Tecnologia Científica

A geladeira do futuro
Modelo computacional desenvolvido por fa­sicos da Unicamp em cooperaça£o com pesquisadores americanos e chineses contribuiu para artigo publicado em outubro na Science
Por Carmo Gallo - 28/11/2019


Professores Alexandre Fontes da Fonseca e Douglas Soares Galva£o, do Departamento de Fa­sica Aplicada do IFGW

A descoberta de que o resfriamento dos alimentos permitia conserva¡-los por maior tempo remonta aos prima³rdios da historia da humanidade. Mas somente no século XIX um inventor inglês desenvolveu um compressor capaz de solidificar a a¡gua, produzindo gelo artificialmente, o que favoreceu a produção de alimentos e sua comercialização para centros distantes. Já no inicio do século XX surgiram nos EUA aparelhos de ar-condicionado capazes de controlar a umidade do ambiente e resfria¡-lo. A partir da segunda década do mesmo século começam a tornar-se populares nopaís os refrigeradores domanãsticos.  Nas geladeiras atuais, fundamentalmente, em um sistema adequado, um gás, submetido a  compressão, liquefaz-se, resfriando-se, em uma serpentina situada junto ao congelador, de onde absorve calor, resfriando o compartimento e voltando ao estado gasoso.  A repetição desse ciclo garante a manutenção do sistema de refrigeração. A descoberta deste sistema de refrigeração permitiu a produção de alimentos em escala e ampliou sobremaneira suas condições de comercialização.

Imagine-se agora a possibilidade de substituir este ciclo na refrigeração pela torção e distorção continua de um fio de borracha, ou de polietileno (fio de pesca), ou de uma liga meta¡lica de na­quel-tita¢nio, aproveitando o resfriamento que ocorre nesses materiais, durante esse processo. Explique-se: ao serem enrolados esses materiais esquentam, em seguida entram em equila­brio tanãrmico com o meio ambiente e ao serem desenrolados esfriam, quando então podem ser utilizados para retirar calor do congelador. Para isso, bastaria uma engenharia que garantisse um ciclo de torções e distorções. Nãoédifa­cil imaginar que a reposição dos atuais gases de refrigeração, que com o tempo escapam das serpentinas, seria substitua­da pela troca do elemento do novo circuito em que ocorrem as torções/distorções dos materiais utilizados quando ocorresse sua exaustão, a exemplo do que se faz hoje com a troca de resistências nos chuveiros elanãtricos.

Esse novo sistema de refrigeração, de maior eficiência e baixo custo face ao menor consumo de energia elanãtrica, garantiria resfriamentos em grande e pequena escala e possibilitaria a substituição de gases de refrigeração, que contribuem para o aumento da poluição atmosfanãrica, do aquecimento global e do efeito estufa.  Para sua viabilidade hánecessidade do desenvolvimento de uma engenharia de ma¡quinas refrigeradoras com eficiência na transferaªncia de calor entre o material refrigerante sãolido (borracha, polietileno, liga na­quel-tita¢nio) e o meio a ser resfriado, bem como desenvolver ciclos termodina¢micos rápidos.

A viabilidade do emprego deste processo na refrigeração foi mostrada em artigo publicado na revista Science, em outubro (https://doi.org/10.1126/science.aax6182), que teve a contribuição dos trabalhos desenvolvidos pelos professores Alexandre Fontes da Fonseca e Douglas Soares Galva£o, do Departamento de Fa­sica Aplicada, do Instituto de Fa­sica Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, realizados em cooperação com um grupo de pesquisadores da China e outro dos EUA. O Dr. Ray H. Baughman, que lidera toda a equipe, édiretor do Alan G. MacDiarmid NanoTech Institute, University of Texas at Dallas, USA. O grupo chinaªs tem o comando do Dr. Zunfeng Liu, do State Key Laboratory of Medicinal Chemical Biology, College of Pharmacy, Key Laboratory of Functional Polymer Materials, Nankai University, China.

Como funciona

Ha¡ cerca de duzentos anos sabe-se que a borracha natural esticada se aquece, efeito chamado de elastoca¡lorico, desde então muito estudado. Isso ocorre, explica o professor Douglas Galva£o, porque com o estiramento as cadeias polimanãricas que constituem as fibras de borracha se tornam mais organizadas, o que leva a uma diminuição da sua entropia, ou seja, a  diminuição do grau de desordem do sistema molecular.  Se esse processamento érealizado rapidamente, de forma que não haja tempo do material trocar calor com o meio ambiente, em um processo denominado adiaba¡tico, a queda da entropia, em decorraªncia da organização das fibras, deve ser compensada pelo aumento da temperatura do sistema, de acordo com a segunda lei da termodina¢mica, para que a entropia do sistema se mantenha constante em um processo durante o qual nenhuma quantidade de calor étrocada entre o sistema e seu meio. Ocorre que para o estiramento hánecessidade de realizar um trabalho sobre o sistema e éesse fornecimento de energia interna ao sistema que eleva sua temperatura, que na verdade ocorre em decorraªncia do aumento da energia cinanãtica media das moléculas que o constituem. Mas, se logo na sequaªncia a borracha esticada épermitida entrar em equila­brio com o meio ambiente, por ter perdido calor para ele, ao retornar rapidamente a s condições de origem, portanto em um novo processo adiaba¡tico, ocorre uma diminuição da temperatura percepta­vel ao tato. Isso ocorre porque se da¡ o processo inverso. Com efeito, ao ser rapidamente solta ou liberada, a borracha, em um processo também adiaba¡tico, tem a entropia agora aumentada em decorraªncia da volta ao desalinhamento das cadeias polimanãricas que a constituem e inversamente compensa isso com a queda da temperatura. Ou melhor, ao ser liberada, a borracha age sobre o meio externo devolvendo na forma de trabalho a energia interna acumulada durante o estiramento, do que resulta a diminuição da temperatura. Nesse momento, a borracha em contato com um meio que se deseja resfriar retira calor dele, a exemplo do que acontece nos atuais refrigeradores que utilizam gases.

Embora, explica o professor Alexandre Fonseca, o fena´meno independa do tamanho da borracha empregada, sua aplicação prática esbarra em limitações. No estudo publicado na Science foram empregadas borrachas de dois a três cm de comprimento que devem ser esticadas até12 a 18 cm, ou seja, de seis a sete vezes seu tamanho inicial para atingir uma variação de temperatura de dez graus. Para que a refrigeração acontea§a énecessa¡rio o contato entre a fonte fria (a borracha) e a fonte quente a ser resfriada. Portanto, quanto maior a borracha maior asuperfÍcie de contato, o que inviabiliza o processo em vista das limitações impostas pelo tamanho dos refrigeradores. Mas esse seria um problema contorna¡vel com a utilização simulta¢nea de vários ciclos por unidade de tempo, lembra o docente: “A eficiência de uma ma¡quina refrigeradora émedida pelo coeficiente de performance, que resulta da razãoentre o calor extraa­do da regia£o que se pretende resfriar pele energia usada na operação da ma¡quina. Nos refrigeradores comuns esse coeficiente éda ordem de quatro ou cinco e nos bons refrigeradores chega a oito, isto anã, eles retiram oito vezes mais energia do que consomem da rede elanãtrica no mesmo tempo. Mas existem outros fatores a serem considerados, como uma eficiente troca de calor entre a borracha e o meio a ser resfriado. Estes, além de outros, são fatores importantes e que devem ser superados para aumentar a eficiência do processo”.

O pulo do gato

Entretanto, o professor Galva£o considera que o verdadeiro pulo do gato foi dado pelo grupo de Baughman ao descobrir que a torção de um fio de borracha e de alguns outros materiais em substituição ao estiramento podem levar ao mesmo efeito elastocala³rico e atécom maior intensidade. Com a vantagem de não exigir o emprego de fios longos. No caso do fio de pesca, por exemplo, como a torção permite que o material acumule maior “stress” sem romper-se, épossí­vel observar de modo mais significativo o efeito elastocala³rico. Outro achado inanãdito do trabalho publicado foi a medida da intensidade do efeito da torção em uma liga de na­quel-tita¢nio, atéentão não estudado.  A publicação apresenta os efeitos elastocala³ricos em relação a  torção tanto na borracha, como no polietileno e na liga na­quel-tita¢nio. Em tese o modelo desenvolvido pode ser estendido para outros materiais que apresentam o mesmo efeito de forma significativa. O professor Galva£o enfatiza: “A importa¢ncia do trabalho estãoem se ter descoberto um novo efeito baseado em um conhecimento de 200 anos, mostrando a possibilidade de utilizar a torção na refrigeração, o que não tinha ainda sido investigado”.

A figura que segue mostra uma barra com a indicação do ca³digo de cores que vai do azul ao vermelho com a indicação da variação da temperatura nas extremidades. O estado A éo inicial, que corresponde a  temperatura ambiente; o estado B refere-se a  situação em que foi aplicada uma determinada quantidade de torção; o estado C representa o esta¡gio em que a torção foi liberada, mas após a borracha torcida no item B entrar em equila­brio tanãrmico com o meio ambiente.

A figura seguinte mostra o que deve acontecer com a borracha durante o ciclo completo de uma ma¡quina refrigeradora. Em (a) a borracha em equila­brio tanãrmico com o ambiente; em (b) a borracha imediatamente após receber torção; em (c) a borracha torcida após entrar em equila­brio tanãrmico com o ambiente; em (d) a borracha imediatamente após a remoção da torção; e em (e) a borracha destorcida novamente em equila­brio tanãrmico com o ambiente. As cores mais claras correspondem a s maiores temperaturas.


Os grupos americano e chinaªs trabalharam nas determinações experimentais e em alguns aspectos meca¢nicos das estruturas dos fios torcidos.  Na avaliação dos docentes da Unicamp, “nossa contribuição consistiu na elaboração de ca¡lculos por dina¢mica molecular cla¡ssica da diferença de entropia de duas estruturas cristalinas do polietileno com vistas a mostrar a origem do efeito elastocala³rico, pois o material ao ser torcido sofre mudança de fase cristalina. Além disso, contribua­mos com o estudo da termodina¢mica do efeito elastocala³rico e nas discussaµes sobre as interpretações dos resultados. Na verdade nossos ca¡lculos computacionais serviram para apresentar e delinear uma explicação para o efeito observado no polietileno”.

Os docentes esclarecem que o processo ainda não écompetitivo com a utilização do gás nos sistemas de refrigeração utilizados hoje. Seu emprego esbarra ainda em problemas de engenharia, mas principalmente, no desenvolvimento de materiais mais eficientes e adequados ao processo de torção.   O professor Galva£o destaca, entretanto, que com um estudo envolvendo ciência ba¡sica, foi criado um modelo que se mostrou via¡vel e que demanda agora a descoberta de novos materiais e da utilização de uma engenharia eficiente: “éa ciência gerando a possibilidade de novas tecnologias, bem estar, emprego e riquezas”, diz ele.

 

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