Tecnologia Científica

Nova técnica de detecção de neutrinos épublicada na revista Nature Physics
Os neutrinos são uma das chamadaspartículas elementares, um dos elementos com os quais todas as coisas são feitas.
Por Felipe Mateus - 30/05/2020

Descobertas recentes feitas pela colaboração internacional Double Chooz a respeito da Fa­sica dos neutrinos foram publicadas pela revista Nature Physics, um dos ta­tulos da revista Nature dedicado a  divulgação de pesquisas em Fa­sica. Surgido em 2006, o experimento Double Chooz revelou de forma inanãdita, ainda em 2011, o valor do a¢ngulo de mistura qua¢ntico θ13, uma das propriedades do neutrino que permitem investigar desde a atividade de reatores em usinas nucleares atéhipa³teses a respeito do Big Bang. Agora o grupo anuncia uma nova forma de detectar os neutrinos, o que amplia as possibilidades de pesquisas na área. Entre os membros de váriospaíses que fazem parte da colaboração estãoos pesquisadores da Unicamp Ernesto Kemp, professor do Instituto de Fa­sica Gleb Wataghin (IFGW) e Luis Fernando Gomes Gonzalez, pesquisador volunta¡rio da universidade. 

Colaboração Internacional Double Chooz conta com a participação de pesquisadores
e váriospaíses

Neutrinos: de onde vão, para onde va£o?

Os neutrinos são uma das chamadaspartículas elementares, um dos elementos com os quais todas as coisas são feitas. "Elementar" significa que, de acordo com o que a ciência sabe atéhoje, não épossí­vel dividir uma parta­cula em unidades menores. O neutrino éa segunda parta­cula em mais abunda¢ncia no universo, superado em quantidade apenas pelo fa³ton, a parta­cula das radiações eletromagnanãticas, geralmente associada a  luz. O neutrino foi proposto por Wolfgang Pauli, na década de 1930, como uma solução ao comportamento imprevisto da energia da radiação beta. Já a sua existaªncia foi comprovada em 1956 pelos norte-americanos Frederick Reines e Clyde Cowan. Atéentão, o neutrino já era utilizado em ca¡lculos e estudos, mas apenas como uma hipa³tese da física nuclear e daspartículas elementares.

O neutrino tem como uma de suas caracteri­sticas mais peculiares não compor a matéria em si, ou seja, ele não integra a estrutura interna dos pra³tons, naªutrons e elanãtrons, que se juntam para formar os a¡tomos, moléculas e assim por diante. Entretanto, a existaªncia e estabilidade de núcleos ata´micos égovernada por duas forças fundamentais da natureza, que agem de forma distinta sobre os pra³tons e naªutrons: a força "forte" e a força "fraca". Os nomes são devidos ao seu alcance. A força forte tem um alcance maior, do tamanho do núcleo, enquanto a força fraca atua em distâncias do tamanho dos pra³tons e naªutrons. De modo simplificado, a força forte tenta manter unidos os pra³tons e naªutrons enquanto a fraca tende a transformar naªutrons em pra³tons e vice-versa. 

O neutrino sempre estãoenvolvido quando a força fraca entra em ação. Ou seja, em reações nucleares de fusão, como a que gera a energia das estrelas, entre elas o Sol, e nas de fissão, como as que ocorrem em elementos radioativos de reatores nucleares e bombas. Assim, em toda reação nuclear que forma novos elementos, existe a emissão de neutrinos. a‰ por essa participação constante nas interações que formam a matéria que o estudo dos neutrinos pode revelar informações importantes a respeito de toda a origem e dina¢mica dos elementos da natureza. Essa realidade, levada em conta em pesquisas da área que descrevem as leis fundamentais que formam a matéria, édescrita pelo chamado "modelo padra£o" daspartículas elementares. 

"O modelo padrãodescreve a realidade física que a gente observa de constituição da matéria, radiação e tudo mais. Poranãm, apesar de ser um modelo com sucesso gigantesco na descrição daspartículas e de como elas interagem, ele tem falhas, mais por conta de desconhecimento do que por qualquer outro motivo. Ele apresenta lacunas, pontos em aberto, que ainda precisamos explicar. E esses pontos em aberto podem ser explorados utilizando os neutrinos", explica Ernesto Kemp, professor do IFGW. De acordo com ele, existem fena´menos que ainda não conseguiram ser totalmente explicados pelo modelo padrãoe os neutrinos teriam participação. Por isso, entender os neutrinos abre caminhos para compreender esses fena´menos e as interações envolvidas, o que pode atualizar o pra³prio modelo padra£o.

Por surgirem a partir de interações que resultam em modificações nos núcleos, o estudo dos neutrinos se relaciona em muito com reatores nucleares, já que a base para seu funcionamento anã, justamente, a obtenção de energia a partir da fissão nuclear. Ernesto Kemp explica que o estudo de neutrinos também épossí­vel a partir de outras fontes artificiais, como os aceleradores de partículas No entanto, aceleradores demandam técnicas muito complexas e dispendiosas para que a geração de neutrinos seja propa­cia, o que torna mais simples e menos dispendioso o uso de reatores nucleares. 


Central Nuclear de Chooz, na Frana§a, onde foi instalado o experimento Double Chooz

"Em cada fissão nuclear que ocorre dentro de um reator, na divisão de um a¡tomo em dois menores com liberação de energia, há participação de neutrinos. A radiação emitida, em geral, éacompanhada de neutrinos. Por isso, já que reatores nucleares, ou reações nucleares, são fontes abundantes de neutrinos, muitas pesquisas sobre eles são feitas com reatores nucleares", comenta o professor. a‰ com esse objetivo que a colaboração Double Chooz foi instalada na Central Nuclear de Chooz, cidade francesa próxima a  fronteira com a Banãlgica. 

Em busca de θ13

A colaboração internacional Double Chooz surgiu a partir da unia£o de cientistas de váriospaíses que se propunham a desenvolver pesquisas sobre neutrinos ligadas a reatores nucleares, cada um em seupaís. Devido a  complexidade dessas pesquisas, houve um consenso de que seria mais produtiva uma unia£o em torno de um número menor de projetos. Eles então se re-organizaram em torno de três experimentos: Double Chooz, na Frana§a, que conta com pesquisadores brasileiro; Daya Bay, na China, e RENO, na Coreia do Sul. Além dos pesquisadores da Unicamp, participam também de Double Chooz membros do Centro Brasileiro de Pesquisas Fa­sicas (CBPF), do Rio de Janeiro, e da Universidade Estadual de Londrina (UEL). 

O grande objetivo de Double Chooz era a descoberta de θ13, um dos três a¢ngulos de mistura qua¢nticos dos neutrinos. Esses valores são parametros utilizados para descrever a oscilação dos neutrinos. Quando são produzidos, neutrinos surgem em três espanãcies diferentes e, entre sua produção e detecção, pode ocorrer uma oscilação entre essas três espanãcies. Uma das grandes contribuições de Double Chooz foi, em 2011, a publicação inanãdita de um valor de medida para o θ13 diferente de zero, comprovando sua existaªncia. Atéentão, os estudos atribua­am ao a¢ngulo apenas um limite superior, o que significava que ele poderia ser inclusive nulo, igual a zero. O desconhecimento de um valor especa­fico deixava muitas possibilidades em aberto na descrição de como ocorrem as interações entre neutrinos. 

A identificação precisa dessas propriedades dos neutrinos abriu espaço para questões ainda mais profundas, tais como explicar e medir a diferença existente entre matéria e antimatéria no universo, uma lacuna na própria teoria do Big Bang. De acordo com ela, durante a formação do universo,partículas e antiparta­culas existiam em quantidades iguais e deveriam se aniquilar mutuamente, deixando para trás um mar de radiação. A resposta para o surgimento do universo como hoje éobservado estaria na explicação do porquaª a quantidade de matéria e de antimatéria passou a ser diferente, rompendo com esse equila­brio. 

"Se θ13 fosse zero, haveria uma simetria de como neutrinos e antineutrinos interagem com a matéria, impossibilitando observações que ajudassem a completar o modelo do Big Bang. A pergunta que fica anã: em qual momento do Big Bang essa simetria, esse espelho, se quebrou, e permitiu o surgimento de matéria em quantidades diferentes da antimatéria? Isso éo que deu origem a esse universo que conhecemos, então responder essa pergunta, por si são, já tem um manãrito existencial", analisa Kemp. 

O avanço mais recente feito em Double Chooz, que resultou na publicação pela Nature Physics, foi de uma nova técnica para detecção de neutrinos de reatores nucleares. Por apresentarem massa a­nfima e não terem carga elanãtrica, neutrinos sãopartículas de difa­cil detecção. Por isso, são observados a partir daspartículas filhas produzidas em suas interações nos detectores, entre elas o naªutron. Assim, uma das técnicas de detecção éo uso de elementos que revelem os naªutrons produzidos pelos neutrinos.  Atéentão, em experimentos de neutrinos de reatores, eram tradicionalmente utilizados o Hidrogaªnio e o Gadola­nio. Agora a colaboração internacional demonstrou ser possí­vel utilizar também o Carbono, opção que ainda não havia sido explorada por nenhum experimento de reatores anteriormente. Esse avanço experimental ajudou a reduzir o erro experimental das medidas anteriores de θ13, melhorando sua precisão.

Corte visual do detector de neutrinos de Double Chooz antes de incluir as capturas de naªutrons de carbono (esquerda) e depois (direita)

Outro avanço nas pesquisas realizadas por Double Chooz divulgado no artigo éo ca¡lculo exato da secção de choque de fissão, número que indica probabilidade de os neutrinos serem produzidos nas fissaµes nucleares que ocorrem dentro dos reatores. Atéentão, o número era um valor de referaªncia padra£o, adotado como uma medida relativa para permitir comparações entre experimentos em diferentes reatores. Graças a uma geometria favora¡vel, os detectores de Double Chooz foram instalados de forma que cada um recebe a mesma quantidade de radiação dos reatores, algo aºnico entre os experimentos existentes no mundo. 

Experiaªncia aplicada no Brasil

As pesquisas realizadas junto aos reatores da Central Nuclear de Chooz chegaram ao fim e o detector instalado no local já estãoem fase de desmontagem. No entanto, os experimentos renderam aos pesquisadores uma grande quantidade de dados ainda a serem processados. Isso indica que novas descobertas sobre os neutrinos ainda podem ser anunciadas pelo grupo. 

"Eu contribua­ muito com a parte de hardware, a Unicamp ajudou muito na construção de um dos ma³dulos da eletra´nica de aquisição de dados do detector. Eu também trabalhei na organização da tomada de dados, e sempre participamos ativamente nos turnos de operação, de modo remoto e la¡ mesmo na usina em Chooz. Naquela anãpoca também contribua­mos com a análise de dados, mas o principal foi na construção e operação do detector", lembra o professor Ernesto. Para ele, a participação dos brasileiros em Double Chooz foi importante não apenas para dar visibilidade aos estudos sobre o tema realizados nopaís, mas também para trazer ao Brasil a expertise necessa¡ria para instalar aqui um detector de neutrinos de reator. Em 2018, foi instalado na Central Nuclear de Angra dos Reis um monitor de neutrinos de reator, a concretização da primeira iniciativa de fazer física experimental de neutrinos dentro do Brasil.     

"Na anãpoca a decisão foi baseada em uma estratanãgia simbia³tica, de entrarmos na colaboração Double Chooz e, a  medida em que o detector fosse sendo construa­do, ira­amos adquirindo familiaridade, nos aprofundando nas técnicas de análise de dados e, paralelamente, construir o detector no Brasil. Foi muito sauda¡vel, trouxemos muitas técnicas para construir o detector em Angra e nossa contribuição com a eletra´nica de Double Chooz éa nossa eletra´nica principal de aquisição de dados aqui no Brasil. Foi como termos testado la¡ para hoje ela ser nossa eletra´nica oficial", conta.

Enquanto o foco das investigações em Double Chooz éo a¢ngulo θ13, na usina de Angra dos Reis a meta éabrir espaço para pesquisas mais amplas. Além da Unicamp, do CBPF e da UEL, participam da iniciativa brasileira as Universidades Federal da Bahia (UFBA), Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Estadual de Feira de Santana (UEFS). Ernesto Kemp também menciona que esse éum marco para as pesquisas em neutrinos nopaís, já que outras instituições podem contar com a infraestrutura de pesquisa que foi instalada no local. "Existe um outro experimento de neutrinos, o CONNIE, conduzido por um time internacional liderado pela UFRJ, em funcionamento no laboratório de Angra dos Reis, mas para estudar interações de neutrinos, uma pesquisa mais fundamental que a nossa, que tem cara¡ter mais aplicado", exemplifica. 

Ele ainda destaca a possibilidade de se monitorar a atividades dos reatores de forma independente da usina. Segundo ele, aos olhos de agaªncias reguladoras internacionais, éalgo positivo para opaís. "A Agência Internacional de Energia Ata´mica tem uma sanãrie de regras para o funcionamento de usinas nucleares, justamente para não ocorrerem desvios não declarados dos rejeitos, que podem ser utilizados para finalidades não paca­ficas. No Brasil não existe tanto esse risco porque a única central nuclear daqui éestatal, a possibilidade de desvios não declarados émuito menos prova¡vel, éalgo que envolve o Estado. Mas nos Estados Unidos, por exemplo, são raras as usinas nucleares administradas por poderes paºblicos, a maioria esmagadora éde usinas privadas", analisa o professor.

 

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