente preocupante, em que a cobertura vacinal no Brasil já estãoabaixo da meta para diversas doenças infecciosas extremamente perigosas, como o sarampo, tuberculose e poliomielite. Um problema que vem se ampliando hácinco anos, e que tende a se agravar ainda mais este ano em função da pandemia, que manteve as pessoas afastadas do sistema de saúde. Segundo dados divulgados em outubro pelo Ministanãrio da Saúde, as coberturas vacinais não atingem nenhuma meta no calenda¡rio infantil desde 2018.

Nesse cena¡rio, háum risco cada vez maior do retorno de doenças já consideradas erradicadas pela vacinação, como já ocorre com o sarampo no Brasil. O discurso presidencial adotado nas últimas semanas, de questionar a obrigatoriedade da vacinação e levantar daºvidas sobre a segurança das vacinas, são piora essa situação. 

Panorama global

A CoronaVac éapenas uma entre 12 vacinas contra a covid-19 que passam atualmente pela etapa final de testes em seres humanos (a chamada Fase 3). Esses testes são feitos com milhares de pessoas, em váriospaíses, justamente para testar a segurança e a eficácia de cada vacina, e éabsolutamente normal que os projetos sofram paralisações tempora¡rias para a avaliação de possa­veis efeitos adversos — que podem ou não ter relação com a vacina.

Além da CoronaVac, três outras vacinas estãoem teste no Brasil, com aval da Anvisa. Uma delas, patrocinada pelo governo federal, foi desenvolvida pela empresa AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford. As outras duas são das empresas Pfizer e Janssen. Os testes da vacina da AstraZeneca/Oxford e da Janssen também sofreram paralisações para averiguação de efeitos adversos, e depois foram retomados.

Importante enfatizar que uma vacina não substitui a outra. Especialistas ressaltam que nenhuma dessas vacinas serácapaz de frear a pandemia sozinha, no curto prazo; e ter mais de um imunizante dispona­vel seráessencial para proteger o maior número de pessoas, o mais rápido possí­vel, e alcana§ar a tão desejada imunidade coletiva (“de rebanho”). A conclusão dos testes clínicos e a aprovação dessas vacinas — se comprovadas sua eficácia e segurança —  são o aºnico caminho para a superação definitiva da pandemia. Que isso ocorra no menor tempo possí­vel éa esperana§a de todos nós.

 

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