Michael Iyanaga, autor de “Alegria é devoção”: pesquisa de campo para encontrar as respostas
Em Alegria é devoção, lançamento da Editora da Unicamp, Michael Iyanaga faz uma análise inédita e minuciosa sobre uma das mais significativas manifestações afro-diaspóricas da Bahia: a tradição domiciliar de sambar e cantar para santos de devoção.
O livro resulta de mais de uma década de pesquisas históricas, antropológicas e musicológicas e revela faces da vasta complexidade religiosa e cultural da diáspora africana no Brasil, que aqui perpetuou raízes e até hoje inspira práticas, colocando em questionamento conceitos acadêmicos consagrados como “sincretismo” e “catolicismo popular”.
Jornal da Unicamp – O que o instigou a analisar esse rito do Recôncavo de sambar e cantar para santos de devoção em casa?
Michael Iyanaga – Quando iniciei as minhas pesquisas no Recôncavo, meu principal interesse era o samba. Acompanhava vários grupos de samba de roda e, em 2008, um desses grupos –¬ Os Filhos de Nagô – levou-me para uma reza de São Roque, na zona rural de São Félix. O que presenciei me deixou encantado e confuso. Era um evento numa casa particular, mas cheia de pessoas e, nele, havia vários momentos musicais: cânticos em latim e português, samba de caboclo, sambas em nome de São Roque e São Cosme e, ainda, o samba de roda dos Filhos de Nagô. Para entender o que era aquilo, ao longo da noite, conversei com várias pessoas, que me disseram que aquele era um evento católico, que os caboclos e o samba eram católicos. Eu nunca tinha ouvido falar sobre esse catolicismo que contemplava caboclos e samba. Foi aí que surgiu minha pergunta-guia: o que é isso? Comecei então a procurar estudos acadêmicos e o que encontrei raramente atendia às minhas perguntas básicas sobre a tradição. Entendi que eu teria que partir para a pesquisa de campo para achar minhas respostas.
JU – Além do potencial ineditismo da abordagem, quais outras possibilidades se abriram para a sua ideia inicial de pesquisa?
Michael Iyanaga – Não foi só a aparente “novidade” acadêmica que me convenceu a tomar o assunto como foco da minha eventual tese de doutorado. Isso também cruzava com outros interesses meus: uma tradição não comercial, pessoas musicistas não profissionais, as religiões negras, a história africana, o samba, polêmicas teóricas seculares, entre muitos outros. Ou seja, o estudo da reza trazia para mim uma oportunidade de articular vários interesses profissionais e intelectuais de forma bastante orgânica. Além disso, tinha o lado pessoal também. Eu amo rezar, me alegra. Em especial, o momento da transição da novena para o samba me traz uma alegria tão profunda e tão indescritível que sinto apenas gratidão pelo fato de poder estar ali naquele espaço, com aquelas pessoas, com aquelas vozes.
JU – O livro enlaça temas e áreas diversas: música, arte, religião, tradição, antropologia, história, política. Qual público você quis alcançar com a obra?
Michael Iyanaga – O motivo pelo qual o livro abarca tantas áreas e tantos assuntos é que a tradição em si é assim. Rezar os santos é cantar, é comer, é fazer arte, é celebrar sua própria família e sua própria história. Rezar é pessoal e é comunitário. É sociedade e é política. Ou seja, um estudo que não contemplasse esses vários aspectos – mesmo que de forma incompleta – perderia muito do sentido da própria tradição. Com o livro, portanto, pretendo levar os leitores e as leitoras a esse mundo, onde a música se encontra com a fé e a história, a arte e a comida, tudo de forma mais que orgânica. Por essa razão, fiz questão de incluir as gravações de áudio neste livro, pois queria que os leitores e as leitoras pudessem se sentir um pouco mais dentro das rezas. O público-alvo são as pessoas interessadas na tradição baiana de rezar, em suas várias facetas.
JU – Apesar do viés acadêmico, você acredita que o livro vai despertar o interesse de um público mais amplo?
Michael Iyanaga – Apesar de ser um livro acadêmico, que de fato dialoga com discursos disciplinares e discussões teóricas, evitei ao máximo escrever com palavras que criassem aquele famoso exclusivismo da escrita acadêmica. Não só porque assuntos como música, religião, arte, história negra e africana interessam a muitas pessoas que não fazem parte do sistema universitário, mas também porque eu quis que o livro fosse lido pelas pessoas que rezam ou que são devotas. E muitas dessas não são acadêmicas.
JU – Qual foi a maior contribuição da sua experiência em campo, em real contato com os devotos, para a escrita da obra?
Michael Iyanaga: Não é exagero dizer que sem a pesquisa de campo este livro teria sido impossível. Eu não teria conseguido nenhuma resposta às perguntas que tinha sobre a tradição sem conversar com as pessoas que a fazem. Mas a pesquisa não era apenas um monte de conversas e entrevistas. Era também um diálogo no qual eu compartilhava minhas ideias com os devotos e as devotas. Ainda, uma compreensão maior veio pela minha constante participação na tradição. Eu aprendi a acompanhar o canto e o samba, a cozinhar certas comidas, a enfeitar a casa. Com efeito, um dos principais pressupostos epistemológicos da etnografia é que se aprendem “fatos” por meio da experiência. E é essa verdade etnográfica, humana, experiencial que procurei apresentar no livro.
JU – No Brasil, constata-se que as religiões que mais são alvos da intolerância religiosa e da discriminação são aquelas de matriz africana. Você acredita que a publicação de obras como a sua pode contribuir para a promoção do respeito?
Michael Iyanaga – Eu não sou iludido a ponto de achar que mil livros acadêmicos seriam capazes de mudar a situação lamentável e muitas vezes criminosa da intolerância religiosa no país. Porém, creio que a intolerância e a discriminação nascem em grande parte da ignorância e do preconceito, além de da desumanização social das pessoas e das tradições negras. Assim, acredito que valorizar e melhor entender as tradições negras – afro-diaspóricas especificamente, ou seja, aquelas cujas matrizes encontram-se na África – contribui para o combate à intolerância e à discriminação religiosa. O preconceito contra essas religiões é um dos tristes legados do colonialismo. Espero que, ao mostrar que as devoções católicas no Recôncavo têm uma ligação histórica africana (parte em razão do cristianismo africano secular), as pessoas possam repensar os preconceitos e ideias fechadas sobre o Brasil, a África e as religiões chamadas “afro”.
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Serviço:
Título: Alegria é devoção
Autor: Michael Iyanaga
Páginas: 344
Formato: 16 X 23 cm
Editora da Unicamp