Saúde

Sars-cov-2 inibe remoção de células mortas pelo sistema imune, favorecendo o dano pulmonar
A pesquisa da Faculdade de Medicina de Ribeira£o Preto esclarece o desequila­brio no sistema de defesa que leva ao agravamento da covid-19
Por Karina Toledo - 26/03/2021


Reprodução

Já épraticamente consenso entre os cientistas que o agravamento da covid-19 estãorelacionado com um desequila­brio na resposta imune ao sars-cov-2. No entanto, ainda não se sabe exatamente quais componentes do sistema de defesa estãoatuando de forma desregulada nesses casos e por que isso acontece. Em estudo divulgado na plataforma meRxiv, pesquisadores da USP sugerem respostas para uma parte do quebra-cabea§a.

No artigo, ainda não revisado por pares, os autores descrevem como o contato com o novo coronava­rus altera o funcionamento do macra³fago osuma espanãcie de “gari” do sistema imune encarregado de eliminar, por meio da fagocitose, restos de células mortas e outraspartículas estranhas ao organismo.

Por meio de experimentos in vitro, os cientistas descobriram que, ao internalizar uma canãlula infectada pelo sars-cov-2 ainda ativo, o macra³fago passa a produzir quantidades excessivas de moléculas pra³-inflamata³rias, o que pode contribuir para o quadro conhecido como tempestade de citocinas, observado em pacientes com a forma grave da doena§a. Além disso, de acordo com o estudo, a internalização de uma canãlula morta infectada reduz em até12 vezes a capacidade do macra³fago de reconhecer e fagocitar outras células mortas que eventualmente surgirem em seu caminho.

“Milhaµes de células morrem em nosso organismo todos os dias e elas precisam ser eliminadas de forma eficiente. Caso contra¡rio, poderiam ser interpretadas como um sinal de perigo ou gerar autoanta­genos, favorecendo o surgimento de doenças autoimunes. No caso do pulma£o afetado pelo sars-cov-2, a remoção conta­nua das células mortas pelos macra³fagos éessencial para a regeneração do tecido. Se a presença do va­rus em uma canãlula fagocitada subverte essa função dos macra³fagos, possivelmente contribui para o dano tecidual extenso caractera­stico da covid-19”,

diz Larissa Cunha, professora da Faculdade de Medicina de Ribeira£o Preto (FMRP) da USP e coordenadora da pesquisa, que contou com financiamento da Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp).

Evidaªncias preliminares

Os primeiros testes descritos no artigo foram feitos com duas linhagens de células epiteliais osuma origina¡ria de pulma£o humano (Calu-3) e outra de rim de macaco (Vero CCL81, um dos principais modelos para estudo do sars-cov-2) –, que foram infectadas in vitro com o novo coronava­rus. Os pesquisadores observaram que a infecção ativa na canãlula epitelial um processo conhecido como apoptose osum tipo de morte celular programada que, normalmente, não desperta uma resposta inflamata³ria no organismo.

Paralelamente, em outro conjunto de células epiteliais, os pesquisadores induziram a apoptose por meio de radiação ultravioleta.

As células apopta³ticas de ambos os grupos (infectadas com o coronava­rus e expostas a  radiação) foram coletadas e colocadas para interagir com culturas de macra³fagos derivados de mona³citos humanos (um dos tipos de leuca³citos do sangue).

Como esperado, ao internalizar as células mortas pela radiação, os macra³fagos assumiam um fena³tipo anti-inflamata³rio, que favorece a reparação do tecido lesado. Já quando fagocitavam as células que continham o sars-cov-2 ainda via¡vel (capaz de infectar outra canãlula) essa programação se perdia e os macra³fagos passavam a secretar altas quantidades de moléculas pra³-inflamata³rias, como a interleucina 6 (IL-6) e a interleucina 1 beta (IL-1β).

“Nossos resultados fornecem evidaªncias de que o englobamento de células moribundas que carregam o sars-cov-2 via¡vel muda a programação anti-inflamata³ria e resolutiva [da inflamação] em direção a um fena³tipo inflamata³rio. A exacerbada produção de citocinas observada em resposta a  internalização de células mortas infectadas pode contribuir para a hiperinflamação associada a  covid-19”,

afirmam os autores no artigo.

Imagens de imunofluorescaªncia de tecido pulmonar obtido por meio de auta³psia —
a  direita, paciente que morreu por complicações da covid-19 e a  esquerda, de falecido
por causa não relacionada. A cor azul representa o núcleo das células, a verde um
marcador (S1009) de mona³citos e macra³fagos infiltrados no tecido e a vermelha, do
receptor CD36. Macra³fagos e mona³citos que expressam tanto S1009 e CD36 aparecem
em amarelo pela sobreposição dos dois osFoto: Reprodução/
Alexandre Fabro e Edismauro Freitas-Filho

Eficiaªncia prejudicada

Na etapa seguinte, investigou-se o que acontecia com a expressão gaªnica do macra³fago após ele fagocitar uma canãlula apopta³tica infectada pelo sars-cov-2. Observou-se queda na expressão de genes-chave para a atividade da canãlula de defesa, entre eles TIM4, SRA-I, CD36 e ITGB5.

“Esses genes codificam receptores [protea­nas] que ficam na membrana do macra³fago e reconhecem uma substância chamada fosfatidilserina, considerada o sinal universal de morte celular”, conta Larissa.

Como explica a pesquisadora, esse fosfolipa­deo costuma estar presente na parte interna da membrana celular, mas quando as células morrem a fosfatidilserina passa para asuperfÍcie externa, podendo então ser detectada pelo macra³fago por meio de receptores como TIM4 e CD36.

“Para promover o reparo eficiente de lesões e evitar o acaºmulo de material necra³tico no organismo, os macra³fagos devem ser capazes de reconhecer e remover continuamente as células mortas, uma na sequaªncia da outra. Contudo, nossos experimentos mostraram que, ao internalizar uma canãlula apopta³tica que contanãm o sars-cov-2, essa capacidade fagoca­tica ésignificativamente reduzida”,

conta Cunha.

Quando células epiteliais mortas por radiação foram colocadas nas culturas de macra³fagos, aqueles que haviam tido contato prévio com células infectadas pelo va­rus se mostraram 12 vezes menos capazes de cumprir a função de limpeza.

Em outro teste, uma cultura de macra³fagos humanos foi infectada diretamente pelo sars-cov-2. Tambanãm nesse caso houve redução da atividade fagoca­tica, mas de apenas duas vezes.

Canãlulas de pacientes

Ana¡lises feitas em amostras sanguíneas de pacientes com covid-19 moderada ou severa oscoletadas no dia da internação osapontaram altos na­veis de moléculas pra³-inflamata³rias, como IL-6, IL-1β, além de interleucina 8 (IL-8) e interleucina 10 (IL-10). Tambanãm foi observado, em comparação com o sangue de voluntários sadios, um aumento na proporção de mona³citos circulantes (leuca³citos que da£o origem aos macra³fagos) e, nesse grupo de células, uma maior proporção de mona³citos com fena³tipo pra³-inflamata³rio.

A análise de expressão gaªnica indicou que os mona³citos dos pacientes com covid-19 expressavam em menor quantidade os receptores CD36, SRA-I, ITGB5 e TIM4, quando comparados aos mona³citos dos voluntários sadios. E, quanto mais graves eram os sintomas relatados no momento da admissão hospitalar, mais acentuada era a queda na expressão dos receptores fagoca­ticos, relatam os autores do artigo.

No teste subsequente, os mona³citos dos pacientes com covid-19 foram “desafiados” in vitro com células apopta³ticas de camundongo. Como esperado, foram bem menos eficientes na tarefa de limpeza do que os mona³citos isolados do sangue de voluntários sadios.

Com auxa­lio de ferramentas de bioinforma¡tica, por meio de uma colaboração com o professor da USP Helder Nakaya, os pesquisadores reanalisaram dados de expressão gaªnica de estudos anteriormente publicados, disponí­veis em bancos paºblicos. A análise confirmou que, nos pacientes com a forma grave da covid-19, a redução na expressão dos genes que promovem fagocitose de células mortas bem mais acentuada do que nos doentes com sintomas leves.

Por último, foram analisadas células de defesa infiltradas em amostras de pulma£o de pessoas que morreram de covid-19, obtidas por meio de auta³psia. “Olhamos para células mononucleares que haviam sido recrutadas da circulação para combater o va­rus no pulma£o. Tambanãm nesse caso observamos queda na expressão dos receptores, o que sugere que essas células de defesa estavam com a capacidade fagoca­tica comprometida”, conta Cunha.

Segundo os autores, a falha na remoção de células mortas pode contribuir para o extenso dano aos tecidos observado nos pulmaµes de pacientes com covid-19. “Isso, dentre outros fatores, pode favorecer complicações respirata³rias desenvolvidas por indivíduos com a forma grave da doença e aumentar a suscetibilidade a infecções bacterianas secunda¡rias”, concluem.

O trabalho contou com a participação da equipe do Centro de Pesquisa em Doena§as Inflamata³rias (Crid) osum Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da Fapesp –, além de médicos e pesquisadores do Hospital das Cla­nicas da FMRP. Entre os autores do artigo estãoos professores Fernando Q. Cunha, Alexandre T. Fabro, Helder Nakaya, Dario S. Zamboni, Paulo Louzada-Junior e Rene D. R. Oliveira.

O artigo Efferocytosis of SARS-CoV-2-infected dying cells impairs macrophage anti-inflammatory programming and continual clearance of apoptotic cells pode ser lido neste link.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licena§a Creative Commons CC-BY-NC-ND.

 

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