Pesquisa sobre técnica inusitada de sobrevivência de escorpiões rende Prêmio IgNobel a cientistas da USP
Escorpiões do gênero Ananteris perdem a cauda para escapar de predadores. Eles sobrevivem, mas passam o resto da vida sem defecar. Mesmo assim, se reproduzem e geram filhotes. O estudo apresenta as conclusões de forma criativa, através de uma...
Pesquisadores da USP ganharam o prêmio por pesquisa sobre hábitos de escorpiões - REPRODUÇaO/YOUTUBE/IMPROBABLE RESEARCH
Camarão que dorme, a onda leva. Já um escorpião que perde a cauda nem sempre morre. Algumas poucas espécies conseguem não apenas sobreviver sem ela, como acasalam e geram filhotes. Um fato estranho, dado que a cauda contém boa parte do intestino desses animais. O único inconveniente é não conseguir defecar pelo resto da vida, mas antes constipado do que morto. É como se vivêssemos sem o nosso abdômen (e, consequentemente, sem o ânus). Isso ocorre com os escorpiões do gênero Ananteris: eles se automutilam para escapar dos predadores e, como consequência, passam o resto da vida com prisão de ventre. De qualquer forma, é uma habilidade extremamente vantajosa quando a outra alternativa seria a morte.
Essa descoberta foi feita há 12 anos por Solimary García Hernández, uma jovem cientista colombiana que, mais recentemente, resolveu estudar essa vantagem evolutiva durante o doutorado no Instituto de Biociências (IB) da USP. Para sua surpresa, ela e seu orientador, o professor Glauco Machado, do IB, foram convidados para receber o Prêmio IgNobel de 2022 na categoria Biologia, entregue em cerimônia on-line realizada em 15 de setembro. Como prêmio, eles ganharam uma nota de 10 trilhões de dólares do Zimbábue, moeda hiperdesvalorizada que foi descontinuada em 2008. Além do dinheiro, os pesquisadores receberam um troféu das mãos de Jerome Isaac Friedman, vencedor do Prêmio Nobel de Física em 1990.
O Prêmio IgNobel tem como objetivo fazer as pessoas rirem e depois pensarem. “Quem faz ciência ou quem conhece um cientista de perto vai perceber que são pessoas normais, que também dão risadas, que fazem piadas, que não tem por que ser tão sérias”, comenta a vencedora.
O matemático Marc Abrahams criou a condecoração em 1991 para estimular o interesse do público por ciência e tecnologia. Desde então, dez prêmios em diferentes áreas do conhecimento são entregues anualmente no mês de setembro por laureados com o Prêmio Nobel. As cerimônias ocorrem na Universidade de Harvard, mas, nos últimos anos, a premiação foi feita inteiramente on-line devido à pandemia de covid-19.
A professora Maria Mercedes Martinez Okumura, do IB e membro do comitê de seleção dos ganhadores do prêmio, acha importante frisar que, diferentemente da maneira que acaba sendo divulgado em alguns veículos de comunicação, “o IgNobel não é equivalente ao Framboesa de Ouro”, gratificação concedida aos piores do ano no cinema. A prova disso é que o físico Andre Geim foi ganhador do IgNobel em 2000 e, dez anos depois, recebeu o Nobel de Física.
Há algumas exceções: J. Danforth Quayle, vice-presidente dos Estados Unidos, recebeu a honraria em 1991 por demonstrar a necessidade da educação científica, melhor do que ninguém, por sua atitude de negação da ciência. “A ideia é que o IgNobel seja algo bom, que você realmente se orgulhe e aproveite para divulgar sua pesquisa. Então sempre perguntamos aos indicados se eles aceitam o prêmio”, pondera a professora Maria Mercedes à reportagem.
Além da divertida condecoração internacional, a tese de Solimary, intitulada Como os escorpiões lidam com a perda permanente de sua “cauda”? já havia sido eleita como a melhor do ano no Programa de Pós-Graduação em Ecologia no IB, em 2020, e indicada pelo departamento para concorrer ao Prêmio Tese Destaque USP e Prêmio Capes de Tese.
O fato mais bizarro no caso dos escorpiões do gênero Ananteris é que eles estavam perdendo a parte posterior do abdômen e, mesmo assim, sobreviviam, caçavam e acasalavam. Essas espécies possuem um conjunto de mecanismos que evitam a perda de fluidos corporais e as infecções logo após o rompimento da cauda, o que, em outros escorpiões, poderia ser fatal. Embora seja uma situação extremamente delicada, a espécie “evoluiu e manteve esse comportamento”, destaca a pesquisadora.
Tanto os machos quanto as fêmeas nessa situação conseguem se reproduzir e, assim, deixar filhotes. Sem o ferrão, eles deixam de caçar grandes presas. Sem o ânus, eles convivem com a constipação e, por isso, ficam mais lentos a longo prazo. Os custos, no entanto, compensam. “Se algum predador pega o escorpião pela cauda e ele se livra dela, ele é capaz de sobreviver. Isso é uma vantagem incrível. Quem morre não deixa filho. É simples assim. A seleção natural é bem cruel nesse sentido”, argumenta o professor Glauco.
Uma descoberta improvável
Os escorpiões possuem a propriedade de fluorescência sob luz ultravioleta, o que auxilia na busca por esses seres à noite, quando eles saem para caçar. Após um curso intensivo sobre escorpiões com o professor Camilo Mattoni, na Universidade Nacional de Córdoba (Argentina), Solimary conseguiu uma lanterna com uma frequência de luz precisa para identificar esses seres.
Em uma de suas incursões próximas à casa dos pais, na região de Santander, na Colômbia, a bióloga coletou uma amostra de uma espécie desconhecida desses aracnídeos, que foi batizada pelos taxônomos como Ananteris solimariae. “Como Solimary não é um nome muito comum, colocaram o meu nome mesmo. Só muda um pouquinho”, conta a bióloga, que a partir de então criou um laço afetivo: “Você cria um vínculo com um escorpião que tem o seu nome.”
Pouco tempo depois, colegas dela notaram que alguns desses escorpiões perderam a cauda. Como a coleta é feita com pinça e os animais são bastante frágeis, imaginava-se, a princípio, que a coleta seria a responsável por essas mutilações. A cientista resolveu então coletar uma nova amostra e percebeu que o rompimento era voluntário e, além do mais, que isso não os afetava tanto, contrariando a literatura a respeito.
Ao serem capturados, os Ananteris se agarram ao chão e balançam o corpo para os lados. Logo, eles soltam a cauda e correm. A descoberta foi publicada pela bióloga e outros pesquisadores em 2015. Durante o doutorado, ela publicou mais três artigos, mas dessa vez comparando o desempenho de exemplares da espécie Ananteris balzani com e sem cauda na corrida, na caça e no acasalamento. Os escorpiões estudados podem ser encontrados no território da Argentina, do Paraguai e do Brasil.
Para divulgar os resultados obtidos nos artigos, o professor Glauco propôs que a introdução e a conclusão da tese fossem feitas em quadrinhos. A HQ completa pode ser lida em português, espanhol e inglês. Para a apresentação no IgNobel, Solimary também costurou um escorpião de pelúcia que solta um pedaço da cauda. “Foi bom ter uma forma de explicar além das palavras. Visualmente é mais chamativo também”, justifica a pesquisadora, que teve apenas três minutos para apresentar a sua descoberta na cerimônia.
Novas fronteiras abertas
Ainda existem muitas perguntas em aberto sobre essa característica evolutiva dos Ananteris. Os escorpiões, a exemplo das aranhas, têm pulmões formados por lâminas localizadas na região abdominal. O professor explica que “o processo de constipação fazia com que a área de captação de oxigênio diminuísse”, mas seria necessária uma parceria com institutos e pesquisadores que tenham equipamentos específicos para investigar esse aspecto. Com a divulgação propiciada pela premiação, novas descobertas que não envolvam necessariamente a área comportamental podem surgir.
Atualmente, Solimary faz experimentos em campo com fêmeas em uma espécie de opilião, um outro grupo de aracnídeos presentes na Mata Atlântica, para entender os efeitos da disponibilidade de alimento na fecundidade, em seu pós-doutorado no Departamento de Ecologia do IB. Seu trabalho de mestrado também está sendo preparado e deve ser publicado em breve. A dissertação investigou os aspectos macroecológicos envolvendo tesourinhas, um inseto fino com duas garrinhas no final do corpo, conhecido também como lacrainha. Ela continuará estudando os artrópodes, já que eles permitem responder muitas perguntas sobre ecologia evolutiva e comportamental.
Algumas precauções
A introdução da tese enfatiza que não há necessidade de matar todo e qualquer escorpião. Isso porque estimativas apontam que apenas cerca de 2,5% das espécies conhecidas têm o poder de causar danos severos aos seres humanos. Por se alimentarem de insetos que poderiam levar doenças aos lares, os escorpiões estão prestando um serviço para os seres humanos, na maioria das vezes. O ideal, segundo os pesquisadores, seria recolher o animal com cuidado, usando algum utensílio, para fotografá-lo ou encaminhá-lo presencialmente a um serviço especializado. Locais como o Instituto Butantan e os serviços municipais de zoonoses saberão dar a orientação sobre como proceder em cada caso. Por via das dúvidas, se uma pessoa for picada, o melhor é procurar um médico imediatamente.
“Tem um monte de gente que acha que aracnídeo se mata com inseticida”, alerta Glauco Machado. Segundo ele, os inseticidas acabam matando os insetos, que são a comida dos escorpiões e aranhas. Quando isso acontece, a chance de encontrá-los aumenta, pois eles entram nas casas, nas botas e nos sapatos em busca de alimento que não encontram fora dos lares. De acordo com o pesquisador, esse foi um dos motivos da infestação de aranhas-marrons em Curitiba, cidade que enfrenta esse problema há décadas e concentrou 27% dos acidentes com aranhas no Brasil entre 2017 e 2021.
Contatada pela reportagem, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) de São Paulo informou que todo escorpião oferece risco em potencial para a população e pode ser extremamente perigoso, principalmente para crianças. A orientação da Divisão de Zoonoses da SES é para que se evite ao máximo o manuseio desses animais, pois foram registrados cerca de 20 mil acidentes relacionados a escorpiões no Estado somente neste ano. Em casos de acidentes causados por animais peçonhentos, deve-se procurar o serviço de saúde mais próximo para receber o tratamento o mais rápido possível.