Fitofa¡rmaco derivado da maconha pode ter diversas aplicações terapaªuticas. Produto foi criado em parceria com uma indústria farmacaªutica do Parana¡
 Imagem: Luana Franza£o / Jornal da USP
CBD (canabidiol) éuma molanãcula extraada da planta da maconhaÂ
O primeiro extrato de canabidiol desenvolvido no Brasil chegou a s farma¡cias de todo o Paas na semana passada, graças a uma parceria entre a indústria farmacaªutica e cientistas da Faculdade de Medicina de Ribeira£o Preto (FMRP) da Universidade de Sa£o Paulo (USP), que hádécadas pesquisam possaveis aplicações farmacaªuticas para compostos derivados da planta Cannabis sativa — a maconha.
Fabricado pelo laboratório Prati-Donaduzzi, no Parana¡, o produto foi liberado para comercialização pela Agência Nacional de Vigila¢ncia Sanita¡ria (Anvisa) em 22 de abril, e os primeiros lotes foram entregues ao mercado a s vanãsperas do Dia das Ma£es, 10 de maio. Mas não adianta procurar por ele nas prateleiras — a venda estãocondicionada a apresentação de receitua¡rio tipo B (azul), de numeração controlada, a exemplo do que já ocorre com calmantes, antidepressivos e outras substâncias psicoativas, que atuam sobre o sistema nervoso central.
Diferentemente do medicamento Mevatyl (ou Sativex) — aºnico canabidiol disponavel no mercado nacional atéagora, produzido pela brita¢nica GW Pharma —, que tem indicação especafica para o tratamento de espasticidade (contrações musculares involunta¡rias) relacionada a esclerose maºltipla, o produto brasileiro foi registrado como um fitofa¡rmaco (fa¡rmaco de origem vegetal), sem indicação clanica pré-definida. Isso significa que ele pode ser receitado para qualquer condição em que o canabidiol seja considerado potencialmente benanãfico para o paciente.
“A indicação fica a critanãrio do médicoâ€, resume Antonio Zuardi, de 73 anos, professor titular de Psiquiatria da FMRP e um dos pioneiros da pesquisa com derivados da maconha no Brasil e no mundo. A recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM), segundo ele, éque o produto são seja usado de forma “compassivaâ€, depois que todas as alternativas convencionais de tratamento já tiverem sido testadas sem sucesso.
“a‰ uma responsabilidade do médico, compartilhada com o paciente e seus familiares, quando este não tiver condições de decidir sozinhoâ€, explica Jaime Hallak, professor titular do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP, que também participou do desenvolvimento do produto.
O canabidiol (CBD) éuma das várias substâncias presentes na maconha (chamadas canabinoides) que agem sobre o sistema nervoso central (especialmente no cérebro), e que são pesquisadas em laboratórios mundo afora, para uma sanãrie de aplicações terapaªuticas — por exemplo, no tratamento de epilepsia, esclerose maºltipla, doença de Parkinson, esquizofrenia, ansiedade, fobias sociais e vários outros distúrbios psiquia¡tricos e emocionais.
Alguns desses efeitos já são bem comprovados em seres humanos, outros nem tanto; mas as promessas são muitas. Em estudos pré-clínicos, com modelos animais, “ele parece ser bom para quase tudoâ€, diz o pesquisador Francisco Guimara£es, professor titular e orientador da pós-graduação em Farmacologia e Saúde Mental da FMRP. “a‰ realmente impressionanteâ€, completa ele — ressaltando, poranãm, que muitas dessas funcionalidades ainda precisam ser melhor estudadas e comprovadas em ensaios clínicos bem controlados, em seres humanos.
Liderana§a internacional
USP éa instituição que mais publica trabalhos cientaficos sobre canabidiol no mundo
Web of Science (3/01/2020); preparado por A. Zuardi
Porcentagem de publicações por instituição, usando o termo de busca “cannabidiolâ€; considerando todas as áreas (gra¡fico 1) e apenas em Neurociências (gra¡fico 2)
Pioneirismo
O Brasil tem um papel pioneiro na identificação e pesquisa desses canabinoides. O laboratório de Zuardi foi o primeiro no mundo a demonstrar os efeitos ansiolaticos (calmantes) e antipsica³ticos do CBD, ainda nas décadas de 1970 e 1980 — quando o estudo da maconha estava longe de ser essa vedete cientafica da atualidade. Todos os professores que lideram pesquisas nessa área hoje na FMRP são ex-alunos de Zuardi (que continua ativo); e o grupo éatualmente o que mais produz trabalhos cientaficos sobre o canabidiol no mundo.
Os estudos tiveram um boom a partir de 2008, com a criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Translacional em Medicina, que abriu caminho para parcerias com a indústria e com grupos de pesquisa internacionais importantes; entre eles, o do professor Raphael Mechoulam, na Universidade Hebraica de Jerusalém , descobridor do CBD e considerado a maior autoridade cientafica em canabina³ides no mundo.
O produto brasileiro éuma mistura de CBD puro — extraado de plantas de maconha importadas da Europa (porque o plantio no Brasil segue proibido, mesmo para fins terapaªuticos) — com a³leo de milho. A fa³rmula, desenvolvida e patenteada pelos cientistas da USP, em parceria com a empresa, éisenta de tetra-hidrocanabinol (THC), a substância que da¡ o “barato†da maconha, quando a planta éfumada. O THC também tem efeitos terapaªuticos comprovados para algumas aplicações — o Mevatyl, por exemplo, tem mais THC do que CBD —, mas necessita de um controle mais ragido, por conta de seus efeitos colaterais.
Esse desenvolvimento são foi possível graças a uma decisão da Anvisa, de janeiro de 2015, que retirou o CBD da lista de substâncias proibidas no Brasil, reclassificando-a como substância controlada. “O entendimento dos diretores (da Anvisa) foi fundamentado nas indicações técnicas de que a substância, isoladamente, não estãoassociada a evidaªncias de dependaªncia, ao mesmo tempo em que diversos estudos cientaficos recentes tem apontado para possibilidade de uso terapaªutico do CBDâ€, declarou a agaªncia, na ocasia£o. “Com isso, a diretoria entendeu não haver motivos para que o CBD permanea§a proibido.â€
Na sequaªncia, além do trabalho de pesquisa cientafica, o grupo de Ribeira£o Preto participou ativamente das discussaµes sobre regulamentação do uso médico da substância, junto ao Conselho Federal de Medicina.
Foto: Pixabay
Parceria
A parceria com a Prati-Donaduzzi começou ainda antes, em 2014, já prevendo o desenvolvimento de produtos e o depa³sito conjunto de patentes (com retornos financeiros para a universidade), além da realização de ensaios clínicos e a construção de um Centro de Pesquisa em Canabina³ides (um prédio de dois andares, com entrega prevista para agosto deste ano), pago pela empresa, no campus da FMRP.
“Os benefacios da parceria entre Prati-Donaduzzi e USP Ribeira£o Preto são imensura¡veis, pois a sinergia estratanãgica entre instituição pública e privada propiciou a unia£o de recursos para agilizar o desenvolvimento de produtos contendo canabidiol altamente purificado e, principalmente, a realização de ensaios que comprovam a qualidade da formulaçãoâ€, disse ao Jornal da USP o gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa, Liberato Brum Junior.
“Ver essa medicação com uma possibilidade de usos tão grande chegar a farma¡cia anã, realmente, uma satisfação muito grandeâ€, comemora o pesquisador JoséAlexandre Crippa, professor titular de Psiquiatria e chefe do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP.
A mesma formulação aprovada como fitofa¡rmaco estãosendo usada num ensaio clanico de fase três, com 110 criana§as, para testar a eficácia do CBD no tratamento de casos graves de epilepsia refrata¡ria (que não responde aos tratamentos disponaveis). Algumas dessas criana§as, segundo Zuardi, chegam a ter mais de 500 convulsaµes por maªs. Trata-se de um estudo randomizado e duplo-cego, que vai comparar os resultados de criana§as tratadas com o CBD versus placebo — em ambos os casos, sem deixar de aplicar o tratamento padra£o, com as drogas convencionais. Os resultados são esperados para o ano que vem.
Além disso, o pesquisadores trabalham no desenvolvimento de várias moléculas sintanãticas, ana¡logas ao CBD, que permitiriam produzir novos medicamentos sem a necessidade de usar a planta da maconha.