Tecnologia Científica

Estudo aponta caminhos para criar vacinas contra doenças causadas por carrapatos
Entender a interferaªncia de microrganismos no sistema imune de carrapatos pode levar a  produção de vacinas para proteger rebanhos
Por Júlio Bernardes - 05/04/2021


Reprodução

Apesar dos prejua­zos econa´micos causados a  pecua¡ria bovina pela infestação de carrapatos, pouco se sabe sobre as interações entre o sistema imune desses parasitas e os microrganismos que eles transmitem. Um estudo de revisão feito no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP relata que microrganismos causadores de doenças podem modular as respostas do sistema imune dos carrapatos e, por exemplo, aumentar a sua própria capacidade de infecção. De acordo com o trabalho, entender como se da¡ essa interferaªncia pode levar, no futuro, a  produção de vacinas para serem aplicadas nos rebanhos que reduzam os riscos de transmissão. O estudo édescrito em artigo publicado no site da revista cienta­fica Frontiers of Immunology.

“A revisão apresenta o que se sabe atualmente sobre os componentes do sistema imune de carrapatos em comparação com outros artra³podes, incluindo a mosca-das-frutas (Drosophila melanogaster) e os mosquitos Aedes e Anopheles”, relata ao Jornal da USP a professora Andranãa Fogaa§a, do ICB, que participou da pesquisa. “Apesar do advento das plataformas de sequenciamento de última geração ter propiciado um grande avanço nos estudos sobre o sistema imune nos últimos anos, ainda hoje existe menos conhecimento em carrapatos que em outros artra³podes.”

Os carrapatos são parasitas de uma grande diversidade de animais vertebrados e se alimentam obrigatoriamente do sangue desses animais, que atuam como seus hospedeiros. “Além de ingerir sangue, os carrapatos injetam saliva nos seus hospedeiros, que contanãm substâncias que controlam a hemostasia [resposta do organismo para prevenir e interromper sangramentos e hemorragias] e modulam as reações do sistema imune do hospedeiro”, descreve a professora. “Isso éimportante para assegurar que os carrapatos completem a ingestãodo volume de sangue necessa¡rio para o seu desenvolvimento.”

A saliva também pode conter patógenos, que a utilizam como um vea­culo para a transmissão para o hospedeiro vertebrado. “Além do impacto sobre a saúde do hospedeiro, a morbidade e a mortalidade das doenças transmitidas por carrapatos também causam prejua­zos econa´micos importantes”, ressalta Andranãa. “Um exemplo importante éo caso das infestações de bovinos pelo carrapato Rhipicephalus microplus. Apenas no Brasil, os prejua­zos estimados pela diminuição da produção da carne e de leite em decorraªncia das infestações giram em torno de 3,24 bilhaµes de da³lares.”

Segundo a professora, o sistema imune dos artra³podes émais simples que o dos vertebrados, não contando com a produção de anticorpos específicos. “Sabemos que no intestino de carrapatos são produzidos diversos pepta­deos antimicrobianos, os quais atuam permeabilizando a membrana ou inibindo a ação de enzimas importantes para a respiração ou para outros processos vitais para os patógenos”, descreve. “Curiosamente, já foi descrito que várias espanãcies de carrapatos produzem pepta­deos antimicrobianos a partir da degradação da hemoglobina do sangue do pra³prio hospedeiro, o primeiro deles identificado pela professora Andranãa no laboratório da professora Sirlei Daffre, do ICB, uma das autoras da revisão.”

Imagem cedida pelo pesquisador
 
Proliferação

No intestino dos carrapatos, os patógenos também encontram componentes da microbiota residente, as quais podem auxiliar ou prejudicar o seu estabelecimento no vetor. “Caso o pata³geno consiga colonizar o intestino, precisa migrar atéas gla¢ndulas salivares do carrapato para ser transmitido para um hospedeiro sauda¡vel em uma próxima refeição sanguínea”, relata Andranãa. “A produção de pepta­deos antimicrobianos e de outras moléculas que atuam contra infecções éregulada por vias de sinalização imune. Estudos feitos pelo grupo da professora Sirlei sugerem que em carrapatos essas vias são ainda mais interconectadas que em outros artra³podes.”

ntrigantemente, os patógenos podem modular várias respostas do sistema imune dos seus vetores em benefa­cio pra³prio, ressalta a professora. “Por exemplo, nosso grupo de pesquisa mostrou que a bactanãria Rickettsia rickettsii, causadora da febre maculosa brasileira, uma doença altamente letal, écapaz de inibir a morte celular regulada de células de carrapato, assegurando a sua proliferação”, afirma. “Um outro exemplo interessante éa diminuição donívelde componentes do sistema imune pela infecção de células do carrapato R. microplus pela bactanãria Anaplasma marginale.”

Algumas respostas do sistema imune já descritas em outros artra³podes não foram encontradas nos carrapatos, ou os achados são controversos, observa Andranãa. “Estudos adicionais também são necessa¡rios para compreender como as vias de sinalização imune são ativadas em carrapatos”, observa. “Além disso, ainda não sabemos se a microbiota, de fato, regula o sistema imune dos carrapatos, nem os mecanismos utilizados. Ou seja, ainda hámuitos aspectos da imunidade de carrapatos que precisam ser aprofundados.”

De acordo com a professora, como os fatores do sistema imune dos carrapatos são importantes para assegurar a sua sobrevivaªncia, uma possibilidade éutiliza¡-los como vacinas. “Assim, os carrapatos, ao ingerirem o sangue de vertebrados previamente imunizados com esses fatores e, portanto, contendo anticorpos contra os mesmos, podem se tornar mais suscetíveis a infecções”, aponta. “Mas para isso ser possí­vel, muitos estudos ainda são necessa¡rios, atestando a importa¢ncia da ciência ba¡sica.” A revisão éapresentada no artigo Tick Immune System: What Is Known, the Interconnections, the Gaps, and the Challenges, publicado em 2 de mara§o no site da revista Frontiers of Immunology.

As pesquisas sobre carrapatos realizadas pelo grupo da professora Andrea tiveram a colaboração fundamental dos professores Sirlei Daffre, do ICB, e Marcelo Labruna, da Faculdade de Medicina Veterina¡ria e Zootecnia (FMVZ) da USP. Andrea e Sirlei também integram o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Entomologia Molecular, coordenado pelo professor Pedro de Oliveira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cienta­fico e Tecnola³gico (CNPq), cujo site pode ser acessado neste link. Os estudos contam com o apoio da Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp) e da Pra³-Reitoria de Pesquisa da USP, que financiaram a construção de um laboratório comnívelde biossegurança 3 (NB-3), usado nos estudos sobre as interações entre carrapatos e R. rickettsii, construa­do em parceria com o professor Carsten Wrenger, do ICB. 

 

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