Saúde

Covid-19: artigo defende nova classificação para a doena§a
Especialistas de diversas áreas dizem, em artigo na revista cienta­fica da Fiocruz, que a doença vai muito além dos quadros pulmonares
Por Maíra Menezes - 14/04/2021


Imagem mostra celula infectada pelo Sars-CoV-2 (em roxo), nos EUA Foto: HANDOUT / AFP

Diversos va­rus, incluindo os causadores da dengue e da febre amarela, podem prejudicar a coagulação, provocando sangramentos nos casos mais graves. Por esse motivo, esses agravos são considerados febres virais hemorra¡gicas. Em um artigo recanãm-publicado na revista cienta­fica Mema³rias do Instituto Oswaldo Cruz, um grupo de dez pesquisadores defende que o novo coronava­rus (Sars-CoV-2) seja o primeiro agente reconhecido por atuar no sentido contra¡rio: aumentando a formação de coa¡gulos (também chamados de trombos) que podem obstruir a circulação. Considerando as evidaªncias de hipercoagulação na doena§a, os autores propaµem que a Covid-19 seja a primeira infecção classificada como febre viral tromba³tica. Atualmente, o agravo éclassificado como Sa­ndrome Respirata³ria Aguda Grave (SRAG).

O estudo éassinado por especialistas em terapia intensiva, cardiologia, hematologia, virologia, patologia, imunologia e biologia molecular, que atuam em seis instituições de assistaªncia médica e pesquisa cienta­fica no Brasil. Sa£o elas: Hospital Pra³-Carda­aco, Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Faculdade de Medicina de Petra³polis (Unifase), Instituto Nacional do Ca¢ncer (Inca), Instituto Carlos Chagas (Fiocruz Parana¡) e United Health Group. No IOC/Fiocruz, participam os Laborata³rios de Virologia Comparada e Ambiental, de Aids e Imunologia Molecular, de Inflamação, de Patologia e de Imunofarmacologia.

Evidaªncias cienta­ficas

Quase um ano após o surgimento do novo coronava­rus na China, diversos estudos mostram que, ao contra¡rio do que se pensava no começo da pandemia, a Covid-19 vai muito além dos quadros pulmonares. Na Holanda, um levantamento identificou complicações ligadas a  formação excessiva de coa¡gulos em 16% dos pacientes em unidades de terapia intensiva, incluindo casos de embolia pulmonar, acidente vascular cerebral e trombose venosa. Em uma pesquisa francesa, o a­ndice passou de 40%. Além disso, em pessoas que morreram devido a  infecção, análises constataram danos significativos ao endotanãlio, tecido que reveste os vasos sanguíneas. As pesquisas indicam que o Sars-CoV-2 infecta as células endoteliais e a inflamação do tecido favorece um estado de hipercoagulação.

“Em pacientes internados, vemos manifestações tromba³ticas a despeito da prática cla­nica usual de tromboprofilaxia [terapia para prevenir a formação de coa¡gulos]. Tambanãm hádescrição de eventos tromboemba³licos após a alta hospitalar, e a formação excessiva de coa¡gulos éobservada nas análises histopatola³gicas em casos de a³bito por Covid-19”, afirma o coordenador da UTI do Hospital Pra³-Carda­aco e primeiro autor do artigo, Rubens Costa Filho.

Para os autores do trabalho, a classificação de febre viral tromba³tica reflete o avanço no conhecimento sobre o agravo e pode contribuir para o manejo cla­nico dos casos e as pesquisas cienta­ficas. “Essa definição coloca em evidência a necessidade de medidas para monitorar e tratar as alterações da coagulação e aponta para questões que precisam ser esclarecidas, como a identificação de biomarcadores de gravidade, que possam ser utilizados para orientar as condutas terapaªuticas”, diz o pesquisador do Laborata³rio de Virologia Comparada e Ambiental do IOC e autor saªnior do estudo, JoséPaulo Gagliardi Leite.

Os pesquisadores explicam, ainda, que a mudança de classificação não impactaria os atuais sistemas de monitoramento que tanto contribuem para a definição de estratanãgias públicas de saúde. “A SRAG éuma nomenclatura utilizada para retratar um acometimento cla­nico inespeca­fico, uma vez que pode abranger uma sanãrie de manifestações. Já a febre viral tromba³tica, representaria uma sa­ndrome especa­fica. Essa definição éfundamental na área da Saúde”, ressalta Costa Filho.

Diagnóstico e alvo terapaªutico

Além de reunir evidaªncias cienta­ficas sobre a hipercoagulação na Covid-19, o artigo discute vantagens e limitações dos exames disponí­veis para diagnosticar o problema e aponta um alvo promissor na busca por terapias. Entre diversos testes, os pesquisadores chamam atenção para o potencial de uma metodologia antiga e de fa¡cil acesso: a tromboelastometria rotacional. Aplicado desde a década de 1940, o exame avalia as propriedades viscoela¡sticas do sangue, contemplando a interação entre plaquetas, células sanguíneas e fatores de coagulação. Estudos recentes demonstram que a técnica écapaz de detectar a hipercoagulação em pacientes infectados pelo Sars-CoV-2.

“Avaliar os parametros de coagulação anã, pelo menos, tão importante quanto avaliar os parametros respirata³rios nos pacientes com Covid-19. A tromboelastometria éum manãtodo de diagnóstico antigo e negligenciado, que deveria ser aplicado nestes casos”, afirma o chefe do Laborata³rio de Patologia do IOC e autor do artigo, Marcelo Pelajo Machado.

Como potencial alvo terapaªutico, o artigo destaca uma enzima viral chamada de MPro. O ponto de partida da proposta éo alto grau de semelhança da enzima com moléculas que ativam a coagulação sanguínea. A descoberta foi realizada em um estudo liderado pela pesquisadora do Laborata³rio de Protea´mica Estrutural e Computacional da Fiocruz-Parana¡, Tatiana Brasil de Souza.

“Na triagem computacional de fa¡rmacos com potencial terapaªutico contra o Sars-CoV-2, observamos que as substâncias que apresentavam as melhores interações com a MPro eram anticoagulantes. Isso nos levou a pesquisar a estrutura da enzima e encontramos uma regia£o conservada com muita similaridade com a trombina e o fator X, substâncias que ativam a coagulação”, relata a pesquisadora, que publicou os resultados do trabalho em junho no peria³dico Mema³rias do Instituto Oswaldo Cruz.

A partir do achado, os pesquisadores planejam realizar experimentos para analisar se a MPro pode contribuir para o quadro de hipercoagulação nos pacientes com Covid-19. “a‰ possí­vel que essa protea­na atue como uma mola propulsora dos fena´menos tromba³ticos e vamos investigar essa hipa³tese”, adianta o pesquisador do Laborata³rio de Imunofarmacologia do IOC, Hugo Castro Faria Neto.

Na biologia do Sars-CoV-2, a MPro tem a função de cortar protea­nas e sua atuação éfundamental para a montagem de novaspartículas virais. Em laboratório, estudos já demonstraram que a inibição da enzima bloqueia a replicação do va­rus. “Os pacientes com Covid-19 ainda sofrem com a falta de tratamentos específicos. Um fa¡rmaco com ação sobre a MPro poderia atuar contra a infecção e ter efeito protetor contra a trombose”, completa Hugo.

Doena§a complexa

Os pesquisadores ressaltam que a Covid-19 éuma doença complexa, com manifestações em diversos órgãos, do cérebro ao aparelho gastrointestinal. A classificação de febre viral tromba³tica baseia-se no impacto comprovado da infecção sobre a coagulação sanguínea, que traz alto risco de morte. No entanto, outros componentes da enfermidade não devem ser esquecidos.

“O comprometimento pulmonar écertamente muito relevante na Covid-19. O que o artigo destaca éque, nos quadros mais graves, de difa­cil tratamento, com exacerbação inflamata³ria grande, hácoagulopatia”, afirma o pesquisador do Laborata³rio de Inflamação do IOC, Marco Auranãlio Martins. “Nãopodemos colocar todas as fichas em um aºnico fator nessa doena§a. Mas não hádaºvida de que a trombose ocorre e pode matar. Esse éum ponto inequa­voco, que precisa ser observado”, completa o pesquisador do Laborata³rio de Imunologia Cla­nica do IOC e professor da Faculdade de Medicina de Petra³polis, JoséMengel.

Considerando os muitos aspectos da fisiopatologia do agravo que ainda não estãoesclarecidos, os autores destacam a importa¢ncia da unia£o entre profissionais que atuam na cla­nica e na pesquisa ba¡sica. “A resposta inicial ao Sars-CoV-2 foi baseada principalmente no que se conhecia de outros coronava­rus humanos, que causam doenças respirata³rias. Mas podemos fazer um paralelo com a zika, quando um novo va­rus da mesma familia do dengue surpreendeu a todos com os quadros de microcefalia. Isso mostra que nunca estamos preparados para um novo pata³geno e a investigação cienta­fica éfundamental para enfrentar esses agravos”, declara o pesquisador do Laborata³rio de Aids e Imunologia Molecular do IOC, Gonzalo Bello Bentancor.

 

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